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Notícia

Desenvolvimento, conflitos sociais e violência no Brasil rural: o caso das usinas hidrelétricas

Development, social conflicts and violence in rural Brazil: the case of hydroelectric dams

Andréa Zhouri; Raquel Oliveira

Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais – GESTA,UFMG


RESUMO

A mundialização do capital resulta não só na re-localização dos investimentos, mas na transferência do ônus das degradações para os países e classes sociais mais vulneráveis. No Brasil, este processo tem resultado na viabilização de projetos hidrelétricos e, com efeito, na multiplicação das tensões e confrontações entre as populações locais e o Setor Elétrico. Este texto analisa tais experiências de conflito, por vezes violentas, dando ênfase aos significados articulados pelas duas racionalidades em disputa.

Palavras-chave: Conflitos ambientais. Hidrelétricas. Violência no campo.


ABSTRACT

Mundialization of capital results not only in the relocation of the productive activities and investments, but also in the transfer of the responsibility for degradation to the most vulnerable classes and countries. In Brazil, this process has brought about large as well as small electric power plants. Consequently, confrontational events between locals and the Electric Sector are multiplied. This paper analyzes such existing conflict experience, focusing on the meanings produced by the two rationalities in dispute.

Keywords: Environmental conflicts. Hydroelectric power plants, Violence in rural Brazil.


1 Introdução

O estabelecimento de valores econômicos exige a desvalorização de todas as outras formas de vida social. Essa desvalorização transforma em um passe de mágica, habilidades em carências, bens públicos em recursos, homens e mulheres em trabalho que se compra e vende como um bem qualquer, tradições em fardo, sabedoria em ignorância, autonomia em dependência (ESTEVA, 1992, p. 18).

A mundialização, entendida como uma nova configuração dos mecanismos de acumulação do capital a partir de processos concomitantes de descentralização das operações produtivas e centralização do capital (CHESNAIS, 1996), resulta não só na “re-localização” dos investimentos e atividades produtivas, mas na “polarização da riqueza”. Assim, longe de produzir um cenário de integração entre as diversas regiões do globo, a lógica seletiva do capital atinge de maneira distinta determinadas regiões e camadas sociais, resultando numa distribuição desigual dos impactos e riscos decorrentes das atividades produtivas (CHESNAIS; SERFATI, 2003). A partir de diversos instrumentos políticos, o capital demonstra sua eficácia quanto à transferência do ônus das degradações para os países e classes mais vulneráveis, de forma que os efeitos da(s) crise(s) ecológica(s) atingem predominantemente determinadas parcelas da população dos países do Sul (CHESNAIS; SERFATI, 2003).

No Brasil, os efeitos das transformações acarretadas pelo processo de mundialização manifestam-se, sobretudo, a partir da adoção de uma política conservadora de ajuste econômico que tem reconduzido meio ambiente e justiça social ao estatuto de “entraves ao desenvolvimento”1, colocando em risco as fundamentais conquistas ambientais das últimas três décadas. A própria “liberação das forças do mercado” característica da mundialização exige a disseminação de uma política de desregulamentação capaz de subtrair quaisquer barreiras aos movimentos dos grandes grupos do capital privado (CHESNAIS, 1996). Com efeito, o que se tem é o sistemático esvaziamento dos instrumentos de planejamento e decisão da política ambiental e, conseqüentemente, a viabilização de grandes projetos de infra-estrutura. Multiplicam-se, assim, cenários de confronto entre as populações locais, setores do Estado e segmentos empresariais. Este processo torna-se evidente na política de expansão da geração de energia elétrica no Brasil.

Baseado na experiência de pesquisa sobre os processos envolvendo o licenciamento ambiental de usinas hidrelétricas em Minas Gerais, este texto enfoca as experiências de conflito, avaliando os processos desencadeados no local a partir da opção política de desenvolvimento perpetuada pelo Estado brasileiro no curso do processo de mundialização do capital. Ênfase será dada aos significados produzidos e articulados por duas racionalidades em confronto: de um lado, as populações ribeirinhas que resguardam a terra como patrimônio da família e da comunidade, defendido pela memória coletiva e por regras de uso e compartilhamento dos recursos; de outro lado, o Setor Elétrico, incluindo-se o Estado e empreendedores públicos e privados que, a partir de uma ótica de mercado, entendem o território como propriedade, e, como tal, uma mercadoria passível de valoração monetária. Nesse campo de lutas, em que as diferentes posições sustentam forças desiguais, perpetuam-se políticas socialmente injustas e ambientalmente insustentáveis, enquanto as comunidades ribeirinhas lutam contra uma lógica reificadora que as transforma em objeto na paisagem “natural” (SIGAUD et al., 1987; VAINER, 2004), por via de conseqüência, tornando-as invisíveis enquanto sujeitos sociais e atores políticos dotados de desejos e direitos. Neste cenário, multiplicam-se casos de violência em que o aparato policial é utilizado para fazer valer os interesses econômicos que representam o desenvolvimento desigual e excludente, situação que denuncia as falácias da noção hoje dominante de desenvolvimento sustentável.

2 Desenvolvimento sustentável e política energética: as hidrelétricas no paradigma da adequação

Para os economistas do Fórum Econômico Mundial (Environmental Sustainability Index, Suíça: 2000 e 2001) auto-intitulados Global Leaders for Tomorrow Environment Task Force, o nível de produção de energia hidrelétrica de um país constitui um indicador de sustentabilidade ambiental. Tal afirmação no contexto da sociedade brasileira pode contribuir para a crença de que o país caminha no sentido de um ‘desenvolvimento sustentável’ uma vez que 70,5% da capacidade instalada no país provêm de fonte hidraúlica2. No entanto, são 494 projetos de construção de usinas hidrelétricas a serem implementados até o ano 2015. Nesse contexto, as barragens já inundaram 3,4 milhões de hectares de terras produtivas e desalojaram mais de um milhão de pessoas no país. Quadro este que tem se agravado a partir da privatização do Setor Elétrico brasileiro, já que os investimentos provenientes dos grandes grupos multinacionais se difundem, ora na aquisição das antigas empresas públicas, ora na formação de inúmeros consórcios3. Tais consórcios, compostos em boa parte por empresas ligadas a atividades eletrointensivas, multiplicam seus investimentos na área de geração com o objetivo de atender suas próprias demandas4.

