EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Artigo

Mata ciliar – parte I: da metragem ao sonho, artigo de Osvaldo Ferreira Valente

 

[EcoDebate] É mais do que conhecido o fato de os conceitos ficarem prejudicados quando as discussões se acirram. Nos embates recentes sobre o novo Código Florestal, onde a emotividade já superou qualquer limite racional, os conceitos viraram uma salada de componentes altamente indigestos. E aí aparece a mata ciliar, coitada, que virou a heroína capaz de, sozinha, salvar os nossos recursos hídricos. Já escrevi, há tempos, um artigo falando sobre as angústias da mata ciliar, onde, tendo voz, ela reclamava de expectativas que ela não teria condições de atender.

Mas, antes de tudo, vamos falar um pouco sobre conceitos relacionados com a mata ciliar. Ela é composta essencialmente de vegetação arbórea, típica da região, que ocupa uma faixa em torno de nascentes e corpos d’água, chamada de área ripária. Riparia é uma palavra que pode ser derivada do adjetivo “ripário”, que significa marginal, ou seja, em nosso caso, marginal aos corpos d’água. Há informações, também, que a origem é latina e está relacionada com bancos de areia. Em nenhum deles, evidentemente, há referências a metragens. Estas foram invenções dos formuladores do Código Florestal de 1965, que acharam que a lei, para ser aplicável, com os conhecimentos e as ferramentas disponíveis na época, precisava de uma ferramenta prática para ser operacionalizada. Vieram os números, que não demonstravam nenhuma base científica, por mais que alguns tentem, nos dias de hoje, provar o contrário. Mas mesmo que aceitássemos as bases científicas da época, elas não fazem mais sentido atualmente, pois de lá para cá houve uma revolução nas tecnologias relacionadas com o assunto, tornando as metragens um atentado ao pensamento lógico. As árias ripárias de interesse ambiental só deveriam ser definidas em zoneamentos agroecológicos, no meio rural, e nos planos diretores das cidades, guardadas as peculiaridades dos ecossistemas locais e dos processos produtivos e de ocupação. Metragens puras e simples, ainda mais sendo as mesmas para todos os biomas e ecossistemas brasileiros, em nosso estágio científico e tecnológico, são burrices imperdoáveis.

Esclarecido o posicionamento físico da mata ciliar e feitas algumas considerações pertinentes, vou prosseguir falando um pouco sobre o seu comportamento ambiental e hidrológico. Comecemos pela compreensão da Figura que faz parte deste artigo.

Nela está representada a encosta de uma pequena bacia hidrográfica mantenedora de um córrego. Se há uma nascente e um córrego, fica caracterizada a presença de um aquífero (lençol) subterrâneo responsável pelos respectivos abastecimentos. Normalmente, nas condições brasileiras, o aquífero formador e mantenedor é freático, ou seja, ele está livremente apoiado sobre camada de rocha impermeável (ci) e apresenta variações de volumes armazenados entre períodos consecutivos de chuvas e de estiagens. Nos aquíferos confinados, também conhecidos como artesianos, as variações tendem a ocorrer em períodos mais longos. Durante as chuvas, parte dos volumes precipitados pode escoar sobre a superfície formando as enxurradas (ex), indesejáveis por promoverem erosões, cheias, alagamentos e inundações. Outra parte infiltra (f) no solo e pode chegar ao aquífero (aq), garantindo vazões do córrego (c) durante os períodos de estiagens. Quanto mais água no aquífero, tanto melhor, portanto.

Um detalhe importante a ser observado na Figura é o fato de o aquífero poder, teoricamente, receber água infiltrada em toda a superfície da pequena bacia e não só nos topos de morro e nas áreas ciliares. Não sei de onde veio o conceito, citado constantemente, que área de recarga de aquífero é o topo de morro. No caso, a maior área superficial de abastecimento do reservatório subterrâneo está sendo usada para exploração agropecuária (ag). Os aquíferos, quando mantenedores de nascentes e córregos, têm inclinações em relação a estes, mesmo que pequenas, facilitando a movimentação da água infiltrada em suas direções, conforme indicam as setas posicionadas ao longo do aquífero representado não Figura.

