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Artigo

São Paulo: segregação urbana e desigualdade, artigo de Flávio Villaça

 

RESUMO

O texto se inicia com a ideia de que o espaço urbano não é um dado da natureza, mas um produto do trabalho humano. Propõe então uma nova maneira de abordar a segregação urbana, utilizando para isso o caso da cidade de São Paulo. Mostra, entretanto, que essa nova abordagem vale também não só para a Região Metropolitana de São Paulo, como também para todas as demais Regiões Metropolitanas do Brasil. Esclarece os avanços por ela possibilitados, a saber: tanto o relacionamento da segregação com a estrutura espacial urbana como um todo, como seu relacionamento com todos os componentes da totalidade social. Nesse sentido, faz uma análise da segregação espacial dos empregos da população na cidade de São Paulo, mostrando a relação entre a segregação residencial e a segregação dos locais de emprego, bem como a relação dessas segregações com a desigualdade e a dominação sociais. Finalmente, mostra a relação entre a produção social do espaço e a produção social do tempo, mediante análise da relação entre o espaço urbano e o tempo gasto pelos moradores das metrópoles em seus deslocamentos nesse espaço.

Palavras-chave: Espaço urbano, Segregação urbana, Desigualdade social, Metrópole brasileira, Dominação social.

 


ABSTRACT

The paper starts with the idea that urban space is not a product of nature but of men´s labour. It proceeds presenting a new way of focusing and analyzing urban segregation, using the city of São Paulo as a case study. Through several social indicators, presented in 8 illustrations, it shows urban segregation in São Paulo. It shows however that this new way also applies to any Brazilian metropolitan area. Important aspects shown by this new way are: on the one hand, the possibility it offers of analyzing the relationship between urban segregation of residences, working places and the overall urban spatial structure; on the other hand, the possibility of analyzing the relationship between urban segregation and the social inequality which prevails in Brazilian society as well as with social domination. It finally shows the relationship between human production of urban space and human production of time and the importance of the former.

Keywords: Urban space, Urban segregation, Social inequality, Brazilian metropolitam areas, Social domination.


 

 

Introdução

Provavelmente o maior avanço ocorrido no campo da ciência da geografia em todos os tempos tenha sido a consciência e a recente difusão da ideia (Lefèbvre, Harvey, Gottdiener e tantos outros) de que o espaço social no nosso caso, o espaço urbano – é socialmente produzido, ou seja, não é dado pela natureza, mas é produto produzido pelo trabalho humano. A partir dessa concepção do espaço social, e só a partir dela, foi possível inserir seu estudo na lógica do materialismo histórico, da dominação e do conflito de classes, coisa que não só não tinha sido possível antes, como também vinha entravando o desenvolvimento da geografia, impedindo-a de ultrapassar a etapa primária de uma ciência humana que se limitava à simples descrição do espaço.

Este texto procura mostrar uma abordagem do espaço urbano como produto produzido.

Parte da premissa de que nenhum aspecto da sociedade brasileira poderá ser jamais explicado /compreendido se não for considerada a enorme desigualdade econômica e de poder político que ocorre em nossa sociedade. O maior problema do Brasil não é a pobreza, mas a desigualdade e a injustiça a ela associada. Desigualdade econômica e desigualdade de poder político.

Daí decorre a importância da segregação na análise do espaço urbano de nossas metrópoles, pois a segregação é a mais importante manifestação espacial-urbana da desigualdade que impera em nossa sociedade. No caso das metrópoles brasileiras, a segregação urbana tem uma outra característica, condizente com nossa desigualdade: o enorme desnível que existe entre o espaço urbano dos mais ricos e o dos mais pobres. Transferido para o campo do urbano, a premissa dada passa a ter o seguinte enunciado: nenhum aspecto do espaço urbano brasileiro poderá ser jamais explicado/compreendido se não forem consideradas as especificidades da segregação social e econômica que caracteriza nossas metrópoles, cidades grandes e médias.

Da mesma forma, a segregação urbana só pode ser satisfatoriamente entendida se for articulada explicitamente (e não apenas implicitamente ou subentendida) com a desigualdade. Essa explicitação se dá desvendando-se os vínculos específicos que articulam o espaço urbano segregado com a economia, a política e a ideologia, por meio das quais opera a dominação por meio dele.

 

Os avanços

Destacamos, neste texto, seis aspectos nos quais nossas reflexões sobre segregação urbana (Villaça, 2009) se articulam explicitamente com a desigualdade e a dominação e avançam em relação à maioria dos estudos brasileiros atuais sobre o tema:

Elas avançam no sentido de:

1) … negar a forma clássica de segregação que se apresentaria sob a forma de círculos concêntricos, com os mais ricos no centro e os mais pobres na periferia.

2) … historicizar a segregação. A falta de inserção histórica é uma das responsáveis por várias das limitações nas análises atuais sobre segregação urbana.

3) … mostrar como se dá a relação entre a segregação e a totalidade das estruturas social e urbana. Sem isso, os estudos sobre segregação ficam incompletos e por isso inaceitáveis.

4) … mostrar a relação entre a dominação e a segregação, esclarecendo as especificidades da dominação através do espaço urbano, ou seja, mostrar o papel do espaço urbano no processo de dominação.

5) … abordar a segregação, não mais por bairro, mas por região geral da cidade; essa abordagem traz um enorme potencial explicativo muito maior que o da segregação por bairro, e só ela é capaz de explicar as relações aqui indicadas.

6) Finalmente, e em síntese, avançam no sentido de explicar a segregação, e não apenas no de denunciá-la, descrevê-la ou medi-la.

Os estudos tradicionais da segregação (como os da sociologia urbana americana entre as décadas de 1950 e 1970), e alguns produzidos no Brasil, não mostram objetivamente (às vezes, nem implicitamente) as relações entre, de um lado, a segregação e o restante da estrutura urbana, e, de outro, suas relações com os demais aspetos da totalidade social, ou seja, com seus aspectos econômico, político e ideológico.

