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Artigo

Reflexões de um conservador de nascentes, artigo de Osvaldo Ferreira Valente

 

[EcoDebate] Temos convivido, principalmente nos últimos dois anos, com um bombardeio midiático a respeito de dois assuntos: água e floresta. E como sou engenheiro florestal e especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas – conservação de aquíferos e nascentes -, não consigo ficar indiferente a muitas opiniões dadas sobre os temas, mas desprovidas de fundamentos técnico-científicos. Por isso, já tenho escrito artigos e mais artigos com reclamações sobre tais comportamentos. Não que queira ser dono da verdade, mas lutando para que as discussões fujam dos lugares comuns ou que as pessoas deixem de opinar simplesmente por ouvir dizer. O rol dos palpites inclui, também, especialistas de outras áreas do saber, que por serem nomes conhecidos em suas atividades, acabam trazendo credibilidade para informações com pouco conteúdo hidrológico. Prestam um desserviço à causa da conservação de recursos hídricos.

Os debates sobre o novo Código Florestal têm, até certo ponto, vendido ilusões sobre as relações da floresta com a água, principalmente quando deixam no ar a ideia de que se não houver mata a ciliar, as nascentes e os cursos d’água desaparecerão. Interpretando essa ideia, pode-se intuir, então, que a presença da mata ciliar é suficiente para garantir a presença de nascentes e cursos d’água, o que não é verdade. Acabaram até se esquecendo da Lei Federal 9.433, de 1967, a Lei das Águas, que diz ser a bacia hidrográfica a unidade da superfície adequada para produção e gerenciamento do uso de água. É ela que recebe a chuva, processa e armazena ou não em seus aquíferos subterrâneos, dependendo do que acontece nas interações água/solo/planta. E a bacia hidrográfica não é resumida pelas áreas ciliares ou ripárias, nem tão pouco pelas áreas de topo. Nem sempre os aquíferos, mantenedores das nascentes e dos cursos d’água nas épocas de estiagens, são abastecidos por tais partes das bacias. Para nós, hidrologistas de aquíferos e nascentes, tais fundamentos são elementares, mas temos falhado em transmitir isso ao público, pois a pregação da mata ciliar como salvadora absoluta da água é tema recorrente na mídia em geral.

Tenho várias experiências próprias, de campo, onde pequenas bacias, trabalhadas com práticas de conservação de solos adaptadas à produção de água, chegaram a ter as vazões de suas nascentes aumentadas em até 100%. Isso de um ano para outro e sem a plantação de árvores. Mas é evidente que a floresta também é uma tecnologia importante (só não é a única) para conseguir aumentos semelhantes, desde que distribuída na bacia com base em conhecimento prévio do respectivo ecossistema hidrológico. O que fizemos foi buscar alternativas onde, por razões de ocupação do solo, não era possível a adoção do reflorestamento.

O importante é darmos assistência técnica e financeira aos produtores rurais, em cujas propriedades estão a maioria das nascentes dos cursos d’água brasileiros, para que eles conduzam suas atividades de modo a conseguir produtividades agropecuárias e florestais remuneradoras, mas, também, produzam boas quantidades de água. Convém jamais nos esquecermos que a água, pela Lei 9.433 é um bem de domínio público e sua produção não pode ficar debitada apenas aos proprietários rurais.

Osvaldo Ferreira Valente é engenheiro florestal, especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas, professor titular, aposentado, da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e autor do livro “Conservação de nascentes – Produção de água em pequenas bacias hidrográficas”; colaborador e articulista do EcoDebate. valente.osvaldo@gmail.com

EcoDebate, 28/03/2012

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4 thoughts on “Reflexões de um conservador de nascentes, artigo de Osvaldo Ferreira Valente

  • Hélcio Totino

    Até que enfim alguém do ramo falou a verdade!

    As “quase-falácias” dos “topo de morro” e “matas ciliares” como formadores de mananciais…

    Não apenas a cobertura florestal ajuda mas a formação da camada superficial, em primeiro lugar, e do sub-solo, em segundo lugar. é que permitem serem permeadas pela água que vai formar o lençol freático que, este sim, irá merejar ou brotar como nascedouro do precioso líquido em pontos adequados.

    Solos arenosos são os que mais permeiam o líquido e contribuem para acumulação e correlativa manifestação de nascentes.

    Solos argilosos impermeabilizam-se na primeira “aguada” e fazem o papel de “guarda chuva para não deixar a água entrar….” contribuem para a formação e grandes enxurradas e enchentes. Ajudam pouco na retenção de massas de água.

    Solos arenosos não firmam as árvores de grande porte e sistema radicular reduzido podendo tombar sob ventos fortes.

    Solos argilosos conseguem “reter” a árvore de porte, com firmeza, pelo sistema radicular e aí as árvores resistem no ficar de pé.

    Pela lógica decorrente, os solos mais “competentes” para receber, permear e conter as águas das chuvas são exatamente aqueles mais fracos para a função de “reter em pé” as árvores de grande porte, sejam ou não de topo-de-morro.