Dinâmicas como esta possibilitam a reprodução e até a expansão das atividades que supõem uma exploração intensiva dos recursos naturais nos chamados “países em desenvolvimento” (BERMANN, 2004b). Um exemplo significativo é dado pela produção do alumínio primário no Brasil. Cerca de 60% do montante de alumínio produzido no país é destinado à exportação para os grandes centros consumidores e outros 11,4% são exportados sob a forma de produtos semi-manufaturados (BERMANN, 2004a). Essa política, que resultou na construção de grandes projetos hidrelétricos na Amazônia, reproduz-se, hoje, com a disseminação de novos empreendimentos destinados ao auto-fornecimento de energia a grupos como ALCAN Alumínios do Brasil (Canadá), atualmente Novelis Brasil LTDA, ALCOA Alumínio (EUA), Billiton Metais (Reino Unido) e outros. Tal cenário resultante dos processos de re-localização das plantas de fundição de alumínio no mundo perpetua a inserção do Brasil nas dinâmicas da mundialização a partir do lugar específico ocupado pelos países exportadores de insumos ou produtos intermediários de alto consumo energético e baixo valor agregado (BERMANN, 2004b).

O resultado dessa dinâmica é a intensificação do uso de áreas economicamente marginais e a expansão da fronteira econômica do mercado sob territórios historicamente ocupados por agricultores familiares e minorias étnicas. Nessa medida, o que se tem é a conformação de zonas de conflito onde as assimetrias de poder que atravessam as relações entre os segmentos em disputa resvalam em processos violentos de expropriação das populações locais. Frente à organização de unidades de mobilização e resistência, setores do Estado brasileiro não raramente têm respondido às denúncias e reivindicações locais com ações repressoras.

Edificada sobre um campo de poder extremamente desigual (BOURDIEU, 2002; ZHOURI et al., 2005), a implantação de grandes paisagens industriais (hidrelétricas, monoculturas de soja, cana-de-açúcar e eucalipto) redunda, assim, em confrontos violentos e experiências diversas de violação de direitos humanos5, o que pode ser ilustrado pelo processo de desapropriação compulsória para a construção da hidrelétrica de Candonga em Minas Gerais6. Neste caso, os moradores que se recusaram a deixar o antigo povoado em que moravam, devido à existência de pendências nos processos de negociação, foram obrigados a deixar suas casas sob a ameaça e a presença ostensiva de grande aparato policial. Cerca de 190 policiais foram recrutados para fazer cumprir a ordem judicial de despejo de 14 famílias que ainda residiam no local. Situação semelhante também ocorrera no estado do Espírito Santo onde a ação de despejo comandada pela Polícia Federal resultou na destruição de duas aldeias indígenas em terras ocupadas da empresa Aracruz Celulose7.

Não obstante, as tensões engendradas nesse campo de disputas suscitam reações extremas por parte dos movimentos sociais e das mobilizações locais8. Por outro lado, a ação repressora das empresas redunda em confrontos violentos e episódios como ameaças9, prisões de lideranças e manifestantes10, ferimentos11 e até relatos sobre desaparecimento de moradores12.

Tais episódios têm lugar no interior do paradigma da adequação ambiental, oposto ao projeto de sustentabiliade. Isso ocorre porque projetos industriais, concebidos no âmbito de uma política de desenvolvimento voltada para o crescimento econômico com ênfase na exportação, são concentradores de “espaço ambiental” (OPSCHOOR, 1995), gerando, assim, conflitos sociais. Tais assimetrias na apropriação social da natureza são geradoras de uma má distribuição ecológica e, portanto, originam conflitos ambientais, na medida em que a utilização de um espaço ambiental ocorra em detrimento do uso que outros segmentos sociais possam fazer de seu território (MARTINEZ-ALIER, 1999; 2001; ACSELRAD, 2004a). É nesse contexto que inserimos a construção de barragens hidrelétricas que, em geral, tendem a produzir energia para suprir primordialmente um determinado segmento da economia industrial, notadamente as indústrias eletrointensivas, como o setor de alumínio (BERMANN, 2002)13. Nessa medida, entendemos que as barragens são geradoras de injustiça ambiental.

Via de regra, os projetos são licenciados, malgrado insuficiências de estudos, restrições legais e resistências das populações atingidas.14 As decisões ancoram-se no paradigma ambiental dominante, que deposita fé na “modernização ecológica”. Nesse sentido, configuram-se como ações políticas no âmbito da lógica econômica, “atribuindo ao mercado a capacidade institucional de resolver a degradação ambiental” (ACSELRAD, 2004b, p. 23) através de medidas mitigadoras e compensatórias. Temos denominado esse modelo dominante de “paradigma da adequação ambiental” por oposição a um “paradigma da sustentabilidade” (ZHOURI et al., 2005).

No “paradigma da adequação”, a obra assume lugar central, apresentando-se de forma inquestionável e inexorável. Nesta concepção, o ambiente é percebido como externalidade, paisagem que deve ser modificada e adaptada aos objetivos do projeto técnico. Nesse processo, arranjos e ajustes tecnológicos dados por medidas mitigadoras e compensatórias cumprem a função de adequação. Com efeito, a “necessidade” e a viabilidade socioambiental da obra não são colocadas em pauta. Em oposição a esse modelo, o paradigma da sustentabilidade coloca em discussão os padrões de produção e consumo que reclamam pela obra, os interesses e valores sociais que estão envolvidos em sua construção e seus reais beneficiários. Nesse sentido, o paradigma da sustentabilidade exige uma análise efetiva acerca da viabilidade socioambiental da obra, contemplando as potencialidades do ambiente em que ela se insere e sua relação com os usos e significados atribuídos ao território no local.

Sustentado pela crença na capacidade tecnológica de prever e reduzir seus riscos e efeitos, o paradigma da adequação opera no interior da racionalidade econômica instrumental. Dessa forma, contra a mera “modernização ecológica”, que resulta na condição de invisibilidade e desvalor a pessoas e ambientes (ZHOURI et al., 2005), organizam-se os sujeitos dos movimentos de resistência que reivindicam e anunciam a construção do paradigma da sustentabilidade. Em meio a esses movimentos, situamos os moradores do Vale do Jequitinhonha.