Mata ciliar - parte I: da metragem ao sonho, artigo de Osvaldo Ferreira Valente
(Figura)

c – córrego ac – área ciliar

tm – topo de morro ag – área de exploração agropecuária

ci – camada impermeável ex – enxurrada

f – infiltração aq – aquífero subterrâneo

Figura – Ciclo hidrológico aplicado à encosta de uma pequena bacia hidrográfica

Ninguém pode renegar os benefícios ambientais promovidos pela mata ciliar (na posição ac da Figura), incluindo, certamente, o acolhimento da biodiversidade regional, o abrigo da fauna, a participação nos corredores ecológicos, a garantia de proteção do leito maior dos cursos d’água e alguma proteção da qualidade da água que ocorre em tais faixas das superfícies das bacias hidrográficas. Mas muitos insistem em generalizar a sua importância quanto à manutenção de quantidades de água nas nascentes e nos cursos d’água. O que eu quero deixar claro é o seguinte: a mata ciliar, do jeito que está definida no antigo Código Florestal e no novo proposto, não tem nenhuma ação positiva no aumento de quantidade de água das nascentes, dos córregos e dos poços provenientes dos lençóis freáticos, em épocas de estiagens. A quantidade de água infiltrada nessas pequenas faixas marginais é rapidamente drenada (vide Figura ) e atinge os mesmos pouco tempo depois das chuvas, não restando nenhum armazenamento para os períodos de estiagens. Às vezes somos enganados pela condição de umidade constante em tais faixas, mesmo em época de seca na região, atribuindo tal umidade à infiltração nelas ocorrida no período antecedente de chuvas , quando, na verdade, tal umidade é mantida pela água infiltrada em outras áreas da pequena bacia hidrográfica e que se movimenta lentamente em direção das nascentes e dos córregos. As faixas onde se encontram as matas ciliares são áreas de passagem da água do lençol em sua caminhada para os pontos de emergência e, por essa condição de contínua alteração e movimentação, são conhecidas como “áreas de contribuição dinâmica”. Os princípios hidrológicos, portanto, derrubam o sonho acalentado por muitos, ou seja, o de usar os serviços ambientais das matas ciliares para aumentar a produção de quantidade de água de nascentes e córregos.

Sei que a esta altura muitos já estão pensando na produção de água das nascentes e dos córregos que se encontram em pequenas bacias cobertas de matas naturais e gostariam de perguntar: 1) Afinal, qual é a relação das matas naturais com a quantidade de água produzida em suas áreas de ocorrência? 2) As matas ciliares também não são matas naturais?

Em outro artigo, a ser publicado aqui mesmo e em breve, prometo comentar as interações entre a vegetação e a água no solo e no subsolo das zonas ripárias. Vou discutir, também, as diferenças de comportamentos hidrológicos entre bacias hidrográficas florestadas e aquelas com atividades agropecuárias e matas ciliares. A intenção é, se possível, iniciar uma discussão mais técnica sobre o assunto, com linguagem de divulgação científica, para facilitar a participação e compreensão daqueles que não podem ou não querem mergulhar nos textos publicados sobre o assunto nas revistas científicas.

Osvaldo Ferreira Valente é engenheiro florestal, especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas e professor titular, aposentado, da Universidade Federal de Viçosa (UFV); colaborador e articulista do EcoDebate. valente.osvaldo@gmail.com

EcoDebate, 09/09/2011

[ O conteúdo do EcoDebate é “Copyleft”, podendo ser copiado, reproduzido e/ou distribuído, desde que seja dado crédito ao autor, ao Ecodebate e, se for o caso, à fonte primária da informação ]

Inclusão na lista de distribuição do Boletim Diário do Portal EcoDebate
Caso queira ser incluído(a) na lista de distribuição de nosso boletim diário, basta clicar no LINK e preencher o formulário de inscrição. O seu e-mail será incluído e você receberá uma mensagem solicitando que confirme a inscrição.

O EcoDebate não pratica SPAM e a exigência de confirmação do e-mail de origem visa evitar que seu e-mail seja incluído indevidamente por terceiros.

