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‘Com o fim da era dos movimentos sociais foi-se a energia moral da ousadia’. Entrevista especial com Rudá Ricci

Para o sociólogo Rudá Ricci, os movimentos sociais se tornaram organizações sociais e “perderam a lógica anti-institucionalizante e o ideário comunitarista-cristão do final do século passado”. Ele defende que o neoliberalismo não é mais hegemônico. “Quem comanda o Brasil em termos programáticos é o que a ciência política denomina de social-liberalismo, muito distinto do neoliberalismo. (…) A velha política está reeditada. E, em grande parte, pelo lulismo, que criou a mais abrangente e bem sucedida coalizão presidencialista da história da república brasileira”. Na entrevista que concedeu para a IHU On-Line, por e-mail, Ricci considera que a dificuldade de quem defende a ampliação da participação da sociedade civil no Brasil é que não sabemos lidar com a chamada nova classe média. “Teremos que aprender. Inclusive as lideranças populares. Somos, enfim, a geração dos anos 80 e estamos lidando com um fenômeno sociológico que expressa o Brasil Potência do século XXI”.

Rudá Ricci formou-se em Ciências Sociais pela PUC-SP. Na Universidade Estadual de Campinas, realizou o mestrado em Ciência Política e o doutorado em Ciências Sociais. Atua como consultor no Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal e do Instituto de Desenvolvimento. É diretor do Instituto Cultiva e professor da Universidade Vale do Rio Verde e da PUC-Minas. Escreveu o livro Terra de Ninguém: sindicalismo rural e crise de representação (Campinas: Editora da Unicamp, 1999).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor define, de forma geral, a situação dos movimentos sociais no Brasil hoje?

Rudá Ricci – Quase não existem movimentos sociais brasileiros tal como ocorreram nos anos 80. A quase totalidade deles é, hoje, organização. Movimento social não possui hierarquia, se caracteriza por mecanismos de democracia direta para tomada de decisões e luta por direitos, utilizando o conflito aberto como prática política. O que temos hoje são organizações populares, com hierarquia, orçamento fixo, fontes de recursos regulares, formação política e técnica própria, equipamentos e segmento administrativo. Na prática, disputam entre si a obtenção de recursos. O que não significa que não mobilizam socialmente. Mas perderam a lógica anti-institucionalizante e o ideário comunitarista-cristão do final do século passado.

IHU On-Line – Quais os maiores empecilhos para a ação dos movimentos sociais? Quais seus maiores desafios?

Rudá Ricci – São muitos fatores. O maior deles é a falta de instrumentos teóricos para repensar a política e a institucionalidade pública. Há uma deficiência de formulação marcante, que transforma os movimentos sociais e organizações populares do Brasil em reféns do Estado. Na verdade, vivemos a “estatatização” da sociedade civil. O termo é de Claus Offe. Gramsci denominou de estatolatria. Uma sociedade tutelada pelo Estado. Neste sentido, Luiz Werneck Vianna tem razão ao dizer que o lulismo completa o projeto iniciado por Vargas.

IHU On-Line – Como pensar em movimentos sociais atuantes em uma sociedade marcada pelo neoliberalismo e pelos valores da velha política?

Rudá Ricci – Em primeiro lugar, o neoliberalismo não é mais hegemônico. Quem comanda o Brasil em termos programáticos é o que a ciência política denomina de social-liberalismo, muito distinto do neoliberalismo. Eu estou escrevendo um livro sobre o lulismo e tento desenvolver esta hipótese analítica. A velha política está reeditada. E, em grande parte, pelo lulismo, que criou a mais abrangente e bem sucedida coalizão presidencialista da história da república brasileira. Perceba que o mensalão afastou lideranças sociais intermediárias (não de base, mas também não da cúpula nacional) do apoio incondicional à Lula. E, de certa maneira, este afastamento gerou uma relação direta de Lula com a classe média emergente (49,9% da população brasileira, segundo a FGV RJ é classe C, hoje, numa ruptura com várias árvores genealógicas de brasileiros que sempre foram pobres e cujas famílias sempre se sentiram marginalizadas). Enfim, se Getúlio falava para o trabalhador urbano, Lula fala para esta classe média emergente, desconfiada, ressentida, que desconfia da política, pragmática. Lula, em certa medida, é a expressão desta classe emergente. E diz isto com todas as letras no filme-documentário “Entreatos”  . A dificuldade de quem defende a ampliação da participação da sociedade civil no Brasil é que não sabemos lidar com esta nova classe média. Teremos que aprender. Inclusive as lideranças populares. Somos, enfim, a geração dos anos 80 e estamos lidando com um fenômeno sociológico que expressa o Brasil Potência do século XXI.