3 Identidade, território e a luta pelo significado do lugar

Plataforma de lançamento do programa “Fome Zero” em 2003, e denominado “Vale da Miséria” pelas autoridades e políticos de Minas Gerais, o Vale do Jequitinhonha carrega o estigma de ser uma das regiões mais pobres do País. Nesta condição, o Vale tem inspirado iniciativas políticas de caráter messiânico, apresentando uma história marcada por projetos de desenvolvimento supostamente “redentores” (RIBEIRO, 1993). Desde os anos de 1970, destacam-se as propostas industriais que vêm transformando a diversa paisagem dos ecossistemas do Cerrado, da Caatinga e da Mata Atlântica em monoculturas de eucalipto e represas hidrelétricas.

Em um quadro geral, podemos afirmar que, a partir do século XVII, as regiões do Alto e do Médio Jequitinhonha, nordeste de Minas Gerais, constituíram um cenário no qual as grandes fazendas de gado – com cativos, parceiros e agregados – disputavam o espaço com pequenas propriedades familiares comandadas por lavradores independentes (RIBEIRO, 1993). Assentada historicamente sob a agricultura, a pecuária e a mineração, a economia da região apresentou momentos de crise e prosperidade. Contudo, embora tenha sido significativa sua importância na produção de víveres para o abastecimento de outras regiões do estado, sua história ficou conhecida a partir de imagens de isolamento e estagnação econômica forjadas no âmbito das políticas estatais que priorizavam a modernização industrial do país em moldes urbanos (RIBEIRO, 1993).

Já em meados dos anos de 1940 e 1950, observamos um conjunto de profundas transformações dadas pela inserção da economia regional em um mercado capitalista mais amplo, onde as novas condições de concorrência dificultaram a venda dos produtos tradicionais fornecidos pela região. A partir de 1960 e 1970, esse quadro se agravaria em conseqüência de programas e intervenções governamentais, que, pautados por uma visão desenvolvimentista com parâmetros industriais, tecnológicos e urbanos, consolidavam imagens de pobreza e miséria atribuídas ao Vale (RIBEIRO, 1993). Assim, identificada como “área problema” ou “bolsão de pobreza”, a região sofreu o impacto de três grandes frentes de modernização do capital: a expansão da pecuária, a introdução da cafeicultura e implantação das reflorestadoras (RIBEIRO, 1993). Auxiliadas por políticas de incentivos fiscais e créditos, essas três frentes de expansão provocaram mudanças significativas na distribuição e no acesso à terra. Os reflorestamentos, por exemplo, foram implantados em áreas de chapada, consideradas terras devolutas e concedidas pelo Estado às empresas privadas, para a exploração. As chapadas, no entanto, eram tradicionalmente destinadas ao uso comum pelos lavradores locais, a partir de então, privados de grande parte das terras onde realizavam o extrativismo coletivo e a criação do gado na larga (RIBEIRO, 1993).

A natureza de tais políticas para o Vale persistiu também na década de 1980, quando teve início uma nova frente de expansão através do “Programa Novo Jequitinhonha”. Este previa a disseminação de projetos de barragem para a irrigação e geração de energia, entre elas a usina hidrelétrica de Irapé. Justificadas e legitimadas pelas representações de miséria e estagnação construídas para o Vale, as propostas atuais para a implantação de hidrelétricas na região ainda se revestem de caráter salvacionista. A usina de Irapé, por exemplo, apesar de uma história de resistência de 15 anos (RIBEIRO, 1993; LEMOS 1999; GALIZONI 2000) já está em fase de construção final no rio Jequitinhonha. Trata-se de uma barragem de 205 m de altura, a mais alta do Brasil, com um reservatório de 137,16 km2 em uma região de chuvas instáveis. Atinge sete municípios e aproximadamente 1.124 famílias, ou cinco mil pessoas. A licença para construção foi dada em 2002, apesar de um parecer técnico desfavorável da Fundação Estadual de Meio Ambiente (FEAM), que apontava 47 condicionantes ambientais e sociais não cumpridas pela Companhia Energética de Minas Gerais – a CEMIG. O projeto da usina hidrelétrica de Murta, no mesmo rio, a jusante de Irapé, também apresenta impactos com proporções semelhantes, atingindo cerca de 900 famílias.

Nesse sentido, os casos das usinas de Murta e Irapé apontam para a atualização de conflitos entre os quais se contrapõem tentativas de desterritorialização e reterritorialização promovidas pelo Estado, juntamente com grandes empresas privadas, e processos de reterritorialização distintos que visam à manutenção do território para os grupos locais, os quais re-elaboram identidades e discursos no processo de luta pelo reconhecimento e pela defesa de seus direitos territoriais. Tais projetos confrontantes revelam a oposição entre duas racionalidades distintas: de um lado, para as comunidades ribeirinhas a terra representa o patrimônio da família e da comunidade, resguardado por regras de uso e compartilhamento dos recursos; do outro lado, o Setor Elétrico, incluindo o Estado e empreendedores públicos e privados que, a partir da perspectiva do Mercado, entendem o território como propriedade e, como tal, mercadoria passível de valoração monetária.

Neste cenário, os conflitos podem ser compreendidos no contexto do entrelaçamento dos espaços através das relações de poder (GUPTA; FERGUSON, 2000; ACSELRAD, 2004a). Podemos dizer que o Vale do Jequitinhonha tem ocupado uma posição marginal no sistema econômico do País por não reunir as condições materiais e simbólicas valorizadas pelo projeto desenvolvimentista e modernizador. Sua paisagem, composta pelos biomas do cerrado e da caatinga, nunca despertou a mesma atenção que o imaginário nacional concedeu à Amazônia e à Mata Atlântica. Assim, a ausência das condições materiais para a produção de mercadorias estratégicas e a falta dos atributos naturais simbolicamente valorizados como natureza típica da nação acabaram por reservar-lhe um lugar específico na pauta do Estado, onde o Vale se apresenta como espaço a ser transformado com vistas aos objetivos colocados pelo modelo econômico vigente no País.

Nessa medida, as imagens historicamente produzidas pelos governos e pelos segmentos empresariais sobre o Vale do Jequitinhonha tornam-se significativas. Associadas, elas ajudam a compor um quadro de pobreza, miséria e estagnação, justificando, assim, a implantação de projetos econômicos. No caso da implantação da UHE Irapé, por exemplo, destaca-se o forte apoio político que o projeto recebeu das elites tradicionais mineiras, o que se revela no discurso desses segmentos publicados na imprensa do estado, como no trecho a seguir:

Estamos na antevéspera de enorme tragédia social e política se houver mais retardo no início da construção da usina salvadora. A população daquela parte de Minas, solidária com o governo Itamar Franco e a Cemig, está disposta a reagir com todo o seu potencial e vigor para impedir a consumação desse vergonhoso ato de desapreço e falta de patriotismo15.

Esse excerto é bastante representativo de um discurso que mobiliza elementos como o patriotismo, a lealdade da população em relação ao governo do estado e o caráter redentor e salvacionista da obra. Da mesma forma, seu título é bastante significativo “Os Guardiães da Miséria”, uma ofensiva aos técnicos ambientais que, ao contestarem o empreendimento do ponto de vista de sua viabilidade social e ambiental, estariam contra o “progresso” da região. Coloca-se, pois, em confronto diferentes ideologias: de um lado, o desenvolvimentismo redentor em nome da Nação e, de outro, a concepção de direitos territoriais articulados pelas comunidades locais.

Nos casos que analisamos, trata-se da luta pelo direito ao espaço ambiental tradicionalmente ocupado, uma luta pela apropriação material e simbólica da natureza, pela definição e reconhecimento dos significados atribuídos ao território em que se opõem imagens de pobreza e fartura. Neste sentido, destacamos alguns depoimentos dos moradores “atingidos”, para os quais as idéias de riqueza e pobreza assumem significados distintos daqueles articulados pelos defensores de um modelo industrial voltado para o mercado de exportações.

Deus olha para o povo e tem em aberto uma porta para nós. Apesar da nossa fraqueza, da nossa pobreza, temos aqui uma grande riqueza, que é o acesso aos rios, às lavras, os garimpos, diamante, ouro, verduras e muitas outras coisas como vimos aí…” (Depoimento de um morador atingido pela UHE Murta na Audiência Pública realizada em 15/10/2002, ênfase nossa).

Nota-se que os sentidos de fraqueza e pobreza estão associados ao reconhecimento de uma condição de carência em relação à imagem de desenvolvimento industrial. Por outro lado, há a enunciação de uma riqueza relacionada aos atributos ambientais existentes e necessários para a sobrevivência e manutenção de seu modo de vida que, nesta região, combina a lavra artesanal à agricultura familiar. Estes mesmos significados de fraqueza, pobreza e riqueza estão presentes no depoimento de uma moradora atingida pela usina de Irapé.

Porque a gente que é fraco, igual esse povo dessa área aqui, eles gosta de falar que é pé de chinelo. Eles pôs esse povo aqui pé de chinelo, né. (…) Outro dia meu menino tava falando comigo assim: “Ô mãe, a senhora fala que aquele povo da CEMIG também fala que esse Vale aqui é o Vale da Miséria… É o Vale da Riqueza, mãe! Senhora quer ver, senhora mira de Diamantina pra riba, pra senhora ver o quê que é miséria, mãe. Tem gente debaixo de viaduto, tem gente debaixo daquelas ponte tudo, tem gente debaixo das lona…. Aquilo que é o sofrimento da miséria! Igual eu mesmo, mãe, que eu fiquei muito tempo na rua, sem poder” – isso em Brasília – “sem poder vir embora, pedindo esmola, pra poder vir embora… Isso que é o sofrimento, isso que é uma miséria, uma coisa mais triste do mundo. Agora aqui não, aqui todo mundo….Tem abóbora, que Nossa Senhora, moça! Ninguém vende, num vende, num tem feira. Come, dá porco, entrega os outro pra lá! É milho, [feijão] andu, feijão de corda, maxixe, amendoim, é melancia, é mandioca, tudo quanto é coisa a gente planta, né? Então tá vivendo aí! Riqueza num lugar desse a gente num espera riqueza, né? Mas também num é miséria. (…) Igual D. Maria… Ela criou a família dela tudo aqui nesse lugar, e ela quer cabar a vida dela aí, isso é sinal de miséria? Pois ela criou os filho dela aí tudo uai, e tudo ela criou tranqüilo! Só isso, né? Tá vendo os meu também, quiser falar assim “é pobre, é pobre”, mas meus menino é tudo grande! E tudo foi criado aí. Então pra mudar, igual a gente que já é fraco, mudar prum lugar que a gente num tem nada, que num conhece nada… ninguém quer isso não (Depoimento coletado por Ana Flávia Santos, antropóloga do Ministério Público Federal, junto à moradora atingida pela barragem de Irapé, 2002, ênfase nossa).

Vale destacar a construção do Vale como um Vale de Riqueza em contraposição à estigmatização do mesmo pela concepção dominante de desenvolvimento, modernidade e progresso, tal como se apresenta nas imagens de pobreza anunciadas pelo Estado. A posição deste último pode ser identificada na decisão judicial acerca da Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público Federal contra a construção da barragem de Irapé. A favor da barragem, o juiz argumenta:

Como todo empreendimento de tal porte, certamente a efetivação dos projetos de instalação da usina acarretarão eventuais danos ambientais – que devem ser mitigados – e transtornos e insatisfações a alguns habitantes da região, mas não se pode afirmar que tais descontentamentos sejam de vulto que cheguem ao ponto de melindrar o interesse público. Contrariamente, a manifesta escassez de recursos naturais, humanos e industriais na região afetada pelo empreendimento – fato de conhecimento público e notório – configura indício contrário às afirmações da existência de danos às comunidades locais, que, tudo indica serão bastante beneficiadas com os remanejamentos a serem procedidos… (Documento emitido pelo Juiz da 19ª Vara/MG, em 2002, pág. 10, grifos nossos).

A partir de uma visão calcada no paradigma da adequação – “eventuais danos ambientais que devem ser mitigados” – o risco da perda do espaço ambiental vital e da vida em comunidade escapa ao entendimento do juiz. Os problemas sociais ocasionados pela barragem são vistos como “descontentamentos de alguns” e tal fato não deve ameaçar o “interesse público”. A mesma concepção de escassez do Vale é encontrada nos estudos de viabilidade dos projetos, onde a apresentação de prognósticos para a região ressalta “… é de se esperar um empobrecimento ainda maior da população [sem a barragem], com a renda da aposentadoria dos idosos tornando-se ainda mais significativa” (D’ ALESSANDRO; ASSOCIADOS, 1998, p. 62. grifos nossos).