Alexa

11 thoughts on “Mata ciliar – parte I: da metragem ao sonho, artigo de Osvaldo Ferreira Valente

  • Nerio Jorge Susin

    Osvaldo, foi com imenso prazer que li o teu artigo. Concordo plenamente com as tuas colocações. Uma coisa é a técnica embasada sobre conhecimento científico do meio físico, outra, muito diferente, é a imposição quase teológica sobre o funcionamento de determinadas partes de um ecosistema.
    O perigo em se estabelecer uma legislação embasada sobre conceitos praticamente teológicos/políticos (sem necessariamente uma ligação com a realidade) é de que esta venha a cumprir um papel diverso daquele inicialmente previsto. Parabéns pela clareza dos conceitos aqui expostos e aguardo o teu próximo artigo

  • Samuel Marcos Dourado

    Sou Pres. da ADESAM- Associação para o Desenvolvimento Sustentável da Alta Mogiana( região formada por cerca de 29 municípios ao nordeste paulista, depois de Rib. Preto até as margens do Rio Grande), com sede em Miguelópolis-SP.

    Acompanhamos o debate sobre o Novo Código Florestal e, sua contribuição neste momento é relevante e esclarecedora.

    Nossos cumprimentos.

    Atenciosamente,

    Samuel Marcos Dourado.

    15- 9171-7651

  • Álvaro R Santos

    Caro Professor,
    Agradeço-lhe a aula. Como é salutar ler/ouvir palavras sensatas que vêm de conhecimento abalizado e do cultivo à independÊncia do pensamento.
    Para que ódios não se precipitem sobre mim adianto que sou a favor da manutenção das matas ciliares. Mas não, como salientou nosso sempre admirado Prof. OFV, pelas mirabolantes funções que lhe são delegadas, mas pelo real papel que cumprem.
    Complemento a exposição do professor: um dos principais papéis cumpridos pela mata ciliar imediatamente situada às margens dos cursos d’água está na proteção dessas margens contra o solapamento, proteção promovida pela estruturação do solo decorrente do entrelaçamento das raízes. Sobre a redução da erosão/assoreamento, há muita desinformação e balela. Quem trás os sedimentos assoreadores para os cursos d’água são seus afluentes, principalmente, e enxurradas localizadas intermitentes. Ou seja, a mata ciliar não cumpre as funções de um filtro de sedimentos. Combate-se a erosão com manejo agrícola (ou urbano, se for o caso) e técnicas conservacionistas aplicadas regionalmente, não localizadamente.
    De qualquer forma, as matas ciliares devem ser preservadas e recuperadas. São corpos florestais sde incrível beleza e de grande riqueza vegetal e animal. Não fosse por seu papel físico e ecológico, defendo-as ao menos pela mágica lembrança que delas guardo, desde quando, inseparável de meus estilingues e de minhas varinjhas de pescar, as percorria, deslumbrado e feliz, ao longo dos “córgos” da Alta Mogiana paulista.
    Abraços,
    Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos

  • Osvaldo Ferreira Valente

    Meu Caro Álvaro: Obrigado pelo comentário. Sou leitor e admirador de seus textos, como o sou, também, dos artigos do Edézio, nosso amigo comum. Vocês são geólogos de primeira linha. Mas, Álvaro, não sou contra a mata ciliar, você deve ter percebido. Sou contra a metragem, aí sou. Pelo menos a metragem nacionalizada. O que estou tentando fazer é aproveitar a insensatez dominante para discutir o assunto mais tecnicamente. Não sou dono da verdade e temos muito pouca coisa feita no Brasil sobre hidrologia aplicada a pequenas bacias (os norte-americanos já fazem pesquisas sistematizadas desde princípios dos século passado). Tento usar as minhas próprias experiências de mais de 40 anos lidando com o assunto e garimpar algumas coisas aqui e ali. Tento trazer a discussão para o lado mais objetivo e lógico. Quando vejo pessoas como você e os outros que comentaram se interessarem pela discussão, já me sinto feliz e estimulado a continuar com mais artigos

  • Álvaro R Santos

    Sim, caro Osvaldo, havia entendido sua posição e com ela concordo integralmente.
    Ainda que de forma não sistematizada e não objetivada, sou de opinião que já acumulamos massa crítica técnico-científica suficiente para gerar ótimas legislações de uso do solo, seja no meio rural, seja nas cidades.
    O maior obstáculo está na histórica dificuldade de dotar esse conhecimento de força política capaz de constitui-lo na voz maior para a produção desses textos legais.
    De qualquer forma, estou mais otimista do que em passado próximo, acho que passos importantes têm sido dados na direção que todos almejamos. Temos que continuar intervindo, quer sejamos chamados ou não. E sua voz, caro amigo, traz uma força imensa nessa caminhada, e nos anima todos a prosseguir. Chegaremos lá.
    Abs
    Álvaro

  • Vinicius Nardi

    Artigo muito interessante sobre as funções da APP de margem de rio, envolvendo um pouco das funções das encostas e topos de morro, de uma forma concisa, simples e técnica.