A forma mais tradicional de estudo da segregação urbana é aquela que aborda o centro versus periferia urbanos. Essa forma raramente é apresentada como segregação nem é analisada sob essa óptica. Tem o mérito de não ser por bairro, mas por região urbana ou conjunto de bairros. Entretanto, limita-se fundamentalmente a uma descrição. As abordagens sob a óptica centro versus periferia, quando ultrapassam a descrição, limitam-se a denunciar a injustiça, não conseguindo explicar a segregação nem articulá-la ao restante da estrutura urbana e da totalidade social. Além disso – e isso já seria motivo suficiente para rejeitá-la -, é falsa como descrição da segregação. Segundo ela, em nossas metrópoles (e também nossas cidades médias e grandes), a segregação dar-se-ia segundo círculos concêntricos, com os mais ricos no centro e os mais pobres na periferia. Essa falsa visão decorre da teoria dos círculos concêntricos da Escola de Chicago, do início do século XX. O Rio de Janeiro, por exemplo, sempre desmentiu essa visão, pois a Zona Sul nunca teve periferia pobre. Seja no início do século XX, tempo em que Ipanema e Leblon eram periferia, seja no tempo em que Barra da Tijuca o era, seja hoje, quando o Recreio dos Bandeirantes o é. Favela incrustada na mancha urbana (como a Rocinha) não é periferia segundo nenhum conceito do termo. Além disso, em São Paulo, Granja Viana, Alphaville ou Aldeia da Serra mostram que há décadas existem áreas mais ricas não só fora do centro, mas na periferia afastada.

 

Abordagens recentes da segregação

Talvez a forma mais destacada de estudo da segregação moderna seja sua manifestação sob a forma dos condomínios fechados. Esses estudos – como a maioria daqueles sobre segregação – não colocam a segregação num contexto histórico nem a articulam com o restante da estrutura urbana, como também não mostram explicitamente (às vezes deixando apenas subentendidas) as articulações entre a segregação e as esferas econômicas, políticas e ideológicas da sociedade. Enfim, não explicam esse tipo particular de segregação, limitando-se a articulá-lo ao advento da segurança, da violência urbana, dos interesses imobiliários, da cultura e dos novos valores por esses criados e/ou divulgados.

Em que os condomínios fechados se distinguem das tradicionais formas de segregação, por classe e por bairro, que existem há mais de um século em nossas cidades? Em que se distinguem do Jardim América, Pacaembu ou Alto de Pinheiros? Só no tocante à proteção contra a violência? Aos controles de portaria? À produção imobiliária? No tocante à novidade imobiliária, eles em nada se distinguem desses bairros há 50 ou 80 anos. Há poucas interpretações dessas novidades que ultrapassem as relações com os interesses imobiliários (a criação de um novo “produto” imobiliário) ou com a questão da segurança. Em que e por que esses aspectos são algo significantemente novo? Claro que são novos. A questão é, insistimos, se são significantemente novos. Em que e por quê são irrelevantes ou relevantes? Como integrar sua análise a processos socioespaciais mas amplos? Como interpretar os condomínios fechados superando a denúncia e os interesses dos moradores? Sobre isso pouco ou nada tem-se falado.

Esses estudos – como muitos estudos urbanos – têm um fundo não muito claro e nunca explicitado. É um fundo moral, ético, que destaca a injustiça. Quando destacam a opressão ou a dominação, fazem-no sob a óptica da injustiça. Como sua causa real não é estudada nem claramente explicitada, ela passa ao leitor (o que deve ocorrer também na cabeça de muitos dos autores) a ideia de que sua causa é a maldade, a ganância e os interesses mesquinhos dos homens. Nessa base ética está o maior perigo de qualquer análise social, as urbanas incluídas. Isso já foi denunciado há mais de um século por F. Engels ao criticar os socialistas utópicos que criticavam o capitalismo com base na ética. Criticou-os por acreditarem que com esse socialismo despontava o reino da razão e que com ele “a superstição, a injustiça, o privilégio e a opressão, seriam substituídos pela verdade eterna, pela eterna justiça, pela igualdade baseada na natureza e pelos direitos inalienáveis do homem” (Engels, s. d., p.19). A segregação é, assim, vista por esses estudos sob a óptica da justiça e da razão e assim moralmente condenável.

Quais são os limites dos estudos da segregação por bairro, por classe social, ou daqueles que abordam os condomínios fechados ou o centro versus periferia?

Já mostramos antes que essa visão é falsa. A descrição centro versus periferia não permite, por exemplo, que se articule a segregação com as estruturas urbana e social. Essa descrição não explica, por exemplo, por que o centro tradicional de nossas cidades cresce mais numa determinada direção do que em outras (ou isso nada tem a ver com a segregação urbana?). Pela própria lógica do esquema centro versus periferia, o centro deveria crescer mais ou menos uniformemente em todas as direções. No entanto, há mais de um século isso não ocorre em nossas metrópoles. Não explica ainda a articulação da segregação com as esferas econômicas, que se dá por meio da atividade econômica que maior interesse tem no espaço urbano: a atividade imobiliária. Não toca sequer nas articulações entre, de um lado, a segregação e, de outro, o poder político e a ideologia. Como tantas análises da segregação, ela enfatiza – explícita ou implicitamente – a desigualdade como injustiça, não deixando clara se ela é ou não devida à maldade dos homens.

É preciso ultrapassar não só a descrição, mas especialmente a explicação fundada em razões éticas e morais.

Em obras anteriores, abordamos a segregação por classes, mas não por bairros, mas por grandes conjuntos de bairros, ou seja, por grandes regiões da cidade. Com isso abriu-se uma enorme possibilidade de explicação e compreensão não só do próprio processo de segregação, mas também com suas articulações com aspectos fundamentais da sociedade.

 

Descrever e explicar

A diferença entre descrever e explicar não é simples e varia de um grupo de ciências para outro; ciências exatas abstratas (matemática), ciências exatas aplicadas, ciências da natureza ou ciências sociais. Vamos abordar apenas o caso das ciências sociais, de uma maneira simplificada, porém fundamental, e de um único processo social: a segregação urbana.

Em que consiste explicar ou entender a segregação urbana? Temos insistido que a abordagem da segregação por região da cidade tem um poder explicativo muito maior do que sua abordagem por bairro. Isso porque ela permite uma melhor explicação da estrutura urbana como um todo e de suas articulação com os processos sociais fundamentais e do próprio processo de segregação.