Assim, frente aos objetivos econômicos e expansionistas do Estado, as lutas das comunidades atingidas assumem o sentido do direito à autodeterminação, ou seja, ao direito das coletividades de decidirem pelo destino de seus territórios, bem como da construção e afirmação de sua própria identidade.

Para as comunidades atingidas pelos empreendimentos hidrelétricos no Vale do Jequitinhonha, o território é concebido como patrimônio, enquanto para as ideologias que atribuem ao Estado o papel de guardião da nação – uma entidade englobante e imaginada como homogênea (ANDERSON, 1991) – é expressão de sua soberania, sendo visto como recurso estratégico ou mercadoria na ideologia desenvolvimentista hegemônica. O significado de patrimônio representa um desafio para a ordem jurídica do Estado, já que reivindica não só o direito individual, mas o reconhecimento de direitos cujos sujeitos são também coletividades (SOUSA, 2001). Afinal, nas regiões do Alto e do Médio Jequitinhonha, o sistema de apossamento das terras e de seus recursos, conhecido como “terra no bolo” (SANTOS, 2001, GALIZONI, 2000), compreende áreas de uso coletivo e familiar, em que a herança não implica o parcelamento da terra, mantendo-a indivisa para a família, conforme demonstram trechos das entrevistas a seguir:

I: Nós somo nove irmãos. Tem esse aqui, que é meu irmão, tem aquele ali, naquela primeira, perto de Fatinha, Manoel que tem naquela ponta [da rua] que é meu irmão. Tem duas irmãs aqui: uma viúva e uma moça solteira. E os outros já faleceu. (…)

P: Depois que seu pai morreu cada irmão ficou com um pedacinho dos Prachedes?

I: Pra todo mundo… trabalhar aqui, só foi embolado, nunca foi partido. Mas cada qual tem sua folha, paga documento… qualquer forma… tudo trabalha aqui.

P: A terra é da família?

I: É da família. Tem o mesmo nome, o dos Prachedes.

(Entrevista realizada com Dna. I., na comunidade dos Prachedes, Município de Coronel Murta/MG, grifos nossos.).

Essa questão também é explicitada em outras entrevistas:

P: E é dividida a herança de cada filho?

D: Não. Não. Esses 30 hectares foi compra. Nós, cinco irmão, associou sofridamente trabalhando até a noite em São Paulo. Já morei quatro ano dentro da cidade grande, daquele São Paulo, por exemplo que nós ajuntamo e… unindo a força aumenta, né? E nós compramo pegado no que é do meu pai. […]É em comum. É tudo junto. É tanto que os que tá em São Paulo, eles trabalha lá… é sofrido também e eles fala: “não, cês paga imposto, cês pode usar. O dia que ocês puder comprar cês compra na minha mão, eu vendo é pra vocês. Eu não vendo pra outros de fora, eu vendo é pra vocês”, né?

(Entrevista realizada com Sr. D., na comunidade de Mutuca de Cima, atingida pela UHE Murta, gritos nossos.)

Nesse sentido, observamos que a própria noção de patrimônio vai além da hegemônica idéia de propriedade, pois implica sujeitos e direitos coletivos, bem como restrições para a simples venda mercantil.

Na luta pela defesa de seu patrimônio, a própria comunidade se reconstrói enquanto tal, ou seja, como esfera coletiva de existência através do esforço de ocupação, uso, manutenção e identificação com seu território (LITTLE, 2002). A dinâmica de defesa do território torna-se, assim, elemento unificador do grupo que articula, então, um discurso onde se apresenta como coletividade através da construção do “nós”, categoria pronominal enfatizada em alguns depoimentos realizados durante a Audiência Pública da barragem de Murta, situação em que ocorreu o embate direto entre as comunidades atingidas e o consórcio empreendedor:

Nossas terras são produtivas, nossas baixas, nossos rios, onde fazemos nossas hortas: plantamos de tudo, tudo isso que está aqui [produtos agrícolas expostos pelos moradores na Audiência Pública da UHE Murta] a nossa terra produz e nunca necessitamos de barragem; não queremos ser invadidos por barragem. Nossa comunidade são cinqüenta famílias e todas elas vivem independente, não temos nenhuma necessidade de sair corrido por causa de barragem” (Depoimento da Sra. M., atingida pela UHE Murta, durante a Audiência Pública, em 15/10/2002, grifos nossos).

Não queremos essa barragem e temos certeza de que este monte de gente que está aqui também não quer a barragem, porque o melhor lugar do mundo para nós é aqui. Plantamos roça, milho, feijão, engordamos porco…” (Depoimento Sra. S., moradora atingida pela UHE Murta, durante a Audiência Pública, em 15/10/2002, grifos nossos).

Os conflitos em torno da apropriação e significação do território conduzem, assim, à “emergência da alteridade”. A localidade define-se, então, de forma diacrítica às ideologias territoriais do Setor Elétrico (Estado, empreendedores e consultores) emergindo, nesse contexto, como esfera de pertencimento espacial e de construção de identidades sociais e políticas. Ao mesmo tempo em que o grupo se apresenta e se constitui enquanto agente coletivo no cenário da disputa política, inicia-se um processo de reconstrução e ressignificação do território apresentado como lugar (AUGÉ, 2003).

Nesses contextos, a atividade da memória coletiva criada e recriada continuamente ao longo da história se intensifica e ganha relevo, reinventando o passado no presente. A produção da localidade concretiza-se, assim, através da construção de um novo sentido para o território transformado em lugar (AUGÉ, 2003): espaço preenchido pela memória e pela história, capaz de congregar e unir coletividades, as quais reconhecem naquele espaço um “lugar-comum”. É enquanto lugar que o território assume importância e vitalidade para as comunidades. Essa valorização do território e sua compreensão como patrimônio da família e da comunidade são recorrentes nos depoimentos dos moradores atingidos pela UHE Murta:

Não vamos ficar com a cabeça baixa, vamos levantar a cabeça e brigar pra podermos ficar no nosso lugar. Eu não quero a barragem, temos que considerar essa terra como nossa mãe, porque ela nos criou e vai criar nossos filhos e nossos netos. É disso que precisamos, é esse o nosso interesse (Depoimento do Sr. J. L., morador atingido pela UHE Murta, grifos nossos).

