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Artigo

Guerrilha do Araguaia: A guerra acabou! artigo de Hugo Studart

[O Estado de S.Paulo] Fique bem claro que ainda há batalhas pela frente, algumas delas bem difíceis. Contudo, caso haja alguma sensatez na cabeça das autoridades brasileiras, civis e militares, existem possibilidades de que, ainda este ano, a frase que é a expressão máxima de júbilo dos povos também seja enunciada no Brasil: “A guerra acabou!” Refiro-me àquela guerra ideológica fratricida ocorrida nos anos 1970 na região do Araguaia – naqueles tempos que o filósofo Isaiah Berlin chamou de “os mais terríveis da História” -, quando exatos 69 jovens voluntaristas, sem armas, provisões ou apoio popular, tentaram implantar uma tirania comunista no Brasil, mas foram fulminados por um Estado autocrático, que cometeu violações dos direitos humanos. A aventura deixou um saldo de pelo menos 95 vítimas. Destas, 17 já descansam em sepulturas, sendo 10 militares, 6 camponeses e 1 guerrilheira. Ainda haveria 78 desaparecidos – 57 guerrilheiros, 20 camponeses e 1 soldado.

A sociedade brasileira jamais quis a guerrilha. Quase quatro décadas depois, porém, a guerra não acabou. Poderia ter findado em 1979, com a anistia recíproca. E, se não terminou, a culpa maior é das Forças Armadas, que se recusam a entregar os corpos dos desaparecidos às suas famílias. Elas têm o direito sagrado de enterrá-los em sepulturas dignas. A novidade é que essa guerra pode estar chegando a seus estertores, graças à série de reportagens que O Estado de S. Paulo publicou dias atrás com base nos arquivos secretos do tenente-coronel Sebastião Curió de Moura. O que o militar revelou, em suma, é que o Exército teria executado 41 prisioneiros no Araguaia. E o mais importante: indicou os locais usados para a ocultação dos cadáveres. Os fantasmas se materializaram. Os mortos se levantaram e pedem sepultura.

Antes de Curió cantar, já se sabia que o Exército executara prisioneiros. Em minhas pesquisas com militares, cheguei a identificar e a confirmar 16 execuções. Também registrei mais 28 possíveis execuções, no total de 44. Mas a lista tinha lacunas. A listagem de Curió é mais precisa; ainda assim, contém imprecisões. Inclui como executados, por exemplo, três guerrilheiros que se entregaram, foram poupados e receberam nova identidade: Hélio Navarro de Magalhães, Antonio de Pádua Costa e Luiz Renê Silva. Pelo menos Navarro está vivo – até tempos atrás trabalhava numa multinacional francesa, em São Paulo. O fato de terem sido 41, 38 ou 16 execuções é tema irrelevante para a História. Mas saber o destino de cada um, individualmente, é essencial para o acalento e a pacificação das famílias.

Nos últimos cinco anos, alguns oficiais superiores que combateram no Araguaia vêm abrindo seus próprios arquivos. Mas abriram de forma seletiva, ocultando fatos que detratam o Exército. A relevância do ato de Curió, tomado à revelia dos comandantes, é que provoca um desfecho histórico possível para a guerra. Se os comandantes aproveitarem a oportunidade, seguirão atrás de Curió pelo rumo certo da História.

É ingenuidade imaginar que os papéis que restaram nos quartéis contenham revelações bombásticas. Militares podem ter agido como hunos, mas não eram imbecis. Não registraram os atos de exceção em documentos oficiais. Ademais, as pistas relevantes foram cremadas em 1975, por ordem do presidente Ernesto Geisel. Portanto, esqueçam história positivista. Só é possível reconstruir os fatos com metodologias pós-modernas, por meio de narrativas orais dos remanescentes. São estes os arquivos que os militares precisam abrir: os fragmentos de suas memórias.

Quando isso ocorrer, se ocorrer, restará comprovado que os militares cometeram atos de exceção no combate aos guerrilheiros. Prenderam moradores da região de forma arbitrária, executaram prisioneiros, profanaram corpos, relegaram seus próprios valores e instauraram a lei da selva. Também ficará constatado que o presidente Emílio Médici deu a ordem expressa de executar prisioneiros – ordem ratificada pelo sucessor, Ernesto Geisel. A esta altura, que grande novidade há em confessar esses erros?

Por outro lado, restará igualmente comprovado que os atos de exceção não foram cometidos pela Forças Armadas em seu conjunto, mas tão somente por uma pequena facção, a Comunidade de Informações, cerca de 40 homens no Araguaia. Nem se violaram direitos o tempo todo. Nas duas primeiras campanhas, as Forças Armadas combateram segundo as leis da guerra. Quem morreu tombou em combate, quem foi preso está vivo. As violações ocorreram apenas nos derradeiros combates da Terceira Campanha, quando as tropas desceram na selva com a ordem de não fazer prisioneiros. Desapareceram com 47 guerrilheiros e cerca de 20 camponeses.

Se os militares abrirem seus arquivos, igualmente se descobrirá que os atos de barbárie foram recíprocos e que os guerrilheiros chegaram a esquartejar vivo um garoto de 17 anos, João Pereira – primeiro cortaram-lhe as orelhas, as mãos, os pés, os braços, na frente da família, como punição exemplar pelo fato de ele ter levado militares a um acampamento guerrilheiro, quando prenderam José Genoino. A abertura dos arquivos será dolorosa para os dois lados. Mas pode também ser um alívio. Será como a dor de um parto, no caso, o parto da reconciliação com a História.

O Exército organiza uma expedição ao Araguaia para procurar corpos. Curió indicou quatro locais de desova. Um deles, vale lembrar, é a cabeceira sul da pista de pouso de Bacaba. Deve haver ali três corpos. Já os restos de Rosalindo Cruz Souza, justiçado pelos companheiros por conta de um caso banal de adultério, ainda devem estar em frente à casa do sítio de um conhecido camponês, João do Buraco. Podem ir lá pegá-lo, está sem a cabeça.

A torcida agora é que o comandante Enzo Peri esteja de fato fazendo a opção histórica que leve as famílias a gritar: “A guerra acabou!”

Hugo Studart, jornalista e historiador, é autor do livro
A Lei da Selva – Estratégias e Imaginário dos Militares na Guerrilha do Araguaia

* Artigo originalmente publicado no O Estado de S.Paulo.

[EcoDebate, 07/07/2009]

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