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Os que se recusam a atirar, artigo de Montserrat Martins

[EcoDebate] Consta como exemplo de sabedoria, na aplicação da justiça, a do rei Salomão que, diante de duas mulheres que se diziam mães da mesma criança, decidiu que partiria a criança ao meio e daria a metade para cada uma, provocando na verdadeira mãe a reação de renúncia, para salvar a vida da criança.

O jurista Mílton dos Santos Martins, no entanto, estudioso dos precedentes históricos das decisões judiciais, afirma que não se tratava de um teste simbólico ou uma metáfora, mas sim que Salomão realmente faria (ou seria capaz de fazer) aquilo mesmo, partir uma criança ao meio, tão bárbaros eram os costumes daquela época. Dá provas disso, citando o caso de outros reis da antiguidade que, diante do pedido de pais para que não levassem todos os seus filhos para a guerra, matavam tais filhos para servirem de exemplo, a fim de que ninguém ousasse questionar o rei.

Há quem não acredite na evolução da humanidade, vendo nas guerras atuais mera repetição do drama inerente à condição humana, desde as eras mais remotas. Barbarismos persistem por todo o mundo, como o do ditador líbio Kadafi mandando atirar contra seu próprio povo, para reprimir o protesto das multidões. A novidade, porém, são as várias histórias dos que se recusam a atirar, que temos podido ler no noticiário internacional, como já tinha acontecido com os militares egípcios que se recusaram a obedecer Mubarak. Sim, na Líbia a situação é mais cruenta, a ponto de se falar em “banho de sangue”, já que Kadafi diz que lutará “até a morte”. Ainda não se sabe se os rebeldes vencerão, conseguindo derrubá-lo, ou serão massacrados. O fato novo – e isso é o que nos distingue das eras mais bárbaras – é o dos que se recusam a atirar.

Pode parecer pouco (e vai ser, caso o povo seja sufocado), mas continua sendo um sinal de evolução civilizatória. Já houve eras em que a essência do militarismo incluía a disciplina e hierarquia cegas, cumprir ordens sem questionar, esse é o argumento da defesa, por exemplo, de todos os nazistas julgados, de que “cumpriam ordens”.

Ser capaz de se rebelar contra ordens injustas, se recusar ao genocídio da população desarmada, pode parecer óbvio para nós, mas não é uma tradição histórica, é um sintoma de evolução. Que aliás não é linear ou retilínea, nenhum progresso da civilização se dá sem altos e baixos, o que caracteriza a evolução é a cumulatividade das conquistas, como as dos direitos fundamentais do ser humano. O que me lembra das lições de outro jurista, o professor em Direito Constitucional, Eduardo Carrion, que ensina que a Constituição é um “programa” de intenções, que não nasce da realidade que já existe, mas sim que caminha para a realidade que queremos construir.

Montserrat Martins, colunista do EcoDebate, é Psiquiatra.

EcoDebate, 28/02/2011


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3 thoughts on “Os que se recusam a atirar, artigo de Montserrat Martins

  • Lúcida a apreciação do jurista Montserrat Martins. A civilização que se diz culta, ainda não se desligou da barbarie, da arrogância e dos males da injustiça. Ainda temos muito que fazer para que a humanidade seja feliz – parabéns ao distinto brasileiro. anchieta mendes

  • Quem apoiou e manteve o louco Kadafi nesta barbarie estes 40 e tantos anos não seriam os consumidores europeus do petróleo da Libia? Será este o verdadeiro custo do petróleo?
    É bom o mundo reconhecer o passado para não repetir os mesmos erros…

  • Marcio Araujo de Almeida Braga

    Agora fico mais decepcionado com as imagens divulgadas pelo Wikileaks mostrando soldados norte americanos atirando em civis desarmados e em crianças.
    Parece que os soldados líbios são mais civilizados.

Fechado para comentários.