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Bioeconomia. Paradigma da economia contemporânea. Entrevista especial com Federico Chicchi

Na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line, Federico Chicchi se debruça sobre o conceito de bioeconomia, que, para ele, refere-se “ao processo de captura da vida e à produção da própria vida no interior das regras do ‘discurso’ econômico. Em outras palavras: o econômico pretenderia, no capitalismo biopolítico, colocar-se como única textura possível do Sentido e, paradoxalmente, como uma espécie de fundo antropológico originário”. O professor continua sua explicação, afirmando que “a bioeconomia (desta vez entendida como paradigma da economia contemporânea) introduz um verdadeiro e próprio efeito perturbador, porque nos mostra e desvela, sobretudo em suas mais recentes aplicações técnicas, a própria vida, o bios, o que é comum por definição, como uma mercadoria de todo contingente e agora, sob o impulso (ir)racional das paixões aquisitivas, exposta sem mais mediações ao risco das mais impensáveis coisificações / alterações / utilizações”.

E, ao refletir sobre o mundo do trabalho neste novo cenário, Federico Chicchi percebe que “nas teorias da modernidade industrial não é suficientemente tematizado nem compreendido o papel crescente do lado imaterial do trabalho (o cognitivo, intelectual, afetivo, emotivo, simbólico, relacional etc.) que, ao invés, torna-se hegemônico e central nas fileiras contemporâneas de produção do valor”. Na sua visão, “tornam-se cada vez mais relevantes, também graças às revoluções digitais, as produções sociais “de baixo”, as redes cooperativas, as fileiras sem centro hierarquicamente definido, os territórios, os saberes locais, e as ecologias que estão em condições de se auto-organizar para a produção de riqueza e de semânticas sociais”.

Federico Chicchi é professor de Sociologia do processo econômico e do trabalho na Faculdade de Ciência Política da Universidade de Bologna, Itália. É graduado em Ciência Política e doutor em Sociologia e Política Social pela Universidade de Bologna.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor afirma que uma análise eficaz do capitalismo contemporâneo deve ser colocada para além do paradigma da economia política sugerida pelos autores clássicos. Pode explicar por quê?

Federico Chicchi – No que se refere ao papel que a disciplina econômica clássica pode desempenhar na compreensão dos processos contemporâneos de produção, minha opinião é clara: os seus paradigmas se tornaram heuristicamente (e politicamente) insuficientes, porque o cenário econômico e social contemporâneo se reproduz através de processos no interior dos quais os principais construtos teóricos clássicos (lucro/renda, trabalho produtivo/improdutivo, capital constante/capital variável, salário/rendimento etc.) são caracterizados por inéditas porosidades e coalescências recíprocas, que tornam sua utilização analítica pelo menos complicada. Os esquemas conceituais da economia clássica são, de fato, o resultado teórico da análise de uma modalidade de organizar a acumulação de capital que hoje não mais se apresenta como prevalente e hegemônica (nem em termos objetivos, nem em termos subjetivos).

Além disso, de um ponto de vista metodológico, parece-me importante sublinhar – como nos convidava a fazer Claudio Napoleoni (1), um dos mais importantes economistas marxistas italianos do século passado – o modo como os paradigmas econômicos (clássicos e neoclássicos) tendem a representar os fenômenos escolhidos segundo sua competência direta, dentro de modelos demasiado rígidos, estáticos e simplificados, perdendo, deste modo, quase de todo, sua intrínseca (e hoje sempre mais intensa) dinamicidade, interna às relações entre processos de produção e relações sociais de produção.

Creio, portanto, que, na análise do presente, é preciso absolutamente dotar-nos de paradigmas novos – que devem, em primeiro lugar, aceitar o ônus do desbalanceamento transdisciplinar – para tematizar de modo eficaz as modalidades através das quais o valor se produz hoje em relação aos novos dispositivos de poder/saber de cunho governamental (em sentido foucaultiano, naturalmente).

Além disso, não é possível evitar que hoje se considere ser preciso sempre empenhar-se mais na fundação teórica de uma nova teoria do desfrute, para que ela seja adequada às profundas mudanças sociais, econômicas e culturais em curso. E, para andar nesta direção, a teoria marxiana do mais-valor continua como ponto de partida e ponto de articulação filosoficamente irrenunciável; insuficiente, portanto, mas não contornável.

