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Os povos indígenas e as terras que tradicionalmente habitam, por Iara Tatiana Bonin

 

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[CIMI] Os processos de demarcação das terras indígenas têm reacendido a polêmica sobre o que sejam “terras tradicionalmente ocupadas” pelos mais diversos povos indígenas brasileiros. No Rio Grande do Sul essa polêmica vem sendo mobilizada, de um lado, a partir de uma interpretação do Artigo 231 da Constituição Federal, qual seja, a de que as terras resguardadas pela Constituição seriam aquelas que os indígenas estariam ocupando na data de promulgação da Lei. Tal entendimento se vale da conjugação do verbo “ocupar” no tempo presente (terras que tradicionalmente ocupam) e, assim sendo, a data de 1988 seria o marco que separa o que pode ou não ser demarcado como terra indígena.

No outro lado da polêmica situam-se aqueles que interpretam o Artigo 231 da Constituição valendo-se do qualificativo “tradicional”, ligado ao verbo ocupar. Aliás, o termo “ocupação tradicional” refere-se a formas não ocidentais de entendimento do que seja estar lá, habitar, compartilhar, marcar a presença e o pertencimento a um território e, mais ainda, refere-se ao significado (sempre distinto) da territorialidade indígena.

Observe-se que, na primeira intepretação, vale a presença física dos índios sobre a terra (sua posse, sua ocupação concreta) e, na segunda, vale o sentido atribuído a esta ocupação da terra, bem como as relações com ela estabelecidas, o fato de se pertencer a ela, o sentimento de ser “um fio” na complexa trama de relações que ocorrem numa terra e não o sentimento de possuí-la. É por isso que, para os indígenas, não é qualquer terra que pode e deve ser demarcada, mas aquelas em que existe “tradicionalidade” na ocupação.

Neste sentido, em qualquer procedimento de identificação e delimitação das terras indígenas é imperiosa a presença de antropólogos (aqueles que dominam um campo de saber acadêmico/ científico específico e que estão respaldados por ferramentas teórico-metodológicas capazes de proceder uma leitura não simplista das formas de pensar indígenas). Não se trata, portanto, de mero procedimento burocrático, nem de um espaço de “divagações vazias” e de expressão de interesses de “ongueiros” e sim de um procedimento referendado no saber científico. Assim como em um diagnóstico médico é imprescindível a participação de um especialista (médico), na realização de um diagnóstico étnico requer a participação de um especialista (antropólogo).

A polêmica sobre o conceito de ocupação (e de pertencimento) dos indígenas a um território, e a ideia de que o direito se refere apenas a efetiva presença naquele local no ato da promulgação da Constituição Federal, faz pensar na condição dos exilados políticos de outros tempos. Quando, nos terríveis “anos de ferro” da ditadura militar brasileira, dezenas de pessoas foram condenadas ao exílio (incluindo-se aí ilustres políticos), a expulsão de sua terra (o Brasil) não significou interrupção da noção de a ela pertencer. De tal sorte que, quando as condições se tornaram oportunas e a presença na terra não mais representava um “decreto de morte”, estes exilados regressaram e foram recebidos como verdadeiros brasileiros, como sobreviventes de um modelo cruel, irracional, autoritário e vergonhoso.

Não é intrigante que a condição de exílio dos indígenas (forçados a deixar suas terras, que foram usurpadas, loteadas, vendidas a agricultores) seja hoje questionada? Não é espantoso que se pense que a expulsão dos povos indígenas (com a força das armas e de um modelo unilateral de desenvolvimento) seja utilizada como argumento para defender a “perda” do direito tradicional sobre suas terras? Mais paradoxal ainda é a polêmica protagonizada hoje, por exemplo, por parlamentares e membros do poder Executivo que, mesmo não estando “aqui” durante um período autoritário e ditatorial, reconquistaram o direito de retomar a tradicional vinculação com sua terra natal e são brasileiros o bastante para ocupar altos postos d o governo, para representar os cidadãos e suas demandas.

Assim, aos índios, nos cabe também o reconhecimento de que sua expulsão (ou exílio) das terras que ocupavam não inviabiliza o reconhecimento da tradicionalidade desta ocupação. A demarcação de todas as terras indígenas, além de resguardar um preceito constitucional, será a prova cabal de que nossa noção de democracia inclui o reconhecimento de equívocos de passado e, mais do que isso, que estamos dispostos a repará-los e promover a justiça.

Iara Tatiana Bonin é Doutora em Educação pela UFRGS.

Artigo socializado pelo CIMI – Conselho Indigenista Missionário e reproduzido pelo EcoDebate, 04/06/2013


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