Simplificadamente, explicar qualquer processo social – a segregação urbana incluída – é articulá-lo à totalidade social (os aspectos econômico, político e ideológico da sociedade) e a seus movimentos. É por meio dele mostrar como a segregação se articula com a mais importante (mas não a única) das manifestações explicativas das transformações sociais, ou seja, a dominação social, que gera a desigualdade, especialmente acentuada no Brasil.

Não basta, portanto, nem denunciar, nem medir a segregação em nossas grades cidades e metrópoles, seja por bairros, seja por conjuntos de bairros. É preciso explicá-la.

 

A participação do espaço urbano na dominação social

Para haver uma boa interpretação ou explicação de um processo social, é preciso haver antes uma boa descrição desse processo. Essa, entretanto, é uma condição necessária, mas não suficiente para uma boa explicação. Uma boa descrição não leva necessariamente a uma boa interpretação, mas uma má descrição leva necessariamente a uma má interpretação, a não ser por coincidência ou acaso (o que, cientificamente, não tem nenhum valor).

No caso particular das cidades brasileiras, é indispensável articular o papel da segregação urbana nas produção da desigualdade e da dominação sociais. Isso porque a segregação (em geral, e em inúmeras de suas manifestações “oficiais”) é aquela forma de exclusão social e de dominação que tem uma dimensão espacial. Essa dimensão aparece, por exemplo, na determinação, comum nos Estados Unidos até a década de 1970, de que os negros ocupem os últimos lugares dos ônibus (componente espacial), usem sanitários separados (componente espacial), frequentem escolas separadas (componente espacial) etc.

Nenhum estudo do espaço urbano será satisfatório se não entender a segregação espacial urbana.

Há muitas décadas, a segregação residencial vem sendo objeto de investigação por muitos estudiosos. Entretanto, não só as articulações aqui mencionadas não têm sido esclarecidas, como também apenas a segregação residencial tem sido estudada.

Há tempos estamos desenvolvendo a tese de que a segregação deve ser analisada por região da cidade (e não por bairros) e ultrapassar a segregação residencial. Vamos aqui abordar essa ultrapassagem e analisar, também, a segregação dos empregos, do comércio e dos serviços.

O estudo das relações entre espaço e sociedade é tão antigo quanto complexo. Nossa tentativa de enfrentar essa complexidade levou-nos a simplificar o “lado social” e o “lado espacial” da análise. Nasceu assim a ideia da região da cidade.

O poder explicativo da segregação ficará tão maior quanto mais simples e profundo ele for, ou seja, quanto mais se conseguir sair do terreno movediço que, em geral, envolve o estudo das classes sociais. Do “lado social”, dividimos então a sociedade metropolitana (no caso, São Paulo) em apenas duas classes sociais que chamaremos: “os mais ricos” ou “as camadas de mais alta renda”, e os mais pobres ou os de “mais baixa renda”.

Do lado do espaço, essa simplificação teve suas consequências. Tendo em vista que qualquer metrópole tem centenas de bairros, a segregação por bairro acaba perdendo seu poder explicativo, pois essa quantidade leva a análise para um lado abstrato, já que conduz o estudo a bairros ideais ou tipologias de bairros. Esses poderiam, então, ser agrupados em regiões homogêneas. Isso, entretanto, não tem sido feito. Foi esse o caminho que exploramos ao analisar conjuntos de bairros ou regiões urbanas.

Inicialmente, vejamos como se dá a segregação na capital paulista.

Analisando distribuição espacial das classes sociais no município de São Paulo, verifica-se que há uma região geral da cidade onde ocorre uma excepcional concentração das classes de mais alta renda. Essa região é integrada por vários bairros, das mais distintas classes sociais, porém a maior parte daquelas classes está concentrada nessa região. Ela foi por nós chamada de Região de Grande Concentração das Camadas de Mais Alta Renda. No caso de São Paulo, é seu Quadrante Sudoeste mostrado nas figuras 1 a 8. Essas figuras mostram a segregação das camadas de mais alta renda do Quadrante Sudoeste de acordo com uma grande variedade de indicadores. Elas já foram apresentadas em outras obras nossas.1 Chamamos a atenção especialmente para o mapa que mostra o clima na cidade (Figura 4). Até o clima – que supostamente não seria obra dos homens – é mais ameno no Quadrante Sudoeste do que no restante da cidade. Isso se deve ao fato de essa região ter muito mais parques e ser muito mais arborizada do que o restante da cidade (como também da metrópole). No caso do Rio de Janeiro, o clima não é produzido (como em são Paulo), mas as camadas de mais alta renda sempre se apossaram das regiões ambientalmente mais favoráveis. Desde o final do século XIX, essa região é sua conhecida Zona Sul.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O estudo da segregação das camadas de mais alta renda, ou dos mais ricos (e por oposição, a das classes de mais baixa renda), encarado do ponto de vista de uma região geral da cidade, permite as seguintes articulações:

  • Com os aspectos políticos: por meio da legislação urbanística, da atuação do Estado, especialmente sobre o sistema de transportes (produtor, como veremos adiante, de “localizações”) ou da localização dos aparelhos do Estado. O Quadrante Sudoeste, enfatizado antes, é privilegiado tanto por esse sistema como por essas localizações.
  • Com os aspectos econômicos: especialmente por meio do mercado da terra, formação dos preços da terra e pela atividade imobiliária. Essas são muito mais dinâmicas no Quadrante Sudoeste e a terra ali tem preço mais alto (outras coisas sendo iguais).

Basta olhar os cadernos de imóveis dos principais jornais de qualquer metrópole brasileira para ver a concentração da atividade imobiliária nas respectivas áreas de concentração das camadas de mais alta renda.

A Figura 1 mostra que, no Quadrante Sudoeste, concentram-se as áreas com “nenhuma ou baixa privação” social (áreas essas que respondem por 22,1% da população), numa pesquisa sobre Vulnerabilidade Social (Folha de S.Paulo, 23.2.2002, p.C-3).