IHU On-Line – Quais são os movimentos sociais com mais força no Brasil hoje?

Rudá Ricci – A organização social (não movimento social) mais articulado e forte nacionalmente é o MST. Mas o movimento social mais forte é, possivelmente, o ambientalista, seguido pelo de direitos de crianças e adolescentes, saúde e habitação. Mas estão desarticulados nacionalmente. E não conseguem elaborar uma agenda nacional. Muitas lideranças, é importante destacarmos, tornaram-se diretores de ONGs, conselheiros de gestão pública, membros do parlamento ou do poder executivo. E perdemos, de meados dos anos 90 para cá, toda a energia e articulação que emergia dos programas de formação política de massa que tínhamos construído nos anos 80.

IHU On-Line – Qual deve ser o real sentido de um movimento social?

Rudá Ricci – A luta por direitos. A inscrição, aceitação e institucionalização de direitos universais que garanta a autonomia política e social. Em segundo lugar, a sustentabilidade ou garantia desta conquista, o que significa aumentar o poder da sociedade civil no interior do Estado. Sem participação e controle social, os direitos tornam-se uma dádiva e se reduzem a interesses de grupos sociais. Somente o controle social sobre o Estado articula e dá sentido universal aos direitos e configura um novo país. Infelizmente, no Brasil de hoje, o que temos é a criação do pacto fordista tupiniquim, que gera inclusão no mercado de consumo, mas não inclusão no processo decisório da política pública brasileira. Continuamos com uma cidadania inacabada. E efetivamos a modernização conservadora em nosso país.

IHU On-Line – Quais as consequências de movimentos sociais moldados à lógica do Estado brasileiro?

Rudá Ricci – A legitimação da pauta de governo, o afastamento das lideranças da sua base social, a substituição da educação política pela educação social, a fragmentação e especialização das pautas e eventos da sociedade civil, o fortalecimento do Estado como demiurgo do desenvolvimento do país. A Era dos Movimentos Sociais acabou. Ela teve início no final dos anos 70 e foi concluída logo após a constituinte de 87. Foi marcada pela hegemonia do ideário participacionista. Neste século, a hegemonia é do profissionalismo da política, a capacidade de governança, o retorno de quem fez política nos bairros e fábricas para suas casas e conversas com amigos. A política, agora, é coisa de quem ganha para isto. Trata-se de um forte padrão de americanização da política nacional.

IHU On-Line – Considerando os governos políticos dos países da América Latina, e suas trajetórias dentro de organizações de esquerda da sociedade civil, o senhor acredita que estamos nos encaminhando para uma “continentalização da esquerda”?

Rudá Ricci – Sim e não. Não temos UMA esquerda, mas várias. A grande imprensa brasileira e parte das lideranças sociais contribuem para certa pasteurização desta análise. Em parte da América Central, embora o discurso dos dirigentes seja mais esquerdista, a grande questão é étnica, de direitos indígenas, que se confundem com a pobreza rural. Venezuela é outra história. Trata-se de uma esquerda militar e militarizada. Esta característica do chavismo é preocupante porque novamente se desenrola a estatalização da sociedade civil, ou seja, uma sociedade tutelada. O discurso bélico, de conflito eminente com a Colômbia, cria o caldo de cultura, também utilizado pelo castrismo em Cuba, que vincula Governo com Estado e Nação. Uruguai, Chile, Brasil são absolutamente distintos. Argentina é um caso ainda mais distinto, um país totalmente demarcado pelo peronismo, de direita à esquerda. Lugo é uma incógnita, ainda. A questão é outra: como será o resultado da disputa do lulismo com o chavismo. Esta é a questão central. De qualquer maneira, acredito que o único país latino-americano onde a direita está absolutamente domesticada é o Brasil, onde eles perderam toda hegemonia (do ponto de vista político-partidário). É algo inusitado e surpreendente. Mas é um sintoma do social-liberalismo e da coalizão presidencialista montada pelo lulismo.

IHU On-Line – O que deveria fazer parte de uma plataforma continental, ou até mesmo internacional, dos movimentos sociais?

Rudá Ricci – Este me parece um delírio chavista. Não temos nem unidade em nosso país, o que dizer do continente. E a lista montada por Chávez para a criação da 5ª Internacional não tem absolutamente nada de esquerda. Trata-se de um projeto geopolítico do chavismo. Não acredito em unidade de movimentos sociais proclamada a partir de governos. São as lideranças sociais que devem proclamar sua unidade, não uma força exógena. E nossas lideranças são muito mais cautelosas que o chavismo.

