EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Artigo

O fundamentalismo do mercado, artigo de Montserrat Martins

[EcoDebate] O Papa é contra a camisinha e até contra a pílula, mas isso não significa que os quase 70% de brasileiros católicos sigam essa sua orientação, na prática. É mais comum a falta de uso da camisinha, entre nós, por negação dos riscos. Na França, ao contrário, haveria 70% de ateus e se for verdade que a camisinha é mais usada lá, em comparação com o Brasil, isso não se deve a motivos religiosos, mas sim culturais e educacionais, no auto-cuidado com a saúde. Nesse exemplo, fica clara a supremacia de valores culturais sobre os religiosos no comportamento das pessoas na prática, independente do que dizem as teorias e doutrinas com as quais se identificam.

Da mesma forma, com o número estimado de 4 milhões de participantes da Parada Gay, em São Paulo (em números, aliás, a maior do mundo), fica difícil sustentar que o povo brasileiro, que em sua maioria tem alguma fé religiosa, concorde com as teorias das Igrejas que poderiam ser consideradas homofóbicas (Veríssimo já ironizou, inclusive, que os gays seriam a salvação da instituição casamento, hoje). Os antropólogos registraram, há bastante tempo, que o Brasil ainda é uma das nações – em comparação com as demais – nas quais existe razoável tolerância com as diferenças. Sim, podemos ter inúmeros defeitos, mas são conhecidos os extremos das discriminações raciais e sexuais em outros povos, que não se repetem aqui na mesma intensidade.

Muitos intelectuais, em seu cientificismo, vêem a religiosidade como uma mera expressão de ignorância diante de fenômenos que a ciência explicaria melhor. Pesquisas sociológicas no Brasil identificaram que os indivíduos das classes economicamente mais favorecidas são majoritariamente ateus, agnósticos ou simpatizantes de doutrinas orientais (zen-budismo, por exemplo), nas classes médias predominam católicos e espíritas e nas classes mais humildes, os evangélicos. Mas mesmo essas correlações econômicas são relativas, diante das culturais, pois faltaria explicar porque o povo norte-americano (com alto poder aquisitivo, comparativamente) segue sendo em sua maioria religioso (mesmo com todas as contradições disso, com sua cultura belicosa).

Independentemente das pesquisas, ou das teorias dos intelectuais, o que encontrei até hoje no meu trabalho diário, na condição de médico, não foram pessoas intolerantes com as diferenças, qualquer que fosse a classe econômica da clientela que eu atendi. Encontrei relativamente poucas que se enquadrariam no rótulo de “fundamentalistas” religiosas, fanáticas no sentido da incapacidade de argumentar racionalmente, em três décadas de convívio com a população, nos mais diversos locais de trabalho (públicos e privados), . A maioria, seja qual for a sua fé e os seus dogmas, segue tendo amizades ecléticas e alguma flexibilidade em seus pontos de vista sobre o comportamento.

Há um tipo de fundamentalismo, no entanto, que não tem sido detectado como tal, embora produza resultados sociais importantes. Eu o chamaria de “fundamentalismo do mercado”, do pragmatismo dos resultados econômicos nas condutas que escolhemos ter.

Um exemplo é o argumento de que a regulamentação do uso da maconha permitiria ao Estado cobrar impostos e inibiria o crime (usado na Califórnia, durante o plebiscito a respeito). Um argumento ingênuo, pois não deixaríamos de ter traficantes ‘piratas’ cobrando mais barato que as farmácias que fossem autorizadas para a venda, no caso. Mas o mais importante, nesse tipo de argumento, é o momento em que deixamos de lado as questões que temos a enfrentar do ponto de vista médico, psicológico, sociológico, filosófico, etc, e passamos aos argumentos econômicos.

É hora de reconhecer que estamos diante de uma nova religião, a do Deus Mercado, com seus fundamentalistas e tudo o mais incluído.

Montserrat Martins, colunista do EcoDebate, é Psiquiatra.

EcoDebate, 01/07/2011

[ O conteúdo do EcoDebate é “Copyleft”, podendo ser copiado, reproduzido e/ou distribuído, desde que seja dado crédito ao autor, ao Ecodebate e, se for o caso, à fonte primária da informação ]

Inclusão na lista de distribuição do Boletim Diário do Portal EcoDebate
Caso queira ser incluído(a) na lista de distribuição de nosso boletim diário, basta clicar no LINK e preencher o formulário de inscrição. O seu e-mail será incluído e você receberá uma mensagem solicitando que confirme a inscrição.

O EcoDebate não pratica SPAM e a exigência de confirmação do e-mail de origem visa evitar que seu e-mail seja incluído indevidamente por terceiros.

Alexa

One thought on “O fundamentalismo do mercado, artigo de Montserrat Martins

  • Fundamentalismo de Estado é pior. Do mercado ainda fazemos parte, do Estado, só a facção que está no poder. Os demais servem e são explorados através dos impostos mais altos do mundo.

Fechado para comentários.