IHU On-Line – Por que as categorias interpretativas da sociedade industrial são insuficientes para se compreender a mutação do capital em curso?

Federico Chicchi – Creio ser necessário sublinhar o modo pelo qual hoje está em andamento uma passagem a uma nova época que, por comodidade, chamaremos de pós-moderna, na qual as categorias conceituais de análise da sociedade industrial encontram pouca e escassa legitimidade. Por exemplo, nas teorias da modernidade industrial não é suficientemente tematizado nem compreendido o papel crescente do lado imaterial do trabalho (o cognitivo, intelectual, afetivo, emotivo, simbólico, relacional etc.) que, ao invés, torna-se hegemônico e central nas fileiras contemporâneas de produção do valor. Além disso, os “objetos” sobre os quais a análise econômica sobre a sociedade industrial se afirmava eram os mais confinados e realizados no interior dos muros da fábrica (a grande empresa industrial). E agora se tornam cada vez mais relevantes, também graças às revoluções digitais, as produções sociais “de baixo”, as redes cooperativas, as fileiras sem centro hierarquicamente definido, os territórios, os saberes locais, e as ecologias que estão em condições de se auto-organizar para a produção de riqueza e de semânticas sociais.

IHU On-Line – O que podemos entender por bioeconomia?

Federico Chicchi – A bioeconomia é, a meu ver, um grande e irrenunciável desafio teórico. Na Itália, muitos autores (como o próprio Andrea Fumagalli, que organizou o volume sobre a Crise Global (2) )estão trabalhando sobre a possibilidade de ler o capitalismo cognitivo dentro do “registro” bioeconômico. Em primeiro lugar, é preciso especificar que a bioeconomia (entendida neste sentido como um paradigma interpretativo) de fato não circunscreve um campo de formações discursivas internas à esfera econômica. A bioeconomia constrói realmente o seu sujeito, e não pode deixar de fazê-lo, na jamais saturada tensão entre economia e política.

Em outras palavras: raciocinar em termos bioeconômicos nos impele ao interior daquele lugar onde a síntese entre o econômico e o político se demonstra sem solução de uma vez por todas; isto é, que deve ser continuamente gerenciada e organizada, ou, numa palavra: governada. Neste sentido, e, a partir disso, a bioeconomia emerge da crescente vocação da economia contemporânea em recusar todo espaço de mediação de seu código operativo, ou seja, a inscrever-se sem exclusões significativas no próprio ponto no qual a vida mostra sua insurgência subjetiva e valorizadora, a tornar-se, portanto, consubstancial à potência intrínseca do vivente, imanente à própria vida. A bioeconomia refere-se, portanto, ao processo de captura da vida e à produção da própria vida no interior das regras do “discurso” econômico. Em outras palavras: o econômico pretenderia, no capitalismo biopolítico, colocar-se como única textura possível do Sentido e, paradoxalmente, como uma espécie de fundo antropológico originário.

A bioeconomia (desta vez entendida como paradigma da economia contemporânea) introduz, portanto, um verdadeiro e próprio efeito perturbador, porque nos mostra e desvela, sobretudo em suas mais recentes aplicações técnicas, a própria vida, o bios, o que é comum por definição, como uma mercadoria de todo contingente e agora, sob o impulso (ir)racional das paixões aquisitivas, exposta sem mais mediações ao risco das mais impensáveis coisificações / alterações / utilizações.

Além disso, o modo pelo qual se realiza o circuito do valor bioeconômico (a vida expressa em valor), implica novas coordenadas e novas modalidades de configuração das relações sociais de produção e de sua programática de poder. Desta maneira, se põe radicalmente em discussão (até quase invertê-la) a função de ordem da política, assim como tinha sido argumentada pelos clássicos da filosofia moderna (Hobbes (2), mais do que todos). A bioeconomia de fato também é descritível através de inéditos dispositivos de apropriação proprietária do valor (de desfrutamento biopolítico, portanto) que se complementam e interseccionam, representando um peso sempre mais relevante, com as precedentes práticas disciplinares ou anátomo-políticas, sem, no entanto, jamais torná-las de todo residuais. O resultado de tal complexo, e, sob certos aspectos, acéfalo aparelho de captura, é declinável e melhor descritível, em primeiro lugar, fazendo referência, como já dizíamos, aos delineamentos da foucaultiana prática governamental.