Nossos tataravós, bisavós, avós, todos eles conviveram aqui na Mutuca em um período de cento e trinta anos e nunca precisaram ir para lugar nenhum, nunca precisaram de barragem e nem nunca ouviram falar. A minha mãe está com noventa anos de idade, criou os filhos dela, meu pai morreu com setenta e três anos, viveu aqui tranqüilamente sem nunca precisar sair para lugar nenhum. E nós, que somos os caçulas, eu estou com 49 anos de idade, estamos tranqüilos (Depoimento da Sra. M., moradora atingida pela UHE Murta).

Observamos, portanto, através do processo de licenciamento de empreendimentos hidrelétricos, processos de construção sócio-política do lugar em oposição aos sentidos que lhe conferem os segmentos empresariais e o Estado. Distinta do lugar, a paisagem que se origina dos projetos industriais guarda apenas os custos ambientais e sociais dos empreendimentos. Através dos fluxos de capital e tecnologia que estes projetos demandam, o local se transforma, assim, em um espaço de produção transnacional, um verdadeiro não-lugar (AUGÉ, 2003), ou seja, paisagem homogênea que poderia reproduzir-se em qualquer espaço e que não mantém vínculo algum com o local, perdendo qualquer sentido ou significação para os grupos. Nesses ambientes já não há processos de identificação individual ou coletiva. “O espaço do não-lugar não cria nem identidade singular nem relação, mas sim solidão e similitude” (AUGÉ, 2003, p. 95).

4 A luta pela apropriação do território e o uso da violência

Nesse campo de lutas, onde as diferentes posições sustentam forças desiguais, multiplicam-se episódios em que os confrontos redundam no uso da força policial repressora e violenta, suscitando reações extremas por parte dos movimentos de resistência locais. Durante o processo de licenciamento da UHE Irapé, por exemplo, o não cumprimento das determinações do órgão ambiental no que tange o reassentamento das famílias atingidas, levaram-nas à decisão de ocupar a sede da CEMIG em Belo Horizonte16. Embora caracterizasse um protesto pacífico, além da presença ostensiva de uma barricada de seguranças, a empresa solicitou a ação de um destacamento policial, efetivo que tentou impedir o acesso dos atingidos ao prédio, ocasionando tumulto. Assim, sob tensão e negociações, quando as famílias finalmente conseguiram entrar na sede da empresa, o reforço policial permaneceu no local. Indignados, os atingidos propuseram o início das reuniões somente com a retirada do ônibus da tropa de choque da polícia militar, que aguardava as ordens. Em decorrência destes fatos, muitos atingidos e seus assessores denunciaram o grau de violência a que estavam expostos durante a manifestação:

Quando a CEMIG fez pela nossa região todos trabalhos, eu fui ameaçado na minha casa, tanto por um coronel, igual ao meu amigo Eduardo [FETAEMG], hoje, que foi empurrado por um coronel, que se diz polícia de não sei quem é. E, na realidade, gostaria de lembrar que, se esses cabras fossem também um pouco humano, enxergariam essas faixas que aqui estão (Zé Francisco, Comissão dos Atingidos, comunidade de São Miguel, 04/02/2004 – Depoimento coletado por Zucarelli. Para mais, consultar, ZUCARELLI, 2006.).

[…] Tem aqui fora um batalhão de polícia de colete e escopeta. Olha esse povo aqui [direcionado ao presidente da CEMIG], tem senhora com mais de 60 anos aqui, presidente. Tem viatura de polícia lá. Tem algum bandido aqui? Tem criança recém nascida aqui, senhor presidente. Não faz a gente passar essa vergonha porque ninguém aqui merece isso não. […] Ninguém vai levar um palito de fósforo dessa empresa, não vai levar um copo de plástico, tá. […] A gente não vai começar enquanto não retirarem esse destacamento de polícia aí (Richarles Caetano Rios, advogado do Campo Vale, 04/02/2004 – Depoimento coletado por Zucarelli. Ver ZUCARELLI, 2006).

A CEMIG quando chega em casa, eu trato ela é com copo de café. E, quando eu venho aqui, atrás do meu direito, eu ganho é paulada na orelha, [vergonha bater numa dona de cabelo branco – gritavam os atingidos no auditório]. Não é assim que a gente faz não, a gente tem de tratar o humano é bem, não mal. Cês tá tratando a gente do jeito de um animal. Eu não tô pagando pra sair não. É ocês que têm que me pagar. Parece que ocês tá tratando nós desse jeito de burro. Nós não é burro não. Nós é fraco, mas nós tá encima do que é nosso. Nós não depende de governo pra tratar de nós não, porque eu tenho coragem de trabalhar, olha minha mão gente, olha minha mão [mostrando as mãos calejadas]. […] Eu nunca vim aqui em Belo Horizonte, e hoje eu vim porque eu quero saber do meu direito (D. Maria, moradora da beira do rio Jequitinhonha, atingida pela barragem de Irapé – Depoimento coletado por Zucarelli . Ver ZUCARELLI, 2006).

Contudo, no âmbito do projeto hegemônico de sustentabilidade assentado sob o “paradigma da adequação”, tais denúncias das populações atingidas, articuladas no processo de luta pela observância de seus direitos, permanecem ignoradas. Assim, apesar das inúmeras transgressões aos prazos e determinações do Termo de Acordo e, à revelia do seu histórico de atuação junto aos atingidos, não causa estranheza o fato de a CEMIG colecionar títulos e premiações de “empresa sustentável”: ela fora incluída pela sétima vez no índice Dow Jones de Sustentabilidade17 e, indicada, pelo segundo ano consecutivo, para compor o Índice de Sustentabilidade empresarial da Bolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA), além de receber o Prêmio Furnas Ouro Azul18 na categoria “Empresa Pública” pelas ações executadas para a construção da Usina Hidrelétrica de Irapé.

Observa-se, então que, operando dentro da visão dominante de “desenvolvimento”, a atuação das empresas no Setor Elétrico no Brasil durante os processos de licenciamento tem produzido não apenas a perpetuação ou a exacerbação das desigualdades sociais, bem como tem resultado na reprodução de tensões que desembocam em confrontos violentos. Também nesse contexto, diversas lideranças, envolvidas na mobilização e na constituição da Comissão dos Atingidos pela Barragem de Murta, afirmam ter desistido de sua atuação devido ao temor de que as ameaças e pressões que lhes são impostas, de forma velada ou explícita pela empresa, acabem por alimentar reações que envolvam o uso da violência física.

