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Artigo

Consumismo ecológico, artigo de Janos Biro

1. Consumindo desenvolvimento sustentável

A grande questão da discussão ecológica tem sido como conciliar padrões sustentáveis de consumo com uma economia baseada no desenvolvimento acelerado dos meios de produção. Segundo Ruscheinsky[1], esta é uma questão de poder. Se o consumidor está submetido a um sistema econômico insustentável, ele não tem o poder de fazer escolhas que levam a um consumo sustentável. Mesmo que o consumidor seja um agente econômico autônomo, ele só pode sê-lo na medida em o sistema econômico do qual depende valoriza isso. Dizer que o consumo sustentável, ético, responsável e consciente é uma questão de escolha do consumidor é no mínimo insuficiente. Qual o significado desses adjetivos para o consumidor? Ao que parece, o consumidor depende da cultura de consumo para definir o que é sustentável. O consumo sustentável quase sempre se refere ao consumo de tecnologias e produtos considerados mais ecológicos. Então, voltamos à estaca zero. A cultura não pode ensinar aos indivíduos o que é ser sustentável, ético, responsável e consciente, porque ela mesma não sabe o que é isso. Não reconhecemos o que é ser sustentável numa cultura que depende de desenvolvimento econômico e tecnológico acelerado. Usamos essa palavra sem ter noção do que ela significa em termos práticos fora da lógica do consumo.

O discurso ecológico coloca o consumidor como protagonista, como agente multiplicador de ações políticas e privadas que visam a sustentabilidade[2]. Ele deve entender o que motiva o consumo e saber separar necessidades reais de necessidades criadas. Mas como o consumidor fará isso?

2. Sua ecologia vale dinheiro

A questão é que a “consciência ecológica” está sendo propagada pelos meios de comunicação que estão sob controle do sistema econômico. Eles têm um bom motivo para propagar essas ideias supostamente contrárias à cultura vigente. Baseiam-se na crença de que a maximização da produção e a socialização de benefícios podem ser compatíveis com a minimização do impacto ambiental causado pela extração dos recursos naturais. Isto é, usam o critério da eficiência da produção. Esse critério vem do próprio desenvolvimento do capitalismo enquanto racionalização das relações em função da produtividade. Ele parte da crença de que é possível uma harmonia entre bem-estar social e eficiência dos meios de produção. Em outras palavras, o que é propagado hoje como sendo consciência ecológica é uma consciência ideologicamente bem adaptada ao espírito do capitalismo. Ela se apóia na crença de que basta racionalizarmos o uso das tecnologias e dos meios de produção, e tudo ficará bem, como se o problema fosse o modo de produção, e não o modo de vida baseado na produção e no acúmulo de bens materiais. A revolução ecológica é proposta no formato de um novo contrato social, que define limites de exploração e garante o consumo para os desfavorecidos, redistribuindo os meios de produção para a população. Quando se diz que “outro sistema é possível”, o que se quer dizer é: “podemos ser sustentáveis sem abrir mão dos nossos prazeres favoritos”.

Por um lado alguns autores acusam o discurso ecológico de ser dogmático ou fundamentalista, porque parece tratar de pecados ambientais, perdição industrial, apocalipse climático, revelação de uma verdade oculta, conversão subjetiva a um novo paradigma e redenção por meio de novas tecnologias e até mesmo de um novo homem. Por outro lado, os adeptos do movimento azul, que unem a ecologia com as questões econômicas, defendem uma espécie de “ecologia da prosperidade”. Eles parecem estar tão bem adaptados à globalização quanto os pastores da nova espiritualidade evangélica, que também abandonaram a perspectiva tradicional e se voltaram para as possibilidades mundanas de desenvolvimento.

3. Economizando a natureza

Talvez esteja sendo gerada a crença de que se investirmos uma parte do nosso lucro para a preservação da natureza, então nós vamos prosperar ecológica e economicamente. O discurso eco-econômico diz que a preservação da natureza só será possível quando os bens naturais forem contabilizados como parte do mercado. Ou seja, a ecologia só passa a ser possível dentro do discurso econômico. É isso que está acontecendo quando se fala de créditos de carbono, pegada ecológica, capital natural… Estabelecemos uma relação economicamente racionalizada com a natureza enquanto fonte de recursos materiais. O emblema desse eco-capitalismo é o planeta sendo segurado por mãos humanas.

A figura central da revolução ecológica é o consumidor. Quem é o consumidor? O consumidor não é uma pessoa, é um papel assumido por uma pessoa. O papel de consumidor consciente ou do cidadão ambientalmente responsável é encarnado por uma pessoa, mas é apenas mais um estilo de vida, que como qualquer produto cultural, é propagado por uma indústria que explora esse segmento de mercado. A cultura incentiva uma mudança social útil e necessária ao atual estágio civilizatório: substitui o pouco que resta dos valores humanos por direitos e deveres do consumidor. Propaga uma ética da eficiência, que ignora o que é fazer o bem, e se concentra em consumir bem. Transforma toda sabedoria ancestral em sabedoria para consumir bem, que é confundido com viver bem. Atribui-se uma responsabilidade meramente nominal a um sujeito que não recebeu condições para ser responsável. Pede-se que ele crie uma consciência que na prática é rejeitada pela cultura. Provoca uma retro-alimentação de sentimentos de culpa, sem qualquer possibilidade de correção.

Nós não conseguimos distinguir quando estamos sendo o agente ou o paciente da devastação da natureza. Uma imagem usada por Ítalo Calvino descreve essa situação: “O exército dos helenos que serpenteia entre os entre os desfiladeiros das montanhas e os vaus, entre contínuas emboscadas e saques, não mais distinguindo onde passa de vítima a opressor, circundando também na frieza dos massacres pela suprema hostilidade da indiferença e do acaso, inspira uma angústia simbólica que talvez só nós possamos entender”[3]. Nesta situação, tanto faz avançar ou desistir, ambas as escolhas não oferecem qualquer sentido para além do presente.

O consumo se tornou entretenimento, assim como a própria crítica ao consumismo. Mas o consumo ainda sustenta a economia, que se tornou dependente do espetáculo. Quando se reduz o crédito se diminui o consumo, e isso gera crise. Para evitar o colapso, é preciso injetar dinheiro como se fosse uma droga estimulante. Eles irão emprestar dinheiro para que você gaste o que não tem naquilo que não precisa, porque sem aumentar as suas dívidas não há desenvolvimento econômico, e sem isso não há investimento, e sem investimento não há lucro, e sem lucro a competitividade diminui e empresas tendem a falir, levando embora o seu emprego e sua possibilidade de consumo. A cultura apresenta aquele que não consome como avarento, e o que consome como um ser superior (um Net, um Ligador, etc…) reforçando assim uma representação que tem o objetivo de gerar coerção social[4].

4. Consumose é uma doença contagiosa

Deveríamos considerar seriamente o impacto psicossocial do ato aparentemente inocente de levar uma criança às compras, ao shopping ou ao supermercado. Lá ela estará exposta a um ambiente repleto de agentes simbólicos infecciosos, e sem proteção alguma ela será um alvo fácil. De fato, ela é o alvo mais visado pelas campanhas publicitárias, porque sua resistência à indução de desejos de consumo é muito baixa. É comum ver pais brigando com seus filhos enquanto estes berram e esperneiam por causa de um produto, como se não valesse a pena viver sem poder consumir aquele produto. Esta é exatamente a ideia que foi introduzida nas mentes deles por meio da propaganda. Os publicitários montam um esquema astucioso para diminuir nossa capacidade de pensar, ainda que eles mesmos não percebam que fazem isso. Nós não deveríamos expor crianças a um ambiente que as adoece, mas sendo isso quase inevitável, devemos pelo menos prepará-las para isso. Elas não são culpadas por sentirem esse desejo avassalador de consumir, pois esse ambiente foi criado para gerar esse comportamento obsessivo. Nós adultos só nos comportamos melhor porque já nos acostumamos, pelo excesso de exposição ao agente infeccioso. Este tipo de ambiente produz desorientação. Ao pisar numa loja já estamos consumindo valores.

O ambiente de um grande supermercado ou shopping é construído para atingir os pontos fracos da psicologia humana. A cultura consumista fica o tempo todo sussurrando nos nossos ouvidos a crença de que você é o que você compra. Aceitando essa crença, o consumo adquire um significado existencial. Uma pessoa pode passar a literalmente viver para e pelo consumo, perdendo aos poucos as características morais que a tornam humana.

5. Você é o produto

Pouca atenção tem sido dada para a saúde psicológica das pessoas em relação ao consumo. Um dos “sonhos de consumo” das pessoas é se tornar um modelo de consumo para os outros. É isso que o marketing pessoal sugere: venda-se. As pessoas precisam querer ser você. Mas o efeito de ser um produto é extremamente deturpador. Uma análise das biografias de pessoas que tiveram essa experiência é suficiente para revelar isso. Ainda assim, pouca atenção é dispensada para o vetor de propagação dessa doença: as personalidades famosas. A vida para o consumo, ou a vida para ser consumido, é considerada boa por causa da abundância de consumo, como se nada pudesse ser pior do que não poder consumir.

As pessoas submetidas a uma rotina de estrela estão perdendo suas características humanas, porque se tornam produtos. Os seres humanos não foram feitos para a fama. Temos que pensar nos danos que estão sendo provocados a todos que estão e anseiam estar sob as luz dos holofotes e flashs da câmera. Não para tentar obrigar as pessoas a se afastar dessas coisas, o que de todo modo seria impossível, mas para não perpetuar um discurso que naturaliza essas coisas, que não dá discernimento sobre a gravidade das doenças que nascem nesse meio. Repensemos sobre o suporte que damos, e o modo como esperamos ansiosos para poder consumir pessoas. Consumimos a beleza de pessoas que são modelos de beleza, e nesse processo rejeitamos a nós mesmos[5].

6. Produzir para consumir para produzir para consumir…

Embora o trabalho seja visto como algo que dignifica o homem, a maior parte do trabalho visa cobrir gastos fúteis, sejam seus ou do seu empregador, e não a subsistência do homem. O que significa que a maior parte do trabalho dignifica apenas a insensatez humana, pois é a parte que alimenta o consumismo.

O consumo invade todos os aspectos da sociedade. Nós passamos a consumir pessoas ao invés de nos relacionar com elas. Consumimos ideias ao invés de aprender. Nós nos aproximamos dos outros e demonstramos nosso amor por meio do consumo. Nossa memória é significada pelos produtos que consumimos. Enfim, todas as relações passam a ser mediadas pelo consumo. A produção e o consumo passam a dar sentido às práticas e representações sociais. O consumo passa a ser uma necessidade simbólica que dá coesão e ordenação social. Ainda que se tente naturalizar o consumo dizendo que sempre consumimos, o consumo nunca teve o significado que está adquirindo agora.

Mas o aumento do consumo não deve ser encarado como um problema que pode ser resolvido pelo consumo ecologicamente correto. Substituir um tipo de consumo por outro mais moderado não será suficiente. A ecologia continua sendo uma perspectiva ajustada a uma cultura que defende a crença, expressa por Benjamin Friedman, de que o crescimento econômico é necessário para manter a paz social[6]. Se os ricos param de crescer, o sistema reage automaticamente, e os pobres estão na parte mais vulnerável da zona de impacto. É uma armadilha muito engenhosa. O sistema é construído para depender da aceleração do fluxo. Por isso alguns capitalistas defendem seu próprio crescimento como possibilidade de gerar emprego e investir no crescimento do país como um todo. Se nós paramos de circular dinheiro cada vez mais rápido, a situação poderá ficar pior. Quando você corre montanha abaixo criando avalanches, parar de correr deixa de ser uma opção segura. Ou você se torna parte da avalanche, ou é soterrado por ela. Decrescimento só é uma opção enquanto puder dinamizar ainda mais os negócios. Só vale a pena se ainda tiver algo a ser ganho[7]. Nessa sociedade, é meio difícil fazer alguma coisa funcionar fora da perspectiva da vantagem pessoal. E, no entanto, é somente fora dessa perspectiva que podemos resolver o problema do consumismo.

7. A demanda por ecologia cresce junto com seu consumo

A “civilização do ter” parece querer gerar a “civilização do ser” a partir de si mesma, isto é, tratando o ser como uma regulação do ter. Mostrar o quanto você é ecologicamente correto se tornou algo necessário à sobrevivência da sua imagem social. A ecologia se uniu ao desenvolvimento pessoal. A mudança é quanto à base da economia. Agora falamos de energia, ao invés de falar apenas de matéria. As coisas mudam para continuar iguais.

