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Artigo

A confusão urbana, acima e abaixo do solo, artigo de Washington Novaes

 

[O Estado de S.Paulo] Quem se dá ao trabalho de acompanhar as notícias é provável que se impressione com a desarticulação entre várias políticas que regem a vida dos cidadãos nas maiores cidades – cada uma atira para um lado e, somadas, provocam complicadas e indesejáveis consequências na vida das pessoas. É o caso, entre muitas, das políticas de transportes, construção de veículos, expansão urbana, combustíveis, controle da poluição do ar, manutenção de infraestruturas urbanas.

Pode-se começar pela área dos transportes. Segundo este jornal (20/10), só na primeira quinzena de outubro foram fabricados no País mais de 150 mil veículos e se espera para o mês todo que as vendas atinjam patamar semelhante ao de setembro (311,6 mil veículos); no ano, com aumento de 7% em relação a igual período de 2010, já são 2,83 milhões, mais 7%, nível recorde. A frota nacional já está além de 35 milhões. Só em São Paulo, mais de 7 milhões. E até 2015 novas fábricas e ampliação das atuais deverão acrescentar mais 2 milhões de veículos à produção anual, que hoje está em torno de 4,3 milhões, incluindo também caminhões, ônibus e comerciais leves. Ótimo para a economia, pensarão muitos. Mas que acontecerá nas cidades?

São Paulo, por exemplo, já tem um dos mais baixos índices de mobilidade urbana no País (Mobilidade Brasil, 14/10), pior que os de todas as cidades maiores, onde as questões já são graves. Uma das razões decorre de a frota de coletivos estar estagnada há anos, enquanto a população aumenta e sobe o número de automóveis. No Recife, onde a frota de veículos se aproxima de 1 milhão, um deslocamento de 22 quilômetros em transporte público leva duas horas. Em Goiânia (O Popular, 15/10), a velocidade média da frota de ônibus caiu 28% em três anos, para menos de 20 quilômetros por hora. Nesse período, a frota de automóveis e motocicletas na cidade cresceu 75%. E ainda há incentivos fiscais para a compra de veículos novos.

Também contribui para o drama dos transportes o fato de a rede ferroviária nacional responder hoje por menos de 30% do transporte de cargas – inclusive por causa do sucateamento a que foi submetida em parte, após as privatizações. Com isso é cada vez maior o transporte por caminhões, ajudando a atravancar o trânsito das cidades: em nove meses deste ano, o licenciamento desse tipo de veículo aumentou 15,9%, segundo a Anfavea (Estado, 16/10), e chegou a quase 130 mil unidades. Mas a frota, na média, ainda é muito antiga (média de 22 anos) e contribui fortemente, por esse motivo, para a poluição do ar urbano.

Quem acha que motos são um complicador no trânsito se assusta ao saber que suas vendas superarão as de automóveis em 2012 e que em dez anos haverá mais motos que carros nas ruas, segundo o Ipea (Estado, 26/5). Lembrando que uma moto pode emitir até 40 vezes mais poluentes que um automóvel e que esses veículos já são responsáveis pelo maior número de mortes em acidentes.

Nem mesmo caminhos legais são aproveitados para enfrentar questões da mobilidade e da poluição. Na cidade de São Paulo, 30% a 35% dos carros e motos estão em situação irregular e poderiam ser retirados das ruas. Mas apenas 100 mil estão apreendidos. O vice-governador Afif Domingos, segundo quem “a mobilidade em São Paulo é zero” (Estado, 21/2), promete que em dois anos serão implantadas “desmontadoras” para enfrentar o problema. Como? E até lá?

Chega-se aos combustíveis, com a redução do etanol na mistura com gasolina de 25% para 20% – o que aumentará a poluição do ar -, mesmo com o Brasil agora importando etanol de milho dos EUA. Nossos produtores de etanol responsabilizam por isso a política de energia, que mantém o preço do seu produto vinculado ao da gasolina, mantido em níveis considerados irreais para não estimular a inflação. Mas continuamos exportando etanol para a Califórnia (Estado, 20/10) e importando de outras áreas norte-americanas. E mantendo o Cerrado excluído das áreas onde não pode haver expansão da cana-de-açúcar. Com isso o bioma já perdeu a vegetação originária em metade de sua área e contribui com parcela relevante das emissões brasileiras que ajudam a intensificar mudanças climáticas.

Por aí entra mais um ângulo das relações com as políticas urbanas. Segundo a Cetesb, 11 de 14 regiões da cidade apresentaram padrões inadequados de poluição, principalmente material particulado. Na Grande São Paulo, a qualidade do ar foi considerada imprópria em 259 dias de um ano. As emissões de dióxido de carbono entre 1990 e 2008 no Estado de São Paulo aumentaram 58% (Estado, 26/4), passaram de 60,7 milhões de toneladas anuais para 95,7 milhões, e os veículos respondem por quase metade do aumento. Em um único ano os veículos emitiram 14,1 milhões de toneladas, mais que a indústria (13,4 milhões de toneladas). Registraram-se índices 392% mais altos que os recomendados pela Organização Mundial da Saúde (Estado, 1.º/8). No ano que vem entra em vigor resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente que pretende baixar o nível tolerável de enxofre para um décimo do atual. Será cumprida?

Nossas grandes cidades, em meio a tudo isso, ainda vivem atormentadas por enchentes, que também nos levam ao andar de baixo e aos problemas que ali estão. Este jornal informou (16/10) que sob as calçadas paulistanas estão 115 mil quilômetros de tubulações (quase três vezes e meia a volta à Terra), incluindo redes de água e esgotos (34 mil km), 4.700 km da rede de gás, 38 mil km da rede telefônica, 2,7 mil da energia elétrica, 1,5 mil das telecomunicações, etc. Dividem o espaço com 9,2 milhões de passageiros que usam o transporte subterrâneo. Cáspite!

Muitos administradores repetem (sem dar consequência) a frase dita há muito tempo por um sociólogo: o Estado tornou-se pequeno para resolver os megaproblemas de hoje; e, grande demais, não consegue chegar perto das questões que afligem o cidadão comum no seu cotidiano. É isso aí.

Washington Novaes, jornalista. E-mail: wlrnovaes@uol.com.br

Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo.

EcoDebate, 01/11/2011

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