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Artigo

Ataques a indígenas em MS: fazer viver o grande capital e deixar morrer os que a ele não se ajustam, artigo de Iara Tatiana Bonin

Despejo Guarani Kaiowá Nhanderu Marangatu – Dez/2005 – Fotos: Egon Heck/Cimi
Despejo Guarani Kaiowá Nhanderu Marangatu – Dez/2005 – Fotos: Egon Heck/Cimi

Em 20 de junho de 1964, no Mississipi, sul dos Estados Unidos, uma igreja freqüentada por negros foi incendiada durante a realização de um culto, deixando várias pessoas feridas. Essa era uma prática utilizada naquela região para expulsar as famílias negras e realizar uma espécie de “limpeza racial”. Na ocasião, três jovens militantes dos direitos civis, que denunciaram o incêndio criminoso, foram presos pela polícia. Após várias horas de detenção, interrogatório e intimidação, eles foram soltos mas estavam sendo aguardados por um grupo de homens brancos, armados e encapuzados, membros do movimento racista e criminoso conhecido como Ku Klux Klan. Os três jovens foram capturados, amordaçados, torturados até a morte e seus corpos apareceram, dias depois, boiando em um açude. Quarenta anos se passaram e nenhum dos culpados foi punido, apesar das inúmeras evidências que ligam o crime aos proprietários de terra da região.

Em 29 de outubro de 2009, no Mato Grosso do Sul, algumas famílias Guarani-Kaiowá retomaram uma parcela de suas terras tradicionais, ocupada hoje pela fazenda Triunfo, no município de Paranhos. No dia seguinte, um grupo de homens brancos, armados e encapuzados entrou no acampamento, insultou e agrediu violentamente os guarani, expulsando-os da área. Dois jovens professores que também participaram da retomada – Genivaldo Vera e Rolindo Vera – foram arrastados pelos cabelos e seqüestrados pelos agressores. Dias depois o corpo de Genivaldo foi encontrado com perfurações e marcas de violência, preso a um galho de árvore, no córrego Ypoi, distante 30 quilômetros do local do crime. O corpo de Rolindo continua desaparecido e, de acordo com a polícia, as investigações “seguem”, porém em sigilo. Nem mesmo a causa da morte de Genivaldo foi revelada à família. Um mês antes, a comunidade Laranjeira Ñanderu, também dos Guarani-Kaiowá, foi atacada por outro grupo de homens brancos, encapuzados e armados, que os expulsou do lugar, ateando fogo em seus pertences e matando, inclusive, os animais de criação. Passados somente quatro dias, 10 homens atacaram a comunidade Guarani-Kaiowá Apyka´y, que vive em um acampamento às margens da BR-483. Na ocasião, um indígena de 62 anos foi baleado e diversos barracos foram queimados.

O que há de comum entre a cena de violência praticada nos Estados Unidos, há mais de 40 anos, e as de Mato Grosso do Sul? Os casos se aproximam e se confundem pela atrocidade e arrogância desses “homens brancos”, que agem contra a lei, e que incendeiam propriedades, aprisionam, torturam e matam jovens inocentes que ousam assumir a luta em defesa dos direitos humanos, sociais e políticos de seus povos.

Os símbolos de força e de poder utilizados traçam também um paralelo entre os acontecimentos de lá e daqui: incendiar construções, destruir objetos, matar animais, eliminar, a ferro e fogo, aquilo que liga os negros e indígenas às suas terras, que são o estopim do conflito. A covardia é outra marca da ação dos agressores nas situações anteriormente descritas, e se manifesta especialmente pelo uso de capuzes – signos de uma violência “sem rosto” ou, melhor dizendo, de uma violência que esconde o rosto de todos aqueles que desejam o afastamento, a retirada ou a morte de sujeitos vistos como indesejáveis por razões econômicas, políticas, culturais ou raciais.

Os assassinatos praticados também se assemelham na forma – prisão arbitrária, tortura, uso de meios cruéis, impossibilidade de defesa das vítimas – e estas são as expressões do ódio cultivado contra os negros, no caso do Mississipi, e contra os índios em Mato Grosso do Sul. É impossível imaginarmos que esses violentos ataques aos povos indígenas sejam fatos isolados, ou que eles sejam apenas sintomas de um desvio na conduta ética e moral de alguns indivíduos. Esse tipo de violência está inegavelmente relacionado às instituições sociais e às práticas contemporâneas de discriminação e segregação social protagonizadas, em grande medida, pelos governos.