    Na contraparte, os solos argilosos são menos competentes para a absorção e acumulação de água enquanto, em contrapartida, se mostram mais capazes de manter de pé as plantas de grande porte.

    Sob outro enfoque, as matas ciliares farão o papel de retentores de materiais pesados que, em terreno marginal não muito inclinado, acabará por impedir ás águas de chegarem aos leitos dos fluxos de água e, bem mais tarde, chegarão a formarem lençóis expostos de água “empoçada” – em grandes extensões – pela retenção causada pelo nível mais elevado da superfície do solo de apoio da mata ciliar.

    O articulista poderá, certamente, avaliar até que ponto e em quanto os raciocínios expostos aqui tem procedência.

    Sua matéria está no endereço:
    http://www.ecodebate.com.br/2012/03/28/reflexoes-de-um-conservador-de-nascentes-artigo-de-osvaldo-ferreira-valente/

    O texto do comentário e a indicação da matéria foram postados no grupo Civilização Solar, compartilhado no FACEBOOK.

  • Eu lamento, mas parcialmente, obrigo-me a divergir do autor do artigo, pois quando menciono a relevância das matas ciliares, nascentes e cursos d’água, eu também menciono agricultura, pecuária e conservação de solo. Eu não me inclino favorável ou contra o agronegócio, mas busco dar ênfase sobre a importância da água na atividade. Eu jamais mencionaria que a presença da água independe das matas ciliares. Quando uma região recebe a chuva, não significa que ali se formou, mas numa outra região ocorreu a evapotranspiração permitindo a composição.

    Quando tento convencer pessoas sobre matas ciliares, nascentes e cursos d’água, eu envido esforço no sentido de que comprendam, outros seres interrelacionam com esses ambientes. Eu não deixo de observar, mesmo que tomemos todas as precauções, dificilmente impediremos o soterramento das bacias hidrográficas, por conta dos inúmeros processos erosivos, ou seja, haverá o aplainamento das bacias. Obs.: no deserto também chove, no entanto, não há recurso natural que permita o afloramento das nascentes. Incrível, mas até nos filmes há cenas, onde humanos vêem oásis (miragens) por causa de sede extrema.

    “Em geografia, um oásis é uma área isolada de vegetação em um deserto, tipicamente vizinho a uma nascente de água doce. O local de um oásis tem sido de importância crítica para rotas de comércio e caravanas nas áreas desérticas. Caravanas devem mudar de oásis de acordo com a necessidade de água ou comida. O controle político ou militar de um oásis significa em muitos casos controle do comércio ou de uma rota em particular. Por exemplo, os oásis de Awjila, Ghadames e Kufra, situados na Líbia, têm sido vitais para ambas as rotas Norte-Sul e Leste-Oeste e comércio no deserto do Saara”. (Wikipedia)

    http://en.wikipedia.org/wiki/File:Oasis_in_Libya.jpg

  • Paulo Roberto Cabral Medeiros

    Estou com 62 anos de idade. Pude acompanhar, com muita tristeza, as mudanças ambientais em nosso País. Em nenhum caso vi ocorrências naturais, mas tudo como resultado da ação humana. Foi tudo muito rápido.

    Vi muitos rios minguarem porque perderam as suas matas ciliares e o processo de assoreamento tomou conta de tudo. Vi rios navegáveis que, hoje, podem ser atravessados a pé, com á água batendo nos calcanhares.

    Vi rios piscosos que se transformaram em esgotos a céu aberto. A maioria dos rios de minha infância tornou-se perigosa à saúde (doenças de pele, hepatite e verminoses…)

    O que me assusta não é tanto o que já perdemos, mas o que mais acrescentaremos a esse quadro de destruição nos próximos anos.

    Paulo R.C.Medeiros
    Brasilia

  • Em 1961 por conta das traquinagens da infância, escondidos saíamos de casa em direção ao ribeirão. Nossa meta, aprender a nadar. No caminho colhíamos algumas cabaças, no mínimo duas para cada menino. Para chegar ao ribeirão atravessávamos a capoeira (mata ciliar) e, na trilha sombria, espantávamos as juritis, inhambus e cariapongas. Na margem do ribeirão escondíamos nossas roupas e pelados corríamos sobre os galhos do ingazeiro saltando de ponta ou abraçados aos joelhos para ver quem espalhava mais água.
    Infelizmente, os fazendeiros dispensaram as famílias, essas foram morar as margens urbanas das cidades. O progresso foi chegando de forma desenfreada e, hoje, não se consegue estabelecer um limite, pois o céu é o limite. Por conta desse progresso, da mata ciliar só ficou a lembrança da sombra, escura e fresca. Dá-me a impressão de ouvir ainda o som das asas das juritis que voavam baixinho, sorrateiras, não iam para longe por causa dos frutos da goiabeira. O ingazeiro imponente a margem do ribeirão, nem pensar, nem ingazeiro, nem ribeirão. A vida passou sem que o homem desse o devido valor. Ás vezes, meditando a respeito não consigo compreender. Por quê? Por isso, talvez, nossa memória seja o nosso maior tesouro.
    Um grande abraço de quem há muito foi um dos meninos.

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