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Dinheiro para a saúde: problema antigo e solução distante

 

Imposto sobre grandes fortunas, reforma tributária e fim de isenções fiscais são propostas para conseguir mais recursos.

Os problemas financeiros do Sistema Único de Saúde (SUS) costumam ser, desde a criação do sistema, assinalados como um grande entrave ao seu funcionamento.

Esta semana, com a regulamentação da Emenda 29 tão próxima de ser votada pelo Senado, o tema está ainda mais presente, e tem sido destaque em muitos momentos da 14a Conferência Nacional de Saúde. O evento contou com um debate específico sobre o assunto e os participantes apontaram e discutiram aqueles que consideram os dois maiores problemas em relação aos recursos financeiros para a área: a falta de dinheiro e a má gestão.

O médico sanitarista Gilson Carvalho, assessor do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), disse que o discurso de que só há problemas de gestão é majoritário. “É preciso cuidado, porque costumamos cair nessa: que o problema é a ‘robalheira’, são os desvios, é a má gestão. E não é bem assim. Tudo isso existe mesmo, mas esse não é o único problema”, disse.

O que falta

Gilson mostrou dados que demonstram a insuficiência financeira no país. De acordo com ele, os planos privados de saúde no Brasil dispõem de R$ 1.560 por pessoa. Fazendo as contas para toda a população brasileira, usando esse montante como base, o SUS precisaria de mais R$ 160 bilhões. “Temos hoje 138 bilhões, e precisaríamos de R$ 298 bilhões”, afirmou. Ele também comparou o Brasil a outros países: “Usei um estudo da Organização Mundial de Saúde analisando cerca de 200 países. Se usássemos o mesmo percentual do PIB per capita que eles, precisaríamos de mais R$ 60 bilhões, só para atingir a média. E se quiséssemos nos igualar aos países que têm o maior investimento, precisaríamos de nada menos que R$ 604 bilhões. Então, dizer que o Brasil já investe dinheiro suficiente em saúde é uma falácia. É preciso ter lógica nisso”, afirmou.

Para melhorar a gestão, o deputado Jorge Sola defendeu mudanças no modelo – incluindo o uso de fundações públicas de direito privado na saúde –, como forma de agilizar os processos e melhorar a transparência. Gilson Carvalho, no entanto, lembrou que a gestão da saúde é realmente complexa, e não apenas a gestão pública: “A privada também se perde muito. Recentemente, uma pesquisa realizada apenas em hospitais privados mostrou que quase 100% deles não tinham competência para acompanhar seus convênios e contratos realizados com terceiros. A dificuldade é real”, disse, completando: “Na ineficiência também entra o mau uso do dinheiro público, a corrupção. E há vários pólos de corrupção na saúde, além do desvio: é passar a frente na fila, exigir exames desnecessários, tudo isso é corrupção na saúde”.

Embate com o governo federal

Gilson também analisou o ponto que tem dificultado a regulamentação da EC 29: por um lado, militantes da saúde, governadores e prefeitos desejam um maior comprometimento do governo federal com o financiamento e defendem que no mínimo 10% das receitas correntes brutas da União sejam investidas em saúde, e, por outro, o governo federal faz pressão contra esse projeto, afirmando que não tem de onde retirar a verba. Gilson considera a proposta aprovada na Câmara (que não garante mais recursos para a saúde e que ainda pode vencer no Senado) “uma grande molecagem”: “É uma proposta ‘louca de pedra’. Fomos pedir mais dinheiro. Não só não nos deram mais dinheiro como ainda perdemos R$ 7 bilhões por ano”, criticou, referindo-se a um artigo da proposta que retira essa quantia do investimento de estados.

Para Gilson, é preciso lembrar que o financiamento da saúde é solidário, repartido entra as três esferas do governo e que, hoje, embora a União seja o ente que mais arrecada tributos, é o que menos investe em saúde. “Cerca de 45% dos recursos públicos na saúde são federal. Mais da metade – 55% – vem de estados e municípios”, afirmou. Para ele, é fundamental que a União tenha mais responsabilidade nesse sentido

O senador Humberto Costa, relator do projeto da Emenda 29 no Senado, disse que tem sido pressionado para colocar os 10% da União em seu relatório, mas que é impossível melhorar a saúde sem novas fontes de recurso. “Não temos só que dizer que precisa gastar determinado percentual. Não adianta só definir o percentual, tem que definir a fonte. De onde vamos tirar mais de R$ 30 bilhões de um ano para o outro? Vamos acabar cobrindo um santo e descobrindo o outro, e não queremos retirar dinheiro de outras áreas”, disse, interrompido por vaias da plateia. “Bom, vocês têm a opinião de vocês e eu tenho a minha”, completou o senador.

Tirar de onde?

Gilson Carvalho reconhece que o “nó” da questão é mesmo de onde retirar os recursos, mas, em sua avaliação, há maneiras de resolver o problema. Um ponto importante, para ele, seria acabar com as renúncias fiscais relacionadas a serviços privados de saúde no imposto de renda. “Perdemos R$ 12 bilhões todos os anos por causa disso”, falou, indicando também que é preciso fazer funcionar o ressarcimento dos planos de saúde ao SUS, o que nunca deu certo. Humberto Costa também falou a esse respeito, citando o gasto com planos privados para trabalhadores do serviço público: “Procurem saber quanto o poder legislativo gasta com o plano de saúde de seus funcionários, assim como o judiciário e o executivo, incluindo o Ministério da Saúde. Isso é justo?”, questionou.

O presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Artur Henrique, disse que os planos privados são sempre uma demanda dos movimentos sindicais, e que isso precisa ser revisto. “Esse debate precisa ser feito no interior do movimento sindical”, reconheceu.

Para Gilson Carvalho, também é importante a criação do imposto sobre grandes fortunas. Arthur Henrique disse que também defende a proposta, e mostrou qual poderia ser o impacto disso: de acordo com ele, as 5 mil famílias mais ricas do país detêm mais de 3% da renda total nacional, com patrimônio equivalente a 40% do PIB. Além destas, outras 300 mil famílias têm patrimônio de cerca de R$ 4,1 bilhões, correspondendo a 50% da riqueza brasileira. Se houver uma taxa de apenas 1,5% sobre isso, segundo Arthur, seriam arrecadados mais de R$ 40 bilhões.

Ele afirmou também que seria importante taxar o lucro remetido pelas transnacionais. “No ano passado, foram R$ 34,55 bilhões de remessa de lucro para as matrizes dessas empresas”, afirmou. Arthur defendeu ainda uma taxação maior sobre a herança – de acordo com ele, embora o percentual no Brasil deva ser de 8%, há estados que diminuem esse valor e, em São Paulo, se quer chegar a apenas 2,5%. Por fim, o sindicalista defendeu também que meios de transporte além dos automóveis também sejam taxados. “Hoje quem tem carro, mesmo simples, paga imposto. Mas quem se locomove de helicóptero, jatinho e lancha, não. Temos que enfrentar isso de uma vez por todas”, afirmou, reconhecendo, no entanto, as dificuldades políticas disso. “É preciso, para conseguir isso, fazer também uma reforma política. Porque sabemos que parte dessas 5 mil famílias mais ricas financiam candidatos de todos os partidos para elegerem parlamentares que vão votar essas leis”.

Reforma Tributária

Francisco Fúncia, consultor técnico da Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (Cofin), afirmou que um dos caminhos para melhorar o financiamento passa por rever o projeto de reforma tributária que tramita hoje no Congresso (LINK), que, de acordo com ele, não é o mais adequado para atender às necessidades gerais do país, e da saúde em particular. “Primeiro porque extingue as contribuições sociais. Essas contribuições vinculadas à seguridade social foram uma grande conquista da Constituição de 1988, já que dá ao orçamento da seguridade fontes próprias. A reforma, que propõe a construção do Imposto de Valor Adicionado (IVA), vai retirar algumas delas”, explicou.

Outra questão relacioanda à reforma tributária é, segundo Fúncia, a necessidade de aumentar a tributação direta – que onera patrimônio, renda e riquezas – e diminuir a indireta – que onera a produção e o consumo. “Quando se fala em aumentar tributos, a primeira reação da população é dizer que não, que ‘já pago muito imposto’. É verdade. Se aumentarmos a carga, dentro da estrutura que temos hoje, quem vai pagar mais é quem já está pagando. Só que isso tem que ser mudado. É preciso onerar mais os mais ricos”, disse, propondo que se aumentem as faixas de rendimento tributáveis.

Responsabilidade sanitária

O senador Humberto Costa defendeu uma lei de responsabilidade sanitária, nos moldes da existente lei de responsabilidade fiscal (também já existem projetos parecidos na educação). “Precisamos fazer com que as decisões e pactos tenham um valor legal que permita à população cobrar. O que adianta estabelecer uma meta de redução de mortalidade, se depois do prazo a meta não é atingida e não acontece nada? A única sanção que se pode ter hoje é justamente a que prejudica a população: o corte de recursos”, afirmou, dizendo que tanto secretários de saúde como prefeitos, governadores e presidentes da república precisam ser penalizados.

O deputado Jorge Sola concordou: “A lei de responsabilidade fiscal diz que se o prefeito gasta mais do que o limite, tem penalidades. O que acontece muito é que, para não ser penalizado, ele fecha hospitais, demite trabalhadores. Porque não tem uma lei que penalize quem fecha posto de saúde para pagar as contas”, criticou.

Implantar realmente o modelo do SUS

Para Gilson Carvalho, as soluções propostas são interessantes, mas não suficientes. De acordo com ele, para aproveitar melhor os recursos, também é preciso realmente implantar o SUS. “Não estamos fazendo o SUS de fato. Defendemos o modelo que está na Constituição – foi uma briga nossa, uma luta de décadas para fazer de um jeito diferente. Para não só tratar doentes, mas evitar que as pessoas fiquem doentes. Não estamos fazendo isso. Não temos que ficar enchendo as pessoas de remédio, pedindo exame desnecessário”, criticou, completando: “Eu fico ‘encucado’, por exemplo, com o consumo de medicamentos. Gastamos R$ 70 bilhões por ano só com remédios. Somos a sociedade mais medicalizada do mundo. Quanto aos exames, 90% dos resultados de exames não dão anormalidades. Em qualquer país do mundo, quando esse percentual chega a 20% ou 30%, já tem inquérito administrativo, auditoria. Essa é uma discussão que temos que fazer. Para fazer saúde ‘errado’, nunca vai ter dinheiro que chegue”.

Leia mais sobre a 14ª Conferência Nacional de Saúde aqui

Informe da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV / Fiocruz), publicado pelo EcoDebate, 06/12/2011

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