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Artigo

Aspectos essenciais na elaboração de uma carta geotécnica, artigo de Álvaro Rodrigues dos Santos

[Ecodebate] As recorrentes tragédias geotécnicas que vêm se abatendo sobre municípios brasileiros tiveram ao menos como saldo positivo, e esperamos irreversível, a consciência geral sobre a importância em se ter em conta as características geológicas e geotécnicas dos terrenos na regulação técnica do uso do solo urbano.

Do ponto de vista das essenciais ações preventivas e de planejamento, vem ficando igualmente consensuado o destacado papel a ser cumprido pela Carta Geotécnica municipal, a ponto de sua elaboração já constituir expressiva demanda de serviços junto a instituições e empresas brasileiras que trabalham na área geotécnica.

Nesse cenário é indispensável que o meio geotécnico brasileiro uniformize seu entendimento sobre os principais aspectos conceituais e metodológicos envolvidos na produção de uma Carta Geotécnica, de forma a garantir consistência e qualidade na produção de tão estratégico instrumento de planejamento do uso do solo.

Nesse sentido, o ideal seria termos em breve manuais orientativos da produção de cartas geotécnicas e cartas de risco, providência que já vem sido considerada pelas associações técnico-científicas do setor, no caso a ABMS e a ABGE. No entanto, como a demanda a essas orientações está desde já colocada, faz-se oportuna a troca de informações e artigos técnicos entre os geotécnicos brasileiros como expediente de avançarmos no entendimento comum das questões conceituais e metodológicas envolvidas, objetivo com o qual esse artigo procura colaborar.

A questão conceitual.

A Carta Geotécnica é um documento cartográfico que informa sobre o comportamento dos diferentes compartimentos geológicos homogêneos de uma área frente às solicitações de um determinado tipo de intervenção, e complementarmente indica as melhores opções técnicas para que essa intervenção se dê com pleno sucesso técnico e econômico. Importante frisar esse conceito: uma Carta Geotécnica implica necessariamente na conjugação do mapa de zoneamento geotécnico com as recomendações técnicas de ocupação. A CG é um documento básico para a formulação de Planos Diretores, Códigos de Obra e demais instrumentos de regramento técnico do uso do solo.

Por se referirem a algum tipo específico de ocupação há muitos tipos de CGs, como, por exemplo, CGs voltadas a subsidiar a instalação de aterros sanitários, depósitos de resíduos industriais perigosos, cemitérios, etc., em que o risco mais destacado está na contaminação do lençol freático. Para essas cartas as características de permeabilidade dos compartimentos geológico-gemorfológicos e seu papel na recarga dos aqüíferos é essencial. No caso presente estaremos nos referindo especialmente às cartas geotécnicas voltadas a subsidiar tecnicamente a expansão urbana em regiões úmidas de relevos acidentados, para as quais as características dos terrenos quanto à sua suscetibilidade a escorregamentos destaca-se como a fundamental.

A questão metodológica

O primeiro passo na produção da Carta Geotécnica está na definição dos parâmetros críticos que serão utilizados na compartimentação espacial da área estudada e que definirão os setores compatíveis com a ocupação urbana e os setores que, por suas características, serão considerados non edificandi. Em nossas regiões tropicais serranas esses parâmetros já estão bem estudados e conhecidos, restando poucas dúvidas ou discordâncias a respeito. São eles:

– feições geomorfológicas como as grotas ou cabeceiras de drenagem;

– encostas com declividade superior a 40%, ou algo em torno desse valor, sendo as encostas retilíneas aquelas que sugerem maiores cuidados;

– feições geológicas de maior instabilidade definidas por posicionamento espacial de estruturas geológicas e texturas petrográficas;

– presença de matacões e blocos de rocha em superfície e sub-superfície;

– faixas de terreno a montante ou a jusante de áreas instáveis (que, portanto, podem ser respectivamente desestabilizadas por descalçamento ou atingidas por material proveniente de deslizamentos);

– áreas baixas de vales sujeitos a corridas de lama e detritos;

– áreas que podem ser atingidas por rolamento de matacões ou queda de blocos e lajes;

– margens de drenagens naturais sujeitas a solapamentos;

– antigos lixões ou bota-fora de entulho;

  • áreas a montante ou a jusante de anteriores intervenções humanas desestabilizadoras.