O estado brasileiro, cujas instituições deveriam promover a vida de todos os cidadãos, privilegia alguns, assegurando-lhes as condições de bem viver e de liberdade para investir e para explorar, enquanto condena outros à marginalidade, à insegurança e à morte. Embora os direitos e deveres se baseiem, ao menos teoricamente, no princípio da igualdade entre todos os cidadãos, no dia a dia o que se estabelece é um tipo de racismo institucionalizado que diferencia aqueles que devem viver e os que devem morrer, tomando por base critérios econômicos e políticos. Neste contexto, ressurgem aquelas velhas hierarquias que formam as noções de supremacia racial há mais de um século, e que afirmam a superioridade, a produtividade e a utilidade de uns (aqueles que se encaixam no sistema) e a inferioridade, a improdutividade e a descartabilidade de outros (os que resistem e propõem outras formas de pensar e de viver).

O ato de deixar morrer os segmentos considerados improdutivos e descartáveis é praticado pelo estado brasileiro de muitas maneiras: no caso dos povos indígenas, através de ações e omissões que os expõem à morte, através da burocracia e da morosidade que multiplica os riscos para a vida desses povos e, em especial, dos Guarani-Kaiowá, que vivem em situações de confinamento em terras ínfimas ou em acampamentos provisórios, sem garantias mínimas de segurança e de sobrevivência. Em condições como estas, o governo decreta, também, a morte política dos povos indígenas, na medida em que não controla, não fiscaliza e nem pune as práticas de expulsão, de rejeição e de extermínio que infelizmente se tornam cada vez mais comuns em Mato Grosso do Sul e em outros estados brasileiros.

A violência sistemática de que têm sido vítimas os Guarani-Kaiowá (ameaças, assassinatos, falta de atenção à saúde, desnutrição, agressões físicas e simbólicas, descaso e omissão que intensificam as tensões internas e aumentam os suicídios, entre tantas outras) mostram que está em curso uma efetiva e cada vez mais eficaz política de extermínio. E quando o governo Lula lava as mãos diante da ultrajante situação vivida por este povo, quando dá as costas às insistentes reivindicações para que se realizem os procedimentos administrativos de demarcação das terras, quando prefere acolher as demandas dos empresários e quando afirma que o desenvolvimento do país não pode ser freado por alguns “penduricalhos”, ele não apenas acata, como também estimula as práticas individuais de “combate” e “remoção” dos obstáculos através do linchamento, do assassinato, do assédio físico e moral. Mais do que nunca, os grandes latifundiários, os fazendeiros, os agentes do agronegócio se sentem autorizados a agir por conta própria, porque encontram respaldo em um discurso governamental que tudo converte em capital (os recursos naturais, a terra, o ser humano).

O principal objetivo da Ku Klux Klan era manter os privilégios políticos e econômicos dos brancos no sul dos Estados Unidos, impedindo aos negros o acesso à terra, à educação, à participação política. O objetivo desses grupos criminosos que hoje ameaçam e agridem os Guarani-Kaiowá é o mesmo: mantê-los enfraquecidos, impedir que os Grupos de Trabalho (GTs) realizem estudos que comprovarão, inevitavelmente, o direito indígena às áreas reivindicadas. Há mais de dois anos, a Funai e o Ministério Público Federal assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), assumindo como prioridade a realização de estudos para identificação de terras tradicionais Guarani-Kaiowá, em Mato Grosso do Sul. Os trabalhos técnicos foram iniciados em agosto de 2008 e paralisados diversas vezes, tanto por ações judiciais, quanto por pressões de políticos e fazendeiros ou por ameaças sofridas pelos membros da Funai.

Por isso, no caso específico do assassinato dos dois professores – Rolindo Vera e Genivaldo Vera – as responsabilidades devem ser inteiramente atribuídas aos poderes Executivo e Judiciário: ao Governo Federal, por protelar os procedimentos administrativos de demarcação das terras; ao Judiciário, por não assegurar as condições para a realização dos GTs naquela região e, especialmente, por deixar as famílias indígenas abandonadas à própria sorte, apesar das recorrentes denúncias de abuso de poder praticado por policiais e das ameaças e agressões constantes, empreendidas por fazendeiros e pistoleiros que se colocam acima da lei e da justiça.