Segundo a fonte, o conceito de “vulnerabilidade social” desenvolveu-se ultimamente, fazendo parte, até mesmo, da Proposta de Carta Mundial do Di- reito à Cidade, aprovada no Fórum Social das Américas, realizado em Quito, Equador, em julho de 2004. A Figura 1 mostra os distritos de menor Vulnerabilidade Social do Município de São Paulo.

A Figura 2 mostra a distribuição de negros na cidade. Ela mostra que, no Quadrante Sudoeste, está concentrada a maioria dos distritos com menor população negra. Neles há, no máximo, 10% de negros (pretos e pardos, na terminologia da pesquisa) (Folha de S.Paulo, 21.9.2003, p.C-4).

A Figura 3 mostra que, no Quadrante Sudoeste, estão localizados todos os dez distritos considerados os “melhores locais para jovens” (nota acima de 0,65 numa escala de 0 a 1: quanto mais alta a nota, melhor para jovens é a região). Nessa pesquisa, foram considerados “percentuais de população jovem, mães adolescentes e viagens por lazer, além de crescimento populacional, mortalidade por homicídios, escolaridade, índice de mobilidade e rendimento familiar” (Revista da Folha, 24.8.2003, p.6).

A Figura 4 mostra que o clima, no Quadrante Sudoeste, é mais ameno que no restante da zona urbana do município. Nesse Quadrante, a temperatura varia entre 25 e 29 graus, enquanto, na Zona Leste, varia de 29 a 33 graus. Nele a temperatura chega a ser 9 graus menor que na Zona Leste (Folha de S.Paulo, 15.2.2004, p.C-8). Nossa interpretação é que isso se deve ao fato de o Quadrante Sudoeste ser mais arborizado e ter mais praças e áreas verdes que a Zona Leste, por exemplo. O fato não tem relação com a altitude, como se poderia imaginar. A maior parte dos bairros ao longo do Rio Pinheiros, e mesmo afastados dele, como os Jardins América e Europa, Alto de Pinheiros e City Butantã, por exemplo (todos no Quadrante Sudoeste), tem a mesma altitude que a maior parte da Zona Leste. A Figura 4 mostra as Áreas de Temperatura Mais Amena, excetuadas, evidentemente, as regiões serranas da Zona Norte (Serra da Cantareira) e do extremo sul do município.

A Figura 5 mostra que, no Quadrante Sudoeste, estão concentrados todos os seis distritos com mais alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município. Numa escala de 0 a 1, sendo os valores mais altos representativos de melhores índices, esses distritos eram: Moema, com IDH igual a 0,884, o mais alto do município; Morumbi, com 0,860; Jardim Paulista, com 0,850; Pinheiros, com 0,833; Itaim Bibi, com 0,811; e Alto de Pinheiros, com 0,801. Nesse Quadrante, estava também localizada a maioria dos distritos com IDH acima de 0,651. Esses distritos reuniam apenas 13,53% da população do município. Dentre esses, apenas os distritos de Mooca, Tatuapé e Santana estavam fora do Quadrantes Sudoeste.

A Figura 6 mostra que o Quadrantes Sudoeste concentra a totalidade dos distritos com as mais altas rendas médias domiciliares (acima de R$ 3.000,00, em valores da época) segundo a Pesquisa Origem e Destino realizada pelo Metrô em 1997.

A Figura 7 mostra que, no Quadrante Sudoeste, estavam localizadas praticamente todas as Zonas Z-1 (Zonas Exclusivamente Residenciais Unifamiliares) do zoneamento que vigorou no município entre 1972 e 2004 (Feldman, 1996, p.164-5). Segundo o zoneamento aprovado em 2004 nos Planos Regionais, a absoluta maioria da Zonas Exclusivamente Residenciais (ZER) continuava concentrada no Quadrante Sudoeste.

Embora com alguns distritos na Zona Norte, a maioria dos distritos com menor número de óbitos por homicídio por 100 mil (abaixo de 5) estava localizada no Quadrante Sudoeste.

Com processos ideológicos, por meio dos quais a classe dominante produz e difunde ideias que visam esconder os processos reais de produção do espaço urbano desigual, que não é necessariamente centro versus periferia.

Tendo em vista que este último é muito pouco abordado e conhecido (apesar de sua grande importância), vamos falar mais sobre ele. A ideologia domina o pensamento da maioria que o adota como verdadeiro. Trata-se de entender quem produz esse pensamento e com que finalidade. Daremos apenas dois exemplos, lembrando sempre que, sem a nossa abordagem da segregação por regiões urbanas, eles seriam impossíveis. O primeiro se refere à identificação com “a cidade”, daquela parte da cidade de interesse da classe dominante. O segundo, mostra, além desse aspecto, também outro que chamaremos de “naturalização dos processos sociais”. O primeiro é ilustrado pela seguinte ideia dominante: “A cidade do Rio de Janeiro está comprimida entre o mar e a montanha”. Nada mais falso. Isso vale apenas para a Zona Sul. Essa zona (a zona ocupada pela classe dominante) é assim identificada com “a cidade”. Assim, quando a prefeitura abre uma nova via na Zona Norte, ela está beneficiando a Zona Norte. Quando ela abre uma via na Zona Sul, ela está beneficiando “a cidade”.