O segundo passo metodológico volta-se para a produção propriamente da Carta. Para os estudos e análises associados a essa fase de trabalho são necessários ao menos os seguintes mapeamentos temáticos básicos: geologia, geomorfologia, clinometria, formas de uso do solo, intervenções humanas desestabilizadoras (especialmente cortes e aterros), evidências de escorregamentos naturais e induzidos. Destaque-se que a elaboração de uma CG, ainda que não prescinda da liderança técnica do geólogo de engenharia e do engenheiro geotécnico, é uma ação multidisciplinar, que deve envolver outras especializações profissionais, como os geógrafos, cartógrafos e arquitetos urbanistas.

Uma vez identificados os setores não ocupáveis, passa-se à terceira etapa dos trabalhos, onde devem ser hierarquizados segundo seus diferentes graus de risco os setores passíveis de ocupação e então estabelecidas as orientações técnicas para que essa ocupação se dê da forma mais correta. Entre essas orientações, destacam-se:

  1. Como diretriz, usar a criatividade e adaptar o projeto à topografia e não a topografia ao projeto;
  2. Evitar ao máximo cortes e aterros. Se possível, aboli-los por completo;
  3. Adotar lotes com a maior dimensão paralela às curvas de nível;
  4. As edificações deverão ter sua parte frontal apoiada sobre pilotis (ou expedientes equivalentes), assim evitando encaixes na encosta;
  5. Em caso de loteamentos, somente liberar as construções nos lotes após toda infraestrutura urbana já instalada: arruamento, pavimentação, drenagem;
  6. Demarcar os lotes sem retirar a vegetação e o solo superficial. Somente retirar a vegetação e o solo superficial, se realmente necessário, no momento da construção de cada edificação, ou seja, lote a lote;
  7. Em terrenos muito inclinados reduzir o número de ruas a nível, devendo ser privilegiado o acesso a pé às moradias. As ladeiras perpendiculares às curvas de nível deverão ser descontínuas;
  8. Não deverão ser instaladas em hipótese alguma fossas de infiltração. Outro sistema de esgotamento sanitário deverá ser adotado;
  9. Não são permitidas roças de banana, mandioca ou de qualquer outro produto agrícola;
  10. Todos os espaços urbanos públicos de circulação e uso dos moradores, incluindo ruas, passagens, acessos, pequenos largos e praças, quadras esportivas e áreas de lazer, deverão ser mantidos impermeabilizados;
  11. As propriedades somente poderão manter em condições naturais (para utilização como horta ou jardim) no máximo 1/3 (um terço) de sua área não edificada do lote, sendo que os 2/3 restantes deverão ser impermeabilizados com argamassa de cimento ou assentamento de piso impermeável;
  12. Todas as edificações deverão instalar calhas para recolhimento das águas do telhado e sua condução a sistema de drenagem apropriado.

A questão da escala de apresentação

As Cartas Geotécnicas que serão utilizadas nas decisões rotineiras de regramento de uso do solo pelas Prefeituras Municipais devem estar em escala compatível com a precisa localização de suas informações (especialmente os limites entre diferentes compartimentos geotécnicos) no campo. Essa condição exige no mínimo escalas 1:5000, com eventuais detalhamentos em 1:1.000. Escalas menores, 1:25.000, 50.000, etc., podem ter outra finalidade, como as abordagens macro-regionais de fins didáticos, mas não se prestam a trabalhos e operações de campo.

Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro{at}uol.com.br)

  • Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT e Ex-Diretor da Divisão de Geologia
  • Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Cubatão” e “Diálogos Geológicos”
  • Consultor em Geologia de Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente
  • Criador da técnica Cal-Jet de proteção de solos contra a erosão


EcoDebate, 06/05/2010

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