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MP 458: A liquidação da Amazônia

A medida para legalizar 12% das terras na Amazônia pretende acabar com as invasões – mas pode incentivá-las

bois piratas
BOIS PIRATAS
Gado nas margens da Rodovia Manaus-Porto Velho, no sul do Amazonas. A maioria das fazendas ali está em terras públicas ocupadas irregularmente. Foto de Rodrigo Baleia

O governo se prepara para lançar a maior liquidação de terras da história recente do país. O pacote prevê a transferência de 67 milhões de hectares de lotes da União na Amazônia para mãos privadas. Essas terras, que correspondem à Alemanha e à Noruega juntas, ou a 12% de toda a Amazônia Legal, serão vendidas, leiloadas ou simplesmente doadas, dependendo da situação. A medida provisória que permite essa oferta fundiária foi aprovada pelo Senado na semana passada. Agora aguarda a sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para entrar em vigor. A expectativa é que isso ocorra nesta semana. O Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) já agendou para sexta-feira 19 o lançamento oficial do programa nacional de regularização fundiária com base na nova lei. Se der certo, ele poderá mudar o destino da região. Matéria de Alexandre Mansur, na revista Época, Edição 578

Pode parecer estranho, mas a transferência de vastas extensões de terras públicas para mãos privadas é apontada consensualmente como o passo mais importante para aumentar o controle do Estado sobre a Amazônia. Há séculos, a dificuldade para definir quem é dono do quê impede a punição de responsáveis por crimes ambientais, como o desmatamento, e atrapalha financiamentos para atividades alternativas, até mais rentáveis que o gado disperso que predomina na paisagem. As empresas madeireiras exportadoras, que fazem corte parcial das árvores sem destruir a floresta e vendem com certificação ambiental, