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Código Florestal: homens x natureza, artigo de André Lima

APPs garantem o fluxo de biodiversidade, a estabilidade do solo e a integridade dos recursos hídricos.

As fronteiras dos rios e das águas quase sempre coincidem com as nossas. Mas quase não é sempre. Nós “humanos da pós-modernidade” temos sido pouco atentos a isso. Mudaremos então o Código Florestal para impor nossa ocupação dita consolidada, ignorando com tecnicidades de uma regra ambiental artificial as leis da natureza que regem o ciclo das águas e a força dos rios?

O deputado Aldo Rebelo insiste em afirmar que não, mas são evidentes as conexões entre as propostas contidas em seu relatório ao Projeto de Lei (PL) nº 1876/99, em trâmite na Câmara dos Deputados, que modifica o Código Florestal, e as ocupações de risco afetadas por desastres como os ocorridos no Rio de Janeiro no início do ano. Vejamos.

A aludida proposta reduz a extensão da área de preservação permanente (APP) de beira de cursos d’água, de 30 para 15 metros, nos rios com até cinco metros de largura. Isso obviamente dá um sinal trocado aos potenciais ocupantes de plantão. Se meu vizinho ocupou e regularizou, por que eu não posso?

O PL modifica o parâmetro de medida da APP de curso d’água. Pela lei em vigor, o cálculo de extensão de APP de beira de rios é feito a partir do nível mais alto do curso d’água. O PL nº 1876/99, por sua vez, dispõe que a APP passa a ser medida a partir da “borda do leito menor”. Na prática, trata-se da redução efetiva da dimensão da área de preservação de curso d’água em todo o país (áreas rurais e urbanas). Beneficiará a consolidação de ocupações existentes e incentivará ocupações mais próximas ao leito dos rios.

O PL 1876/99 amplia a lista de ocupações consideradas de interesse social passíveis de regularização em APP. Inclui entre elas a implantação de infraestrutura pública destinada a esportes, lazer e atividades educacionais e culturais. Cada exceção a mais aceita pelo legislador à regra da preservação das APPs, que, não por acaso, coincidem com muitas das áreas de risco afetadas por chuvas, enchentes e trombas dágua, é mais um fator de aumento de risco e de preocupação com os eventos climáticos extremos, a cada ano mais frequentes.

O projeto permite ainda que o presidente da República, por decreto, sem discussão pública ou fundamentação técnico-científica, amplie o rol de atividades de utilidade pública e interesse social passíveis de se consolidar em APP.

O impacto de uma lei na vida das pessoas e no ambiente não pode ser examinado apenas pela letra fria da norma, mas fundamentalmente pelo que induz em termos de dinâmica social e cultural. Embora a omissão histórica do poder público tenha praticamente anulado os efeitos do Código Florestal, hoje ele vem sendo objeto de cobrança cotidiana, principalmente pelo Ministério Público, como desdobramento da conscientização crescente da população.

O Código é um instrumento de inibição da expansão urbana em benefício dos serviços socioambientais prestados por essas áreas às cidades e seus moradores. É instrumento a ser considerado na elaboração e revisão dos planos diretores e leis de ocupação do solo, conforme determina o próprio Estatuto das Cidades.

A especulação imobiliária crescente, a necessidade das prefeituras de ampliar a arrecadação de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e a pressão natural derivada da falta de políticas habitacionais que atendam à crescente demanda das populações de média e baixa rendas têm exercido papel não desprezível na conversão de áreas rurais ditas consolidadas em áreas urbanas a consolidar.

A regularização dos desmatamentos em APP rural, prevista no PL, pode sinalizar para revisões em planos diretores e leis municipais de ocupação do solo em todo o país e estimular o parcelamento de áreas rurais consolidadas situadas nos limites urbanos, já que a recuperação das APPs e das reservas legais deixará de ser exigida.

O que a lei florestal objetiva com as APPs é, além dos fluxos de biodiversidade, manter as condições de estabilidade do solo e a integridade dos recursos hídricos, bens ambientais essenciais à sadia qualidade de vida humana de que trata a Constituição Federal em seu artigo 225. Ainda assim, como se viu na tragédia do Rio de Janeiro, mesmo com a manutenção da vegetação nativa, a estabilidade e a integridade do solo e das águas não estão 100% garantidas. Os fatos indicam que a proposta de consolidação de ocupações em APP (topo de morro, declividade e margem de rios), nos moldes propugnados pelo projeto de lei aqui comentado é, no mínimo, muito preocupante.

André Lima é advogado e mestre em políticas públicas e gestão ambiental pela Universidade de Brasília e consultor em Políticas Públicas e Direito Socioambiental do IPAM

Artigo originalmente publicado no Clima e Floresta, n° 29, janeiro e fevereiro de 2011 [Clima e Floresta é uma publicação mensal on-line do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM)]

EcoDebate, 22/02/2011


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2 thoughts on “Código Florestal: homens x natureza, artigo de André Lima

  • Ricardo Luiz S Costa

    Desejo destacar aqui, dois aspectos que considero cruciais nesse processo de discussão:
    1- Me preocupa a questão da liberação de cultivos agrários em APP’s, sobretudo, sem os devidos critérios e cuidados de natureza técnica e ecológica que esses ambientes exigem. À guiza de sugestão, talvez uma alternativa a ser adequada nesses casos, seria conveniente que essas atividades obedecessem previamente a um plano de manejo específico para cada sítio ecológico;
    2- Considero louvável a postura do projeto do executivo, refletindo o seu papel de gestor ambiental ordenador e orientador das políticas públicas do setor, na defesa e garantia dos interesses públicos que estão em jogo, nesse processo de discussão que abriga interesses diferentes e difusos. Isso é prova de coerência e consolidação do Brasil, enquanto signatário e líder de convenções e protocolos, que persegue a concretização da perspectiva teórica do “desenvolvimento sustentado”, que preconiza, em tese, que desenvolvimento só existe de fato, se este for bom para todos e permanente, sem destruição do ambiente e de vidas. Inclusive vidas humanas.
    O povo precisa comer. É verdade. Mas é necessário também ao povo viver em um ambiente ecologicamente saudável e seguro; senão, de nada valerá só comer.
    Com a palavra as senhoras e senhores parlamentares, do Congresso Nacional, dignos representantes da sociedade brasileira, de quem se espera que cada um cumpra com o seu dever. Ou seja, reformar e apresentar um Código Florestal novo e revigorado, mas, sobretudo um instrumento que expresse a defesa e a garantia, dos direitos e anseios do povo brasileiro.
    Ricardo Luiz Silva Costa – Engenheiro Florestal

  • Lori Luci Brandt Dalla Porta

    Também coloco a minha preocupação no modelo da mudança do código florestal antes que seja ouvida a sociedade civil, acadêmica e o Ministério Público. Se por um lado tivemos avanços na questão ambiental corre-se o rísco agora de detonarem com tudo numa canetada. É possível fazer a recuperação das APPs com sistemas agroflorestais onde além das culturas convencionais se planta mudas nativas, frutíferas, espécies exóticas e este ambiente além de servir para garantir a proteção do solo, das encostas, das fontes de água, pode ser um incremento na renda do produtor rural. Palmeiras como açaí, juçara, frutíferas como pitangueiras, goiabeiras e xaxim, cipós, ervas e arbustos medicinais que nem foram estudados convenientemente estão na lista de desaparecerem. Sem falar que se não existirem os corredores florestais, os animais cada vez mais são encuralados e atropelados sem ter opção de busca de alimentos e proteção. Como engenheira agrônoma e educadora ambiental sei do meu papel.

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