O segundo exemplo mostra os dois casos antes mencionados. A ideia dominante é: o centro da cidade está se “deteriorando“. A deterioração, ou apodrecimento, é um processo natural que só ocorre com os seres vivos. Essa ideia pretende esconder o processo real rotulado de “decadência!” e que é de responsabilidade da classe dominante, mas que não quer assumi-lo. A verdade é que a chamada “decadência” decorreu do fato de essa classe ter abandonado o centro, dele retirando suas lojas, escritórios, cinemas etc., e mesmo suas moradias, como as da Av. São Luís. Justamente a partir do momento em que o centro deixa de ser patrocinado pelas elites e passa a ser patrocinado pela maioria popular, cria-se a ideia de que ele está se deteriorando. Mais ainda. Justamente quando a maioria toma conta do centro, cria-se a ideia de que esse não é mais o centro da cidade, e que essa teria um novo centro. Esse ter-se-ia mudado para a Av. Paulista, ou para a Av. Faria Lima, ou para toda a região que inclui dessa avenida até o vale do Rio Pinheiros. Torna-se também dominante a ideia de que essa suposta decadência seria motivada pela velhice e obsolescência dos edifícios centras (deterioração). Essa ideia tornou-se plenamente aceita pela maioria das populações de nossas metrópoles. Se a idade dos edifícios fosse uma importante causa da “decadência” dos centros, o que seria dos centros de Roma, Paris, Berlin, Madri ou Londres? A realidade é que a classe dominante considera que o centro que for seu (e não o da maioria) será o centro da cidade. Há mais de um século, a clientela de alta renda vem abandonando o centro de São Paulo e deixa seus “restos” para as camadas populares (às quais pertence hoje todo o centro “velho”). O deslocamento do centro de São Paulo – sempre na direção de crescimento dos bairros residenciais dos mais ricos – pode ser traçado pelo deslocamento de ruas que sintetizam o comércio e/ou serviços das elites. Inicialmente a Rua XV de Novembro (até o final do século XIX) depois a Rua Direita, depois a Rua Barão de Itapetininga, depois para a Av. Paulista e parte do final da Rua Augusta, até chegar hoje à Av. Faria Lima, à Marginal do Rio Pinheiros e à Av. Luís Calos Berrini. Já no final da década de 1940, prenunciando sua “decadência”, a Rua Direita tornou-se, nas noites de fim de semana, um tradicional ponto do footing dos negros.

A produção dessa ideologia seria impossível sem a abordagem da segregação por região da cidade.

Em outras oportunidades,2 já desenvolvemos várias considerações a respeito dessas ideias, que fazem parte de um processo mais amplo de dominação por meio do espaço urbano. Resumidamente, podemos já adiantar, essa dominação se dá pela desigual distribuição das vantagens e desvantagens do espaço produzido; essas vantagens e desvantagens dizem respeito especialmente à manipulação, pela classe dominante, dos tempos gastos nos deslocamentos espaciais dos habitantes da cidade.

 

A estrutura urbana e os deslocamento espaciais

A importância que a segregação por região apresenta para a compreensão da estrutura urbana é mostrada ao longo de todo esta seção, mas vamos destacar apenas os seguintes aspectos, que mostram como:

a) … a abordagem da segregação por região da cidade permite seu relacionamento com toda a estrutura urbana, ao focalizar a inter-relação entre a produção do espaço urbano como um todo, com a segregação das residências dos mais ricos (e, por oposição, a dos mais pobres), com a segregação dos seus locais de emprego e serviços e finalmente com a dominação por meio do espaço urbano.

b) … ela faz aflorar novos possíveis tipos de segregação problematizando seu conceito. É o caso da segregação dos locais de emprego destacada neste texto.

A segregação dos empregos: o espaço

Ao falarmos da segregação e da localização dos empregos, estaremos falando do espaço.

As ideias desenvolvidas a seguir sobre estrutura urbana e segregação dos locais de emprego referem-se a São Paulo, mas poderiam perfeitamente referir-se a Rio de Janeiro, Belo Horizonte ou Salvador. Acredito que o estudioso de cada cidade ou metrópole brasileira não encontrará dificuldade em fazer as necessárias adaptações. Essa possibilidade, aliás, é uma outra esclarecedora vantagem da abordagem da segregação por região da cidade. Toda cidade brasileira acima da média tem uma região geral segregada tal como a aqui descrita para São Paulo. Ela existe no Rio, com sua conhecida Zona Sul, especialmente em décadas mais recentes, com o crescente advento da Barra da Tijuca como local de shoppings, serviços e escritórios em geral, e corporativos em particular. O mesmo ocorre com todas as Regiões Metropolitanas do Brasil, como em Porto Alegre (Independência/Moinhos de Vento), em Belo Horizonte (Lourdes/Savassi), em Recife (Boa Viagem), em Curitiba (Batel), em Fortaleza (Aldeota), ou Salvador (região do Iguatemi). Isso facilita muito aos moradores dessas metrópoles a transposição, para elas, das questões aqui apresentadas.

Iniciemos destacando que a localização dos empregos terciários apresenta um duplo interesse para a população que deles se utiliza; na maior parte dos casos (os empregos que atendem o público), cada ponto de emprego desse setor é não só um local de emprego, mas também um local de atendimento da população nas suas compras e nos seus serviços. Assim, a concentração dos empregos terciários tem um duplo interesse, coisa que não ocorre com o setor secundário, que não atende o público.

Todas as nossas metrópoles desenvolveram sua Área de Grande Concentração das Camadas de Alta Renda. Como já foi aqui mostrado, no caso da Região Metropolitana de São Paulo, essa área é seu Quadrante Sudoeste (ver figuras 1 a 8, especialmente a Figura 1). Partindo do centro, situam-se nesse Quadrante os bairros de Higienópolis, Pacaembu, Consolação, Av. Paulista, Vila Mariana, Aclimação, Ipiranga, Sumaré, Perdizes, Vila Pompeia, Altos da Lapa e Pinheiros, Jardins, Butantã, Morumbi e vizinhanças, Moema, Brooklin, Alto da Boa Vista, Granja Julieta etc. Para aqueles que pensam que aí está tout São Paulo, lembramos que essa região, incluindo os bairros populares nela contidos, não abrange nem 20% da população da Região Metropolitana, e que dela estão excluídos as zonas Norte e Leste (até Mogi das Cruzes), além de ABCD, Mauá e Ribeirão Pires, Guarulhos, Osasco, Carapicuíba etc. Dela estão também excluídos, embora localizados fora do município, porém dentro do Quadrante Sudoeste ou suas bordas (confirmando nossa tese de direção única de crescimento), os bairros de Granja Viana, Tamboré, Alphaville e Aldeia da Serra. No caso do Rio, a segregação é ainda mais acentuada. Sua conhecida Zona Sul, da Glória ao Recreio dos Bandeirantes, e incluindo a Rocinha e suas demais favelas, tem apenas 10% da população da Região Metropolitana.