Além das agressões contra os Guarani-Kaiowá, registram-se ações violentas contra outros povos, tal como ocorreu com os Terena, no dia 19 de novembro, quando um grupo de fazendeiros acompanhados por seguranças particulares armados despejou, sem ordem judicial, uma comunidade que havia retomado parte da terra Buriti, no município de Sidrolândia/MS, identificada em 2001 como parte do território do povo Terena, mas até hoje mantida nas mãos de fazendeiros. Após a decisão oficial do Tribunal Regional Federal, 3ª. Região, de que os Terena poderiam permanecer naquelas terras até que a ação principal fosse julgada, os fazendeiros decidiram agir por conta própria e puderam contar, inclusive, com o apoio de cerca de 50 policiais militares que participaram da ação ilegal de despejo. Neste caso, em particular, os agentes do poder público cometeram uma dupla ilegalidade: primeiro por não assegurarem a posse e o usufruto exclusivo dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais, conforme determina a Constituição e, segundo, por agirem em defesa de interesses de terceiros, sem o amparo de uma determinação judicial para realizar a retirada dos Terena da área por eles ocupada.

Todos esses acontecimentos mostram que, se por um lado o mundo ocidental pode se orgulhar de ter desenvolvido um sólido conjunto de princípios que resguardam os direitos humanos, a aplicação e a garantia desses direitos, por outro lado, é tremendamente desigual quando se trata de cidadãos brancos, negros ou indígenas, ricos ou pobres, influentes ou considerados descartáveis. É a absoluta inversão dos direitos humanos que possibilita ao governo brasileiro colocar, na atualidade, os interesses econômicos e políticos acima das necessidades e urgências da sociedade. É o descaso com a vida de amplas parcelas da população que leva o governo a optar pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e não por políticas sociais adequadas, que assegurem terra, emprego, moradia, saúde, segurança a todos os cidadãos e não apenas a uns poucos privilegiados. A opção por um modelo de crescimento a qualquer preço, que privilegia a monocultura, o agronegócio, os mega-investimentos e que canaliza recursos para a construção de obras monumentais, tais como a hidrelétrica de Belo Monte, o complexo hidrelétrico do Rio Madeira, a transposição do rio São Francisco, é também responsável pela morte daqueles que não se ajustam aos ditames desse arrogante e imperialista estilo de pensar.

No contexto atual, fazer viver o grande capital requer deixar morrer os resíduos humanos, os signos de atraso, os que não se enquadram nas projeções de um futuro grandioso que o governo Lula espera ver nascer do agronegócio e dos agrocombustíveis. Neste contexto de flexibilização das leis para acomodar os interesses econômicos e, ao mesmo tempo, de impunidade, fortalecem-se os grupos antiindígenas, alguns deles responsáveis por atos criminosos, tais como os que hoje se organizam em Mato Grosso do Sul. Pode-se dizer que a certeza da impunidade também aproxima as cenas de horror vividas pelos Guarani-kaiowá: a arrogância dos agressores é alimentada e potencializada pelo poder público, quando este criminaliza as iniciativas de luta empreendidas pelos povos indígenas, quando responsabiliza as próprias vítimas pelo que lhes acontece, ou quando faz uso de estratégias claramente configuradas como abusos de poder.

Nos Estados Unidos, os capuzes brancos e a cruz em chamas simbolizavam um movimento racista, discriminatório e xenofóbico que existe até os dias atuais. Em Mato Grosso do Sul as violências contínuas, com requintes de crueldade, com uso do fogo, das armas, de capuzes, mostram a revitalização de um sentimento de ódio ao “outro”, ao diferente, ao que não aceita ser subjugado. A perversidade dos atos praticados com participação ou por omissão do poder público evidenciam, naquele Estado, a prática do crime de genocídio, previsto na Lei nº. 2889/56, que se aplica a todos aqueles que, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupos étnicos, raciais ou religiosos, matam pessoas pertencentes a estes grupos ou lhes causam lesões, ameaçando sua integridade física ou cultural.

Iara Tatiana Bonin, Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Professora do PPGEDU/ULBRA

Artigo do CIMI, Conselho Indigenista Missionário, publicado pelo EcoDebate, 26/11/2009

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