IHU On-Line – Como o senhor define o movimento de luta civil que está acontecendo em função da Convenção do Clima em Copenhague? Há algo novo em relação à forma como os grupos querem ver reconhecidas suas demandas?

Rudá Ricci – De certa maneira, a forma é a desenhada tantos anos antes pelo Greenpeace. Articula rede, ousadia, discurso midiático, agressividade e elaboração técnica. Sinceramente, acredito que a novidade mais importante surgiu na campanha eleitoral de Obama, não a oficial, mas a que envolveu organizações de direitos civis dos EUA. O Partido Democrata simplesmente perdeu o controle do que se fez na Internet. O Obama da campanha foi apropriado por organizações sociais e não tinha nada a ver com o real Obama. Foi algo fantástico, uma explosão moral e social. Mas foi apenas um esboço, um primeiro movimento, que ainda não configurou uma nova forma de fazer e poder políticos.

IHU On-Line – Qual tem sido o papel do governo Lula em relação aos movimentos sociais? Pode-se falar em movimento social antes de Lula e pós-Lula?

Rudá Ricci – Sim. Lula fragmentou a energia moral que vinha dos movimentos sociais. A questão não foi a institucionalização, mas a estatalização. Ele poderia ter caminhado para adotar a lógica política dos movimentos sociais como contraponto ao processo decisório burocrático. Mas fez o inverso. Na primeira gestão, tivemos um arremedo de controle social com as audiências públicas do Plano Plurianual em todas as capitais do país. Na segunda gestão, as audiências públicas foram extintas. Na primeira gestão, tínhamos as estruturas de educação popular e controle social do Fome Zero. Na segunda gestão, já nem tínhamos Frei Betto e Ivo Poletto. Enfim, a lógica é bem nítida.

IHU On-Line – O senhor acha que interessa hoje ao PT e a Lula movimentos sociais fracos?

Rudá Ricci – Não. Trata-se de uma lógica de poder. Podemos dizer que temos duas histórias do PT: a dos anos 80 até meados dos anos 90, marcada pelo ideário dos movimentos sociais, pelos núcleos de base e pelo consenso progressivo; e a de meados dos anos 90, pragmático, que abandona a formulação programática para se constituir numa poderosa estrutura eleitoral de tipo empresarial, aos moldes do modelo norte-americano. O lulismo bebeu nas águas do pragmatismo sindical urbano (o rural é bem distinto) e no burocratismo de parte das correntes partidárias. Ele já estava lá, mas só os militantes e dirigentes o conheciam.

IHU On-Line – O ministro Luiz Dulci, responsável pela relação com os movimentos sociais, é considerado pelos próprios movimentos como um ministro fraco, sem força política e que age muito mais para “enrolar” os movimentos em vez de agilizar suas demandas. O senhor tem a mesma impressão?

Rudá Ricci – Primeiro, Luiz Dulci faz parte do núcleo formulador do lulismo. Mas, sem dúvida, possui um diferencial porque possui uma leitura política mais gramsciana, mais cultural e sempre está aberto a ouvir as lideranças sociais e organizações populares. Fui testemunha de muitas de suas tentativas de ampliação de espaço das organizações populares como interlocutores do governo. Minha dúvida é por qual motivo não seguiu o mesmo caminho que Frei Betto, Marina Silva e tantos outros. E esta dúvida me perturba.

IHU On-Line – Como o senhor vê as perspectivas do movimento social brasileiro?

Rudá Ricci – Não há grandes alternativas. Uma possibilidade é se inscreverem neste grande pacto montado pelo lulismo, fragmentando-se ainda mais em temas e pautas específicas, aproximando-se, em muito, do que ocorre no México. Seria a “mexicanização” dos movimentos sociais e organizações populares brasileiros. A segunda hipótese seria a “volta para o futuro”, ou seja, retomada do projeto dos anos 80 em novas bases, criando uma rede de escolas da cidadania para formação para o controle social, articulando a rede de 30 mil conselhos de gestão pública para criar uma verdadeira “invasão do Estado” ou “Estado ampliado”, disputando projetos educacionais de massa, como o programa Educação Fiscal, valorizando práticas de controle social existentes, elaborando uma agenda de desenvolvimento social paralela ao sistema partidário brasileiro, organizando campanhas pela lei de responsabilidade social (que possibilite cassação de autoridades públicas que não melhorarem indicadores sociais ou que não cumprirem deliberações de conselhos de gestão pública), adotando a Plataforma dos Movimentos Sociais para a reforma política. Há caminhos. Mas o problema são os interesses específicos, os convênios, a sobrevivência política. Com o fim da Era dos Movimentos Sociais, foi-se a energia moral da ousadia.

(Ecodebate, 02/12/2009) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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