A segregação residencial tem sido muito estudada há décadas. Vamos apenas acrescentar a ela a segregação dos empregos e dos locais de compras e serviços. Trata-se de uma abordagem tão particular quanto fundamental. Vamos mostrar o caso de São Paulo, destacando as concentrações dos empregos da maioria (os mais pobres) e da minoria mais rica.3

É sabido que a absoluta maioria dos empregos em nossas metrópoles é constituída pelos empregos do setor terciário. Nesse setor, trabalha a maioria dos mais ricos (a recíproca não é verdadeira). No setor terciário, está a grande concentração dos empregos dos mais ricos, especialmente nos escritórios (das várias profissões liberais e ainda os das atividades modernas como o marketing, a publicidade, comunicação, propaganda, informática etc.) nas sedes das corporações multinacionais, nos bancos e nas financeiras, nas sedes das empresas médias e grandes das mais variadas naturezas, consultórios etc., e ainda no comércio varejista. Esses empregos estão concentrados numa única área, que é precisamente a mesma onde estão concentradas suas residências dos mais ricos, que é justamente o Quadrante Sudoeste da cidade. As já mencionadas figuras mostram a segregação dos mais ricos nesse Quadrante segundo vários indicadores.

No Quadrante Sudoeste de São Paulo, concentram-se não apenas os locais de emprego dos mais ricos, mas também seu comércio (seus shoppings), suas escolas elementares e secundárias, as escolas de judô ou natação (que frequentemente exigem também o deslocamento da mãe), os salões de beleza, os hospitais, os parques, os pet-shops, as choperias e áreas de diversão (Vila Madalena ou Moema), os médicos, as academias de ginástica, os dentistas… até suas igrejas e cemitérios! Enfim, toda uma infinidade de serviços prestados aos mais ricos. Assim, os mais ricos minimizam os tempos de deslocamento para os locais de diversão, lazer, compras e serviços de todos os membros da família.

A maior parte dos mais ricos trabalha no setor terciário. A maior parte dos mais pobres também trabalha no setor terciário. Os mais ricos produziram uma única área de concentração dos seus empregos (os do terciário). Entretanto, essa área é também uma área de concentração dos empregos dos mais pobres. Só que para esses ela está longe de ser a única.

Os mais pobres têm várias áreas de concentração dos seus empregos, além de tê-los (ao contrário dos mais ricos) tanto no setor secundário (indústrias) como no terciário.

Antes de prosseguir, destacamos que, quando se fala em “local do emprego”, está-se falando tanto do emprego da mulher como do marido; no caso dos mais pobres, como também no dos filhos adolescentes (majoritariamente, o caso dos mais pobres).

Iniciemos pelos locais de concentração dos empregos terciários.

Os estabelecimentos do setor terciário são extremamente espalhados pelo espaço urbano; basta pensar nas centenas de lojas, farmácias, oficinas diversas, bares e padarias, pequeno comércio etc. que há espalhados por toda a cidade, até mesmo nos bairros pobres. Há, entretanto, áreas onde esses empregos são excepcionalmente concentrados.

Apesar de os empregos terciários serem espalhados, a classe dominante, que neles predominantemente trabalha, produziu uma única área onde esses empregos são mais concentrados. Isso não quer dizer que os empregos dos mais ricos ali predominem; pelo contrário. Além disso, a classe dominante também produziu a área de grande concentração das suas moradias, onde ocorre igualmente a grande concentração de seus próprios locais de emprego, comércio e serviços. Como já foi dito, nessa área ocorre também uma grande concentração dos empregos dos mais pobres (pessoal de limpeza, garçons, vendedores, balconistas, auxiliares em geral, pessoal de mais baixa qualificação, seguranças etc.) que nelas, aliás, predominam.

Além dessa, os mais pobres têm várias outras áreas de concentração de empregos terciários. Em primeiro lugar, destacam-se os “decadentes” centros principais de nossas metrópoles, que são, cada vez mais, áreas de grande concentração de empregos dos mais pobres. Não vamos desenvolver aqui a questão da importância do centro “antigo” para a estrutura urbana. No passado, ele já foi um elemento fundamental. Hoje, já não se pode afirmar isso com tanta segurança. Além dele, há ainda as concentrações representadas pelos subcentros de comércio e serviços, todos eles populares, com diminuta participação dos mais ricos (subcentros da Lapa, de Pinheiros, de Santo Amaro, da Penha etc.), e ainda os centros – todos eles populares – que são os centros principais de muitos municípios da Região Metropolitana, como o centro de Santo André, o de São Bernardo, o de Guarulhos, o de Osasco, o de Mauá, o de Poá etc. Todos são não só centro de empregos, como também centros de comércio e serviços. Note-se que essas são apenas as áreas de grande concentração dos empregos terciários, pois, como já foi destacado, tais empregos são muito espalhados. Isso dificulta ainda mais os deslocamentos moradia/trabalho dos mais pobres.

Vejamos agora as concentrações espaciais dos empregos industriais.

A participação dos mais pobres sobre o total de empregos industriais é muito maior que a participação dos mais ricos. Numa indústria de tamanho médio ou maior, há relativamente poucos empregos dos mais ricos para muitos milhares de empregos dos mais pobres. Assim, uma zona industrial é uma zona de concentração dos empregos dos mais pobres, mas não é uma zona de concentração dos empregos dos maios ricos.

A grande maioria dos que trabalham na indústria é constituída pelos mais pobres. Não é verdade que a recíproca seja verdadeira, mas a parcela dos mais pobres que trabalha na indústria é bem maior que a dos mais ricos. Assim, a segunda fonte de emprego, que é a indústria, é muito mais importante para os mais pobres do que para os mais ricos. Daí decorre que a localização das zonas industriais é muito mais importante para os mais pobres do que para os mais ricos, que, aliás, moram afastados delas.

A proximidade ao emprego industrial não é disputada pelos mais ricos, por isso os mais pobres a disputam. Assim, sempre que possível, os trabalhadores dessas zonas procuram localizar-se perto das zonas industriais (especialmente ABCD, Guarulhos e Osasco).