Pode ser que nesse caminho cheguemos ao trans-humanismo, uma transição das limitações do humano para o pós-humano, nem sempre no sentido biotecnológico. Se isto ocorrer, entraremos numa nova era ecológica, mas também numa nova era de degradação da natureza. Dessa vez, o alvo será a natureza da vida no seu sentido mais profundo. Fechamos uma porta e abrimos outra. Em nome da eficiência, o homem pode colocar em risco aquilo que tem de mais precioso.

A conclusão é que o problema do nosso modelo de produção e consumo não é que vivemos num planeta finito, mas que este modelo é alimentado por disposições mentais inerentemente insustentáveis. O planeta poderia ter recursos infinitos, e o mesmo problema surgiria: o crescimento da produção levaria ao consumismo, que por sua vez reduziria a vida ao consumo. Este modelo ameaça a vida com seu sucesso ou com seu fracasso. De certa forma, reconhecer que o planeta é finito pode ser muito útil para impedir que a força cega do mercado se destrua rápido demais pelo excesso de crescimento desgovernado. Mas essa consciência por si só não muda nossa disposição mental, apenas nos força a mudar os modos de apropriação para que o processo continue. Racionar os recursos não é o mesmo que sustentabilidade.

É muito fácil dizer que precisamos de uma nova cultura. Mas quando a cultura se torna um produto, e a mudança ocorre por meio de uma produção em massa de novas mentes, então a civilização venceu. Seria preciso mudar aquilo que produz a cultura em primeiro lugar. E voltaríamos ao mesmo problema. Essas coisas não se mudam sozinhas, e dizer que a educação tem que mudar é no fundo dizer que não temos a menor idéia de como mudar. A solução não pode ser simplesmente educar melhor. Educar em que sentido, se os professores também estão inseridos no processo? Quem vai educar os educadores? Não nos é apresentado nenhum meio viável para essa mudança quando tudo que se diz é: “Temos que preservar o meio-ambiente”. Se o problema é encontrar um modo ecológico de ganhar todo o dinheiro que é ganho com a devastação da natureza, então se trata apenas de uma questão de substituir os recursos de modo preservar o sistema econômico, e se possível o ecossistema. O problema central não deveria ser educar para preservação do meio ambiente enquanto fonte de recursos que alimentam a civilização, mas sim a preservação da natureza no seu sentido original. A degradação a partir da ação humana não poderia acontecer sem a degradação do homem e sem a degradação do conceito de natureza. Não é com base na economia que poderemos restaurar isso.

Não se trata de afirmar simplesmente que “temos que nos tornar a mudança que queremos ver no mundo”, mas que temos que perceber que o modo como o mundo está mudando está afetando o modo como nós estamos mudando. O que, especificamente, eu deveria me tornar e que mudança eu quero ver no mundo? Aparentemente, continuamos consumindo diversas visões de mundo que não encontram um consenso sobre o problema humano. Elas podem ser coerentes com uma cultura que observa o problema do ponto de vista biológico, econômico, político, material ou pragmático, mas quando se fala de ser humano, o foco fica restrito às condições materiais para a manutenção da civilização. Se esse foco não mudar, não iremos muito longe.


[1] Citado por Marina Mezzacappa. Outro sistema é possível? http://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=36&id=432

[2] Mais recentemente, a publicidade tem jogado toda essa responsabilidade nos agentes mais ingênuos, as crianças. Misturando fantasias de preservação com fantasias de consumo, esta estratégia é provavelmente a mais perversa forma de publicidade. http://www.publicidadeinfantilnao.org.br

[3] Citado por Carlos Vogt. O consumidor e o consumido. http://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=36&id=421

[4] Entre os muitos exemplos, destaca-se o adulto sem carro, sem casa própria e sem emprego fixo. Ainda que ele possa viver assim, continua sendo considerado o mais patético dos seres humanos, sendo prejudicado onde mais dói: nas relações afetivas. http://www.pavablog.com/2010/10/05/patetico

[5] Estas ideias não são propriamente minhas, mas a reproduzo com base no que aprendi com o autor do seguinte texto, Anderson Clayton Pires, http://www.ultimato.com.br/conteudo/sociedade-do-glamour-e-etica-da-verdade

[6] Citado por Ademar Ribeiro Romeiro. Crescimento econômico e meio ambiente. http://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=36&id=435

[7] E mesmo quando uma pessoa como Bill Gates doa 30 bilhões de dólares, isso não significa decrescimento nem desaceleramento da economia.

Artigo socializado por Janos Biro.

EcoDebate, 24/02/2011

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