Tal cenário se repete também em outras regiões do país, como ilustram as ações da polícia militar e do Exército durante as mobilizações do dia 14 de Março, em 2005. Nesta data, considerada o Dia Internacional de Luta Contra as Barragens, tais ações incluíram: repressão violenta e detenção das lideranças durante as manifestações dos atingidos pela barragem de Jurumirim-MG, operação do 23º Esquadrão de Cavalaria da Selva do Exército Brasileiro na hidrelétrica de Tucuruí – PA com o objetivo de impedir mobilizações no local; e a prisão “preventiva” de 6 agricultores atingidos pela Barragem de Campos Novos – SC.

Nesse sentido, somada ao contínuo silenciamento das formas locais de significação do território, a ação repressora das empresas, mediante o uso de aparato policial, procura anular as forças de mobilização e resistência com violência fomentando reações extremadas por parte dos atingidos. Sua exclusão diante do processo de licenciamento, a invisibilidade de suas reivindicações no âmbito das instâncias decisórias e o sentimento dominante de desamparo que afligem as famílias atingidas terminam por suscitar reações imprevistas por parte dos movimentos de resistência locais.

Desse modo, observa-se que a incompatibilidade entre as duas racionalidades que se colocam em confronto redunda em ações e contrapartidas marcadas pela violência em cenários onde predominam a insegurança em relação à ameaça de deslocamento compulsório, o medo, a imposição do silêncio, a falta de auxílio e a crença em estratégias extremas para fazer valer os direitos e reivindicações das populações atingidas.

5 Comentários finais

A forma específica de inserção dos países em desenvolvimento, sobretudo, do Brasil, no regime da mundialização se faz através do atendimento à demanda crescente das economias centrais pela exploração das fontes de recursos naturais e/ou exportação de produtos intermediários de baixo valor agregado, mas de alto consumo energético. Essa dinâmica manifestada pelo perfil de desenvolvimento brasileiro supõe a acentuação das desigualdades relativas à distribuição das vantagens econômicas, impactos e riscos ambientais decorrentes dessa modalidade de organização do capital. Nesse sentido, a “polarização da riqueza” se faz pari passu à reprodução das injustiças ambientais e ao acirramento dos conflitos resultantes. A disseminação de projetos hidrelétricos no Vale do Jequitinhonha se insere nesse contexto, ilustrando os efeitos locais produzidos pela nova configuração do capitalismo mundial e suas implicações nos territórios.

Nesse cenário, as forças do mercado manifestas no discurso hegemônico das empresas e de alguns setores do Estado insistem em transformar o espaço e seus recursos em plena mercadoria, passível de apropriação privada para geração de riqueza destinada à exportação. Por outro lado, tais forças chocam-se com as ações de resistência e re-significação do local expressas no discurso dos moradores atingidos. O embate entre essas duas lógicas, contudo, resvala, muitas vezes, em episódios de confronto violento.

Mas, em oposição ao discurso hegemônico do desenvolvimento, a noção de justiça ambiental pretende superar a racionalidade meramente econômica, propondo uma noção de justiça que não compreende apenas distribuição equânime das partes. A idéia de eqüidade não se refere à valorização monetária, à comensurabilidade dos recursos ou à equivalência das necessidades, mas coloca em pauta o reconhecimento de significados culturais distintos atribuídos ao território, associando-se, assim, aos princípios da diversidade e da democracia.

Nessa perspectiva, o conflito estabelecido pela implantação de projetos hidrelétricos exemplifica a luta pela justiça ambiental, revelando-nos a disputa em torno da reapropriação social da natureza em sua busca pelo reconhecimento de projetos produtivos e sociais alternativos, incluindo os vários significados do que seja riqueza e desenvolvimento.

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Notas

1 As recentes declarações do presidente reeleito Luiz Inácio Lula da Silva, em novembro de 2006, atestam a prioridade que o governo brasileiro tem atribuído à meta de crescimento econômico a 5% ao ano. No discurso de inauguração de uma fábrica de biodiesel no estado do Mato Grosso, o presidente declarou que: “Eu estou me dedicando, neste mês de novembro e neste mês de dezembro, para ver se eu pego todos os entraves que eu tenho com o meio ambiente, todos os entraves com o Ministério Público, todos os entraves com a questão dos quilombolas, com a questão dos índios brasileiros, todos os entraves que a gente tem no Tribunal de Contas, para tentar preparar um pacote…”. (Fonte: Agência Carta Maior e Ambiente Brasil).

2 Dados fornecidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Disponível em <www.aneel.gov.br>.

3 Um caso ilustrativo é dado pelo grupo americano AES (Allied Energy Systems Corporation). No Brasil, os investimentos desse grupo são representados pela aquisição de antigas empresas públicas do Setor Elétrico como a CEMIG e a ELETROPAULO, bem como pela formação de consórcios que investem diretamente na construção de novas usinas hidrelétricas. É o caso da AES Minas PCH Ltda e da AES Tietê S.A – esta última considerada o nono maior grupo em capacidade instalada do país.

4 O Decreto 2655/1998 regulamenta o mercado atacadista de energia elétrica e define as regras de organização do operador nacional do sistema elétrico. A partir deste, tem-se início o processo de desestatização do Setor Elétrico, permitindo que a energia produzida em um aproveitamento hidrelétrico possa ser destinada: ao atendimento do serviço público de distribuição, à comercialização livre ou ao consumo exclusivo em instalações comerciais e industriais do gerador, podendo ser admitida a comercialização dos excedentes.

5 A Audiência Pública organizada pelo DHESC na Assembléia Legislativa de Minas Gerais, em 6 de agosto de 2004, trouxe à baila inúmeros casos de violação dos direitos humanos e ao meio ambiente em várias regiões do estado.

6 Barramento construído no rio Doce em Minas Gerais pelo Consórcio Candonga com a finalidade exclusiva de geração de energia elétrica para a auto-provisão das empresas constituintes do consórcio, a saber, a ALCAN Alumínios do Brasil, atual Novelis Brasil LTDA, e a Companhia Vale do Rio Doce. Ver Barros; Sylvestre (2004).

