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Mudar o Código Florestal é mais fácil, artigo de Rafael Feltran-Barbieri

[EcoDebate] Por disciplinar a preservação de remanescentes de ecossistemas em propriedades particulares, o Código Florestal é presumivelmente polêmico e reaviva de tempos em tempos a celeuma entre tutelar o meio ambiente ou romper com as restrições ambientais para ampliar a riqueza agropecuária, como se realmente fossem excludentes.

No recente embate, a singularidade da discórdia não está na ativa participação de cientistas de ponta que deixaram de lado convicções popperianas para atenderem à demanda social, manifestando seu apoio favorável ao Código original em publicações na revista Science. A surpresa vem do outro lado, na figura do Dep. Aldo Rebelo, e nem tanto pela posição assumida mas pelos argumentos defendidos.

Evocou primeiramente um pressuposto que parece advindo da Teoria do Imperialismo, às avessas. Naquela, surgida e consagrada nas primeiras décadas do século passado, a expansão capitalista era interpretada como um neocolonialismo baseado na exportação de capital para os países pobres, justificada pela busca casada de altas taxas de lucro, já que os salários seriam baixos, e garantia de alocação de fatores na produção de commodities que interessavam aos mercados internacionais monopolizados. Hoje, pelo contrário, países desenvolvidos estariam diante da necessidade de sabotar a alta eficiência do Sul, que ameaça a agricultura artificialmente rica por obrigar subsídios crescentes a um setor bem pouco competitivo. Nesse sistema as ONGs ambientalistas do hemisfério Norte, onde não existem leis similares ao nosso Código Florestal, prestariam a seus governos defendendo a preservação tropical como meio indireto de restringir nossa agricultura para afrouxar a deles.

Mas essa ameaça externa, que se tornou hino na voz da Senadora Kátia Abreu, é menos importante que um problema doméstico, passível de ser equacionado internamente: uma vez que quase todas as propriedades rurais no Brasil estão em desacordo com a lei – ainda que a maioria tenha sido formada na vigência do Código – e que os pequenos estabelecimentos são os mais penalizados por ela, então os inimigos a serem combatidos são as Áreas de Preservação Permanente (APP), que, ao não distinguir minifúndios de latifúndios, torna impraticável a agricultura dos mais pobres, assentada sobre matas ciliares e várzeas.

O que não se discute, porém, é que existe pelo menos uma razão plausível para a obrigatoriedade indistinta na proteção dessas áreas naturalmente vulneráveis, sem se recorrer à óbvia proteção da biodiversidade, alheia às nossas divisões patrimoniais: desastres ambientais não ocorrem somente nas grandes fazendas. Pelo contrário, economistas como Martínez Alier alertam para o fato de que são os pobres os mais afetados pelos eventos naturais adversos, justamente por habitarem zonas periféricas. E tudo se agrava onde Agricultores Familiares têm mais dificuldades de obterem crédito e seguro agrícola, e não dispõem de poupança para ser consumida após o comprometimento de suas terras por inundação ou desmoronamento.

Sem levar isso em conta, a proposta de Rebelo é para o meio rural o que seria desistir dos planos diretores porque inaplicáveis, relaxando as restrições ambientais de uma grande cidade e legalizando áreas de risco com a justificativa de que quase todos os marginalizados já dependuraram suas casas sobre elas. A outra solução para esse caso seria a proteção da população por meio de remoção consensual, que por mais difícil, é a única possível já que com a natureza não se negocia. Mas Aldo Rebelo não propôs o mesmo para os pobres do meio rural porque isso constituiria Reforma Agrária, e a matéria é infinitamente mais áspera.

Conceber o problema como uma obstrução imposta por florestas e cerrados ajuda, ao menos, a esclarecer como o Deputado do PC do B se tornou inusitadamente parceiro da bancada ruralista, e reverenciado por instituições da agricultura patronal que combatem o suposto “greenwashing” com um “GDPlenty” – com o perdão desse neologismo – que trata de sufocar os desmatamentos com a retórica da fartura do PIB agropecuário.

Nessa trama o caso do etanol é o mais elucidativo. À primeira vista é de causar estranheza que um dos principais apoios à proposta de Rebelo esteja vindo do setor brasileiro que mais conquistou reconhecimento internacional pela capacidade de convergir produção energética com combate às mudanças climáticas. Basta, porém, uma consulta ao último Censo Agropecuário do IBGE para que se desfaça a aparente contradição. Os estabelecimentos produtores de cana-de-açúcar no Brasil e, particularmente no Estado de São Paulo, são aqueles que apresentam o menor índice de preservação de fragmentos florestais nativos, especialmente dos que deveriam estar protegidos em APPs e Reservas Legais. A conservação é menor até mesmo do que nas propriedades com soja e pecuária.

Fonte: IBGE (2009). Censo Agropecuário 2006.
Fonte: IBGE (2009). Censo Agropecuário 2006.

A eventual mudança para um Código Florestal mais permissivo à depredação traria dois gigantescos benefícios ao setor. Primeiro, a imediata legalização de boa parte dos estabelecimentos produtores, acompanhada pela dramática redução de custos de recuperação e adequação daqueles que, ainda assim, não teriam matas e cerrados suficientes para atender às menores exigências da lei modificada. Segundo, e principalmente, esse engajamento forjado pelo Código relaxado surgiria como novo trunfo de autopromoção: o etanol brasileiro é socialmente responsável porque comprometido com as leis de seu país, e ambientalmente justo ao cumprir sobretudo as leis de proteção da natureza – algo que ainda não se pode declarar publicamente.

Uma das soluções alternativas a essa manobra poderia ser uma proposta de produção sustentada e séria já defendida pelo próprio setor sucroenergético: existem no país 100 milhões de hectares de pastagens subutilizadas, das quais 7% seriam suficientes para duplicar os canaviais brasileiros sem precisar desmatar uma árvore sequer. Sobraria espaço para dobrar também a área de soja, milho, arroz e feijão e ainda aumentar a lotação média dos pastos para índices mais condizentes com a posição brasileira de superpotência agrícola. Mas estranhamente o argumento tão propalado no exterior já não se ouve mais por aqui.

Seria preciso que líderes do porte de Rebelo retomassem o argumento e assegurassem que fosse posto em prática em benefício do etanol, dos grãos e da produção agrícola geral. José Bonifácio há 200 anos elucidou que a prostração da agricultura brasileira não se justificava pela presença de matas, mas pela ausência de suporte ao agricultor. Ao invés de propor a deterioração do Código poderiam nossos homens públicos se inspirarem naquele para lutar pelo aumento significativo no orçamento de centros de excelência em pesquisa, como a Embrapa, e reivindicar barateamento do crédito, ampliação maciça da infraestrutura de escoamento, expansão da assistência técnica e realocação negociada dos pequenos produtores para longe das margens de rios assoreados, transformando ribanceiras em florestas seguras e pastagens marginais em terras produtivas. Mas mudar o Código Florestal é bem mais fácil.

Rafael Feltran-Barbieri, 36, é pesquisador do Núcleo de Economia Socioambiental (NESA) e do Núcleo de Estudos em Contabilidade e Meio Ambiente (NECMA), ambos da FEA-USP, em São Paulo.

EcoDebate, 28/04/2011

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