E, por último, mas não menos importante, é preciso sublinhar o modo como o bioeconômico gerenciamento das vidas que daí deriva se refere aos dispositivos de captura e tradução da “potência” do bios e de sua capacidade de se auto-organizar no interior dos atuais processos de acumulação. Para dizê-lo com as palavras de Andrea Fumagalli, “por bioeconomia, entendemos aquele processo que procura subsumir realmente (e não só formalmente) o inteiro agir humano para fins de acumulação” (FUMAGALLI, 2005, p. 41). Neste sentido, a bioeconomia necessita, a nosso ver, também uma nova sintaxe do desfrutamento, a ser entendida não mais unicamente como atividade de arbitrário entretenimento de um adicional ou excedente, mas também como persuasivo e, em geral, consensual atividade de produção e disposição da vida na cifra do útil, através de sua estruturação em mercadoria e através da regulação mercantilista e proprietária de seu “valor” intrínseco. Eis que mais-valor, mais-gozo (em sentido lacaniano) e mais-vida se interseccionam num abraço tão invasivo quanto circulatório, dando vida a uma espiral inédita de valorização.

IHU On-Line – Quais são as principais características que o trabalho assume na bioeconomia?

Federico Chicchi – Em primeiro lugar, é necessário destacar que o trabalho, na bioeconomia, está perdendo muitas das características que assumiu no interior da assim dita sociedade salarial. A prática laboral de uma parte cada vez maior de pessoas de fato, hoje, já não tem mais a ver com a execução passiva e hétero-dirigida de operações, mas sim com o tratamento de informações e conhecimentos, com o investimento da própria subjetividade em relações de trabalho e/ou com o desenvolver inovações de produtos e de processo.

Em outras palavras, a importância da atividade produtiva “rotineira” e do trabalho material, que consiste em transformar a matéria-prima através da ajuda de instrumentos e de máquinas, também materiais, diminui em favor de um novo paradigma do trabalho contemporâneo mais intelectual, imaterial e relacional. Para ser eficiente e apetecível, o trabalho deve hoje fazer-se de fato empreendedor, capaz de contribuir à solução (segundo as competências e em diferentes níveis de responsabilidade) dos problemas que uma atividade de empresa encontra em seu acidentado caminho competitivo.

Naturalmente, esta transformação está ligada a uma causa “estrutural” que é tida em alta consideração, ou seja: ela tem a ver com a transformação do saber-poder capitalista, que tem como objetivo irrenunciável e transversal em cada fase de sua evolução histórica, sob pena de sua crise irreversível, a produção de um excedente, de um extra a incorporar no interior de sua “obsessiva” dinâmica econômica de valorização. De fato, somente a inovação e a criatividade, não dedutíveis do existente, podem salvar o sistema da estagnação e da superprodução. Para garantir tal efeito, é a própria estrutura do comando do capital sobre o trabalho que vem modificar-se radicalmente, mudando os seus princípios de funcionamento: o que hoje é requerido é uma espécie de cooperação da parte de quem trabalha e que não se promove somente através da repressão e da passividade, mas através da estimulação do eu desejoso e daqueles caracteres pessoais que, no esquema da relação salarial tradicional, não eram significativos.

Hoje são a inteira produtividade do homem, sua fantasia, sua imaginação, sua sociabilidade, seu papel inovador e maleável às circunstâncias que são necessários. Ultrapassam, portanto, os contratos coletivos; e a relação com a empresa se personaliza através de incentivos especiais, férias-prêmio etc.