    Na verdade o atual Código Florestal de 1965 e o projeto do novo, nenhum dos dois tem fundamentos técnico/científicos. Os dois são ruins.

    É impossível fazer uma regra geral, com uma determinada metragem, que funcione em todo o país ou até mesmo em um pequeno município, pois em questão de alguns metros de distância os terrenos são totalmente diferentes, portanto as normas teriam que ser totalmente diferentes.

    Porém, pelo artigo acima podemos ver que não é nenhum bicho de sete cabeças. É perfeitamente possível fazer algo com fundamentos técnico/científicos que funcione.

    BASTA DEFINIR APENAS QUAIS SÃO AS FUNÇÕES DE CADA TIPO DE APP, nada de metragens gerais, e exigir de todo e qualquer empreendedor, pequeno ou grande, rural ou urbano, que faça um projeto, usando técnicas e compensações, que MANTENHAM AS FUNÇÕES PRETENDIDAS naqueles locais específicos onde será implantado o empreendimento.

    Parece-me que o principal problema de não quererem fazer isto é o MEDO de que isto poderia abrir espaço para trambiques e corrupção – TeC, mas devemos lembrar que a forma como está sendo feita também dá espaço para TeC, portanto o problema é o TeC e não a maneira como se faz a norma.

    Sendo assim, vamos lutar contra o que está errado, o trambique e a corrupção, e não tentar compensar um erro FAZENDO MAIS UMA COISA ERRADA ao inventar uma norma geral excessivamente restritiva (pois teria que pensar no pior caso), sem fundamentos técnico/científicos, pois aí a norma perde credibilidade, não é sustentável, não é economicamente viável, não é socialmente justa e, no final, por não poder ser culturalmente aceita pelos prejudicados, acaba gerando uma resistência muito grande, afasta os empreendimentos legais controlados e abre espaço para o descontrole, invasores e criminosos, MUITOS TRAMBIQUES E CORRUPÇÃO, sendo que aí sim não consegue alcançar o objetivo ecologicamente correto e sim a devastação.

    É PRECISO TER CORAGEM PARA FAZER A COISA CERTA.

    Vinícius Nardi
    v.nardi@ig.co,.br

  • Pier Antonio Miglio

    O artigo é muito esclarecedor, realmente merece aprofundamento.
    Gostaria que nos próximos artigos tivesse algum comentário sobre as APPs das hidrelétricas (100 m).

  • Eu penso nos efeitos de borda de fragmentos florestais com formatos estreitos e compridos, o caso das atuais apps de 30 metros ou ainda mais estreitos. Os efeitos de borda podem aniquilar um fragmento florestal!
    Realmente, a contribuição das matas ciliares na recarga dos reservatórios de água pode não ser tão expressiva como foi explanado, as matas ciliares além de serem corredores e abrigo da fauna e flora, são garantidamente essenciais a proteção do relevo aos diversos tipos de erosão e solapamento das margens das calhas dos rios, o que por ventura causa o seu entupimento e e piora a qualidade daquele recurso hidrico, mas o que pega mesmo é questão da FRAGMENTAÇÃO FLORESTAL, um fragmento muito estreito (uma app estreita conservada) pode sofrer muito com o ressecamento e outros efeitos de borda, isso deve ser pensado. A floresta é um ecossitema e não um bando de árvores plantadas ou nascidas. Fica a minha contribuição. Muito bom o debate.

  • É o que sempre venho dizendo o grande problema que o Brasil tem de resolver, em todos os sentidos, é o de engenharia,desde a segurança,transportes,infraestrutura,portos,aeroportos, e lógico as questões agrícolas e florestais.A questão do debate do “Código Florestal”não é poética,teológica ou política é questão pura e simples de engenharia florestal.Há se um dia os políticos e a mídia em geral nos escutasse?, que bom sería. Pois lá fora nos países desenvolvidos, eles nos houvem,engenheiro florestal é isso aí.

  • Nada como fatos, ciência…parabéns pelo artigo esclarecedor. Pena que justamente quem precisaria lê-lo, não o fará!

Fechado para comentários.