Isso mostra por que a Zona Leste – que quase não tem indústrias -, do Belém/Mooca a Mogi das Cruzes, é a grande região dos mais pobre da metrópole. Servida por apenas uma linha de metrô (incompatível com suas dimensões demográficas ) e por um péssimo serviço ferroviário suburbano, é a região dos “derrotados”, ou seja, dos que perderam a disputa (de pobre versus pobre) pela proximidade do emprego industrial e da maior concentração de empregos terciários da metrópole (que na época já era também sua maior concentração desses empregos dos mais pobres: o centro “velho”). Dada a pobreza de sua população, também não se desenvolveu na Zona Leste (ao contrário do Quadrante Sudoeste ou do ABCD), uma grande rede de subcentros de comércio e serviços. A Zona Leste já teve, no passado, o segundo (depois do centro principal) maior subcentro diversificado da metrópole – o Brás. O processo de “decadência” por que passou esse bairro, semelhante ao do centro principal, bem reflete o empobrecimento da população da região por ele polarizada – a Zona Leste – a partir de meados do século XX. Além disso, o Brás tornou-se muito central; por isso, consideramos que a Zona Leste se inicia no Belém/Mooca.

Os mais pobres têm, então, várias áreas de concentração de seus empregos. Várias concentrações terciárias e várias zonas industriais. Os mais ricos têm apenas uma.

Ao comandar a produção do espaço urbano, a classe dominante comanda não só a sua produção material e direta, seu valor e seu preço (comandando o mercado imobiliário). Comanda também as ações do Estado sobre esse espaço (legislação urbanística, localização dos aparelhos de Estado, produção do sistema de transportes etc.) e ainda a produção das ideias dominantes a respeito dele. Tudo isso na verdade é o que especifica o espaço urbano.

Os deslocamentos espaciais: o tempo

Ao falarmos dos deslocamentos da população, estamos falando do tempo. Vamos falar muito da relação espaço/tempo mais adiante. Já adiantamos, porém, que a otimização dos tempos gastos no deslocamento espacial (tempo) dos moradores das cidades é o mais importante fator explicativo da organização do espaço urbano e do papel desse na dominação social que se processa por meio dele. A classe dominante manipula a produção desse espaço priorizando sempre a otimização dos seus tempos de deslocamento.

Os tempos gastos pelos habitantes das cidades em seus deslocamentos espaciais há muitas décadas vêm sendo objeto de pesquisas muito desenvolvidas pela engenharia de tráfego. São pesquisas que investigam os deslocamento da população entre os locais de moradia e de trabalho, compras, ensino etc., e ainda as razões desses deslocamentos. Em São Paulo, essas pesquisas vêm sendo feitas decenalmente pela Cia. do Metrô há mais de quatro décadas, e em toda a Grande São Paulo. São as chamadas Pesquisas OD, ou seja, de Origem e Destino das viagens feitas pela população. As pesquisas OD partem de um espaço urbano dado. Mesmo quando baseadas em projeções das transformações do espaço urbano, essas se fazem a partir de tendências histórias de comportamento do mercado, especialmente o mercado imobiliário. A partir daí, avaliam os mais diversos deslocamentos territoriais da população (incluindo os a pé) segundo os meios de transporte utilizados e os motivos dos deslocamentos (trabalhar, ir às compras, à escola etc.).

 

 

Baseados na ideia exposta no início – a de que o espaço urbano não é um dado da natureza, mas é produto produzido -, estamos procurando mostrar como é produzido esse espaço que, por sua vez, produz determinados deslocamentos dos habitantes da cidade.

As pesquisas OD estudam deslocamentos que sempre partem da moradia: moradia/local de emprego, moradia/local de compras, moradia/escola etc. Tendo em vista que os mais pobres têm várias concentrações de seus locais de trabalho, o que ocorre então com os deslocamentos dos membros das famílias mais pobres? O marido trabalha num local, a esposa em outro local diferente (em geral, não só longe de sua moradia, mas também longe do emprego do marido), os filhos adolescentes trabalham em outro local e as crianças vão a uma escola ou a uma creche que, talvez, por sorte, esteja perto da casa ou dos locais de trabalho da mãe ou do pai. A eventual existência de escolas ou creches perto das residências dos mais pobres não chega a atenuar minimamente seus problemas de deslocamento.

Embora as mais importantes viagens urbanas sejam as que ligam os locais de moradia aos locais de trabalho, há outras viagens – típicas das pesquisas OD – também importantes; são as viagens moradia-escola, moradia-compras e serviços, e moradia-lazer. Entretanto, a importância dessas outras viagens para os mais ricos é muito diferente do que o é para os mais pobres.

Tal como entre os mais ricos, também entre os mais pobres o deslocamento moradia-emprego envolve tanto o deslocamento do marido como o da mulher. Mas a semelhança para por ai. Entre os mais pobres, é maior o número de trabalhadores por família, pois o número de adolescentes que trabalha é maior que nas famílias ricas. Por isso, seus deslocamentos, além de mais numerosos, são também mais penosos. Isso produz um grande impacto sobre a família mais pobre, especialmente sobre a economia familiar e sobre a saúde dos seus membros (cansaço e redução das horas de sono, por exemplo). Para os mais pobres, é pequeno o peso dos deslocamentos motivados pelo destino das crianças. Essas evidentemente não vão à aula de natação, nem de judô, nem de balé. Vão com a mãe para alguma creche ou escola que, por sorte, possa haver perto do emprego da mãe, ou ficam em casa (com a avó ou com alguma vizinha), ou vão a pé à escola próxima. Além disso, os deslocamentos entre moradia-comércio e moradia-serviços (shopping centers, academias, parques, diversões, cinemas, restaurantes, bancos, salões de beleza, pet-shops etc.) são muito maiores entre os mais ricos do que entre os mais pobres. Portanto, para os mais ricos, além dos deslocamentos moradia-trabalho, há vários outros também importantes, embora não tanto quanto esses. Para os mais pobres, não.