7 “Expulsão surpresa da Polícia Federal destrói duas aldeias e deixa nove feridos em Aracruz” (Fonte: Conselho Indigenista Missionário – 20/01/2006 – Disponível em <www.cimi.org.br>).

8 Para maiores detalhes, consultar “Atingidos pela UHE Fumaça e UHE Candonga protestam contra empresa” e mais “Descumprimento de Lei e Irresponsabilidade de Empresas Companhia Vale do Rio Doce e Alcan obrigam atingidos a tomarem decisões preocupantes”, In Boletim MAB, setembro de 2004. No dia 09/09/2004, cerca de 250 atingidos pelas hidrelétricas de Fumaça e de Candonga ocuparam o pátio da empresa Alcan Alumínios do Brasil, em Ouro Preto/MG. (Fonte: Boletim do Movimento dos Atingidos por Barragens).

9 “Atingido de Candonga afirma estar sofrendo ameaças”, Boletim MAB, abril de 2004.

10 Ver, “Prisões e Violência Contra as Populações Atingidas por Barragens”, campanha veiculada pelo Movimento de Atingidos por Barragens em Março de 2005. Ver também “Agricultores Atingidos por Barragem de Campos Novos são presos a mando do Consórcio ENERCAM”, carta elaborada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens no dia 13/03/2005.

11 “Policiais Militares agridem com violência 6 mulheres atingidas por barragens, duas delas grávidas, no dia Internacional da Mulher, em Rio Casca-MG” , boletim veiculado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT-MG) em 08/03/2005.

12 O Movimento dos Atingidos por Barragens (Regional Ponte Nova) e a Comissão Pastoral da Terra (Regional Campo das Vertentes) relataram o desaparecimento de João Caetano dos Santos desde o dia 09 de fevereiro de 2003, no canteiro de obras da usina Hidrelétrica de Candonga, localizada entre os municípios de Santa Cruz do Escalvado e Rio Doce, Minas Gerais. Ver < www.global.org.br/portuguese/arquivos/joaocaetano.html>.

13 Há uma crescente demanda de energia por parte dos setores eletrointensivos (alumínio, ferro-ligas, siderurgia, papel, celulose, entre outros). Segundo Bermann (2003), a energia elétrica incorporada nestes produtos representa 7,8% do consumo de eletricidade no país (ano-base: 2000).

14 Há um parecer técnico da FEAM – Fundação Estadual de Meio Ambiente de Minas Gerais – que recomenda o indeferimento e arquivamento do processo de licenciamento da UHE Murta por insuficiência de informações, bem como por não atendimento aos prazos formais do processo. Tal parecer entrou na pauta de votação do COPAM – Conselho Estadual de Política Ambiental – em fevereiro de 2004, mas foi imediatamente retirado da pauta por ordem do Secretário de Estado do Meio Ambiente – José Carlos Carvalho – sem qualquer justificativa. Até o momento (abril de 2007), o parecer permanece engavetado. Sobre as relações COPAM/FEAM, ver Zhouri et al. (2005), além de Carneiro (2005).

15 Texto publicado por Murilo Badaró, Presidente da Academia Mineira de Letras, no jornal Estado de Minas, às vésperas do julgamento da Licença de Instalação da UHE Irapé, em 25/04/02. Ênfase nossa.

16 A ação ocorreu no dia 04/02/2004 após várias prorrogações concedidas pelo Conselho de Política Ambiental à CEMIG para conclusão satisfatória do reassentamento. A ocupação contou com a participação de cerca de 250 atingidos acompanhados de seus assessores (ONG Campo Vale – Centro de Assessoria aos Movimentos Populares do Vale do Jequitinhonha) parceiros institucionais (FETAEMG – Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais, CPT – Comissão Pastoral da Terra, CEDEFES – Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva, GESTA/UFMG – Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais da Universidade Federal de Minas Gerais, SINDIELETRO – Sindicato Intermunicipal dos Trabalhadores na Indústria Energética de Minas Gerais). Para detalhes, consultar Zucarelli (2006).

17 O Índice Dow Jones de Sustentabilidade pretende contemplar empresas que detenham “reconhecida sustentabilidade corporativa, capazes de criar valor para os acionistas no longo prazo, por conseguirem aproveitar as oportunidades e gerenciar os riscos associados a fatores econômicos, ambientais e sociais. A seleção leva em conta não apenas a performance financeira, mas, principalmente, a qualidade e a melhoria contínua da gestão da Empresa, que deve integrar a atuação ambiental e social como forma de sustentabilidade” (Fonte: <www.cemig.com.br>).

18 A premiação é promovida pela Furnas Centrais Elétricas, Jornais Estado de Minas, Correio Braziliense e Jornal do Comercio com o intuito de “valorizar os melhores projetos de preservação e uso racional sustentável da água por empresas, comunidades, governos, cidadãos e estudantes” (Fonte: <www.cemig.com.br).

Autor para correspondência:
Andréa Zhouri, Raquel Oliveira
Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais – GESTA, Departamento de Sociologia e Antropologia, FAFICH- UFMG, Campus Pampulha
Av. Antônio Carlos, 6627, FAFICH – Sala 2001
CEP 31210-901, Belo Horizonte, MG, Brasil
Fone: (31) 3409 6301
E-mail: gesta@fafich.ufmg.br

Recebido: 15/4/2007
Aceito: 03/7/2007

* Este texto é resultado de pesquisas realizadas entre os anos de 2002 e 2006 junto às comunidades rurais atingidas por barragens hidrelétricas no âmbito do licenciamento ambiental em Minas Gerais. Agradecemos o apoio recebido da fapemig e do CNPq durante a realização da pesquisa sobre o licenciamento ambiental de barragens hidrelétricas em Minas Gerais.

ZHOURI, Andréa; OLIVEIRA, Raquel. Desenvolvimento, conflitos sociais e violência no Brasil rural: o caso das usinas hidrelétricas. Ambient. soc., Campinas, v. 10, n. 2, Dec. 2007 . Available from . access on10 Aug. 2009. doi: 10.1590/S1414-753X2007000200008.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-753X2007000200008&lng=en&nrm=iso&tlng=pt
EcoDebate, 12/08/2009

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