A perda de centralidade do trabalho assalariado, o progressivo tornar-se autônomo (auto-organizado), descentralizado e reticular da cooperação social, e o instaurar-se na relação entre capital e trabalho de uma norma sempre mais individualizada, traz consigo outra transformação econômica e social fundamental do trabalho que é central e imprescindível para reconstruir o sentido do nosso presente percurso interpretativo: o trabalho se apresenta hoje, ao mesmo tempo, no interior da empresa, mas contemporaneamente se organiza cada vez mais fora dela. Isto, no entanto, também significa que os limites tradicionais do trabalho (aqueles da competência profissional) tendem a tornar-se sempre mais porosos para acabar invadindo – com as lógicas instrumentais que lhe são consubstanciais – aqueles espaços de vida (antes ditos reprodutivos) que eram, num certo sentido, impermeáveis, porque eram considerados improdutivos, e não diretamente desfrutáveis para fins econômicos. Em outras palavras: o modo pelo qual o capital conseguiu aumentar a produtividade, a partir de um trabalho necessário (em sentido marxiano) e reduzido ao mínimo de automação e de informatização, foi aquele de sair da relação salarial, apropriando-se de toda uma série de atividades reprodutivas cujo contributo à valorização do capital permite liberar-se dos limites que a relação salarial coloca aos aumentos de produtividade.

IHU On-Line – O conceito de multidão proposto por Negri como resistência ao novo capitalismo lhe parece oportuno? Como o senhor interpreta esse conceito?

Federico Chicchi – O conceito de multidão na organização das práticas de resistência e subtração do trabalho-vivo ao desfrutamento de parte do capitalismo bioeconômico é, a meu ver, um conceito tão necessário quanto insuficiente. Necessário, porque sublinha e capta atual impossibilidade de recompor as lutas revolucionárias dentro de uma lógica “sintética” que reduza sempre e, em geral, todas as suas expressões subjetivas ao Uno. A multiplicidade ou, se quisermos chamá-la diversamente a diferença que descreve a multidão como espaço de ação das diversas singularidades é, certamente, uma instância por si revolucionária, que permite exercitar uma incessante liberação/experimentação social da criatividade autônoma e do desejar do trabalho-vivo.

A multidão interpreta e certamente descreve do melhor modo tal necessidade histórica; a forma multitudinária da luta é, de fato, hoje, a única que pode deslocar, em seu contínuo exercício de produção de excedentes éticos, o comando capitalista de tradução parasitária do fazer social no interior de uma forçosa medida proprietária da riqueza autonomamente produzida. No entanto, é, ao mesmo tempo, insuficiente porque nela mesma já não se encontram expressas e definidas aquelas formas necessárias de organização, capazes de “transferir” a um plano de “sustentabilidade” biopolítica e subjetiva as desmesuradas potencialidades produtivas que a multidão exprime numa dimensão antropológica de tipo pós-proprietário.

Por isso, o conceito de multidão, como, aliás, o próprio Negri sublinha por diversas vezes, em seus últimos trabalhos, é entretecido para se tornar politicamente eficaz, com uma prática social que se proponha como seu primeiro objetivo o de produzir “a partir de baixo” de suas novas constelações institucionais e normativas, que podemos chamar de Instituições do comum, que tornem o território habitado pelas singularidades menos escorregadio, menos instável e menos exposto à captura do capital.

Num certo sentido, e para concluir, a atividade de produção de novas instituições democráticas, a solicitar em torno da defesa dos bens comuns e da produção de espaços sociais do comum, representa o cenário no interior do qual as diferenças que animam a potência multitudinária poderia encontrar uma composição própria afirmativa e biopolítica.

Notas:

1.- Claudio Napoleoni (1924–1988) economista marxista e politico italiano. Foi professor de Política econômica na Faculdade de Ciência Política da Università di Torino.

2.- Andrea FUMAGALLI e Sandro MEZZADRA (a cura di), Crisi dell’economia globale. Mercati finanziari, lotte sociali e nuovi scenari politici. Verona: Ombre Corte/UniNOMADE, 2009.

3.- Thomas Hobbes (1588 – 1679): filósofo inglês. Sua obra mais famosa, O Leviatã (1651), trata de teoria política. Neste livro, Hobbes nega que o homem seja um ser naturalmente social. Afirma, ao contrário, que os homens são impulsionados apenas por considerações egoístas. Também escreveu sobre física e psicologia. Hobbes estudou na Universidade de Oxford e foi secretário de Sir Francis Bacon. A respeito desse filósofo, confira a entrevista O conflito é o motor da vida política, concedida pela Profa. Dra. Maria Isabel Limongi à edição 276 da revista IHU On-Line, de 06-10-2008.

(Ecodebate, 04/05/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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