Finalmente, cabe destacar – apenas no tocante aos deslocamentos urbanos – que os mais pobres não são penalizados somente pela estrutura espacial urbana que produz os locais de origem e destino de suas viagens. São também muito penalizados por outros fatores associados aos deslocamentos espaciais, especialmente a propriedade e o uso de veículos privados (os mais ricos têm dois, três ou mais automóveis por família, que os usam quase diariamente e para as mais variadas finalidades)4 e ainda pelos sistemas viário e de transportes que, sabidamente, sempre privilegiaram os mais ricos.5

O peso das obras urbanas referentes a transporte – tempo de deslocamento – é enorme. Nossos governantes – prefeitos e outros – conferem uma escandalosa prioridade às obras voltadas para o transporte privado individual, em detrimento do transporte coletivo público. Em qualquer metrópole brasileira, o sistema viário da área de concentração dos mais ricos é muito melhor e maior que no restante da cidade. No Rio, enquanto 90% da população é atendida por um péssimo serviço de trens suburbanos e ônibus, o metrô já está em Ipanema e em breve chegará ao Leblon e à Barra da Tijuca. Em São Paulo, são gastos bilhões de dólares em rodoanéis, túneis e via expressas, enquanto sua Região Metropolitana tem um metrô menor que o de Santiago do Chile (onde a construção do metrô é caríssima pela necessidade de proteção contra terremotos), cuja população da Região Metropolitana é um quarto da de São Paulo.

 

Conclusão

O controle do tempo de deslocamento é a força mais poderosa que atua sobre a produção do espaço urbano como um todo, ou seja: sobre a forma de distribuição da população e seus locais de trabalho, compras, serviços, lazer etc. Não podendo atuar diretamente sobre o tempo, os homens atuam sobre o espaço como meio de atuar sobre o tempo. Daí decorrem a grande disputa social em torno da produção do espaço urbano e a importância do sistema de transporte como elemento da estrutura urbana.

Daí decorre também a segregação como um mecanismo espacial de controle dos tempos de deslocamento.

É assim que é produzido o espaço que, por sua vez, produz os pontos de origem e destino dos deslocamentos das populações urbanas.

No Quadrante Sudoeste da Cidade de São Paulo, ocorre uma tripla segregação dos mais ricos: das suas residências, de seus empregos (os do setor terciário) e ainda do seu comércio e de seus serviços.

Este texto apresentou não só uma visão mais ampla da segregação socioespacial típica de nossas metrópoles, mas também uma visão que mostra como o espaço urbano se integra à desigualdade socioeconômica e o seu papel na dominação social.

A obscena desigualdade que existe na sociedade brasileira se manifesta na enorme segregação que se observa em nossas cidades. Essa segregação cria um ônus excepcional para os mais pobres e uma excepcional vantagem para os mais ricos.

Ao contrário do que se pensa, o tempo e o espaço urbanos não são obras da natureza, mas produtos do trabalho humano. No caso urbano, o tempo se manifesta fundamentalmente por meio do tempo gasto pelos moradores da cidade em seus deslocamentos espaciais. Como mostramos, esse tempo está intrinsecamente ligado ao espaço urbano produzido. Assim, tanto quanto o clima em São Paulo ou seu espaço urbano, também o tempo não é produto da natureza.

No espaço urbano, como em outras esferas sociais, a dominação social se faz mediante desigual distribuição, entre as classes sociais, dos frutos do trabalho.

 

Notas

1 Para que as Camadas de Alta Renda não sejam caracterizadas – como diz o nome – apenas pela renda, mas também por outros indicadores, repetimos aqui (acrescentando apenas do mapa referente a homicídios) figuras que já aparecem em nosso site (<flaviovillaca.arq.br>) no texto As ilusões do plano diretor, e também, no mesmo site, na pesquisa realizada juntamente com a Profa. Dra. Silvana Zioni (O transporte sobre trilhos na região metropolitana de São Paulo), hoje docente da Universidade Federal de São Paulo.

2 Cf. Villaça (2009, espec. a partir da p.311), e ainda Souza et al. (1999, p.221). Para as relações entre a segregação e a ideologia e o poder político, ver também nossos textos sobre o Rodoanel, no site <flaviovillaca.arq.br>.

3 Em 1997, cerca de 80% da população integravam famílias com renda familiar inferior a 20 salários mínimos. Embora a pobreza tenha diminuído nos últimos anos, a desigualdade na distribuição da riqueza, ou seja, entre os rendimentos do trabalho e os rendimentos do capital (não confundir com a desigualdade de salários aqui mencionada), tem se alterado pouco.

4 Por mais que se difunda a ideia (o discurso que esconde a realidade) de que “hoje em dia todo mundo tem automóvel”, a verdade é que a uma violenta desigualdade de riqueza corresponde também uma violenta desigualdade no uso de automóveis, celulares, televisores, geladeiras, computadores etc.

5 Na pesquisa que fizemos juntamente com a Profa. Dra. Silvana Zioni (ver nota 2), foi mostrado que, desde que começou a funcionar, o Metrô tem atendido, crescentemente, as populações e os bairros do Quadrante Sudoeste. A própria prioridade dada ao Metrô em detrimento da modernização das ferrovias de subúrbio mostra a prioridade dada à população mais rica. Enquanto na Área Metropolitana de São Paulo os poderes estadual e municipal gastam bilhões em obras para o automóvel (túneis sob o Rio Pinheiros ou sob o Parque Ibirapuera, e inúmeros túneis menores, rodoanel, alargamento das marginais etc., além de obras bilionárias anunciadas, como um túnel de vários quilômetros ligando a Av. Roberto Marinho à Rodovia os Imigrantes e novas vias expressas para a cidade).

 

Referências

ENGELS, F. Do socialismo utópico ao socialismo científico. São Paulo: Global, s. d.         [ Links ]

FELDMAN, S. Planejamento e zoneamento. São Paulo 1947-1972. São Paulo, 1996.Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo.         [ Links ]

SOUZA, A. de et. al. Metrópole e globalização. Efeitos do espaço sobre o social na metrópole brasileira. São Paulo: Cedesp, 1999.         [ Links ]

VILLAÇA, F. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, Fapesp, Lincoln Institute, 2009.         [ Links ]

Flávio Villaça é professor aposentado de Planejamento Urbano da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). @ – flavila@uol.com.br

Estudos Avançados
versão impressa ISSN 0103-4014
Estud. av. vol.25 no.71 São Paulo jan./abr. 2011
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142011000100004 

EcoDebate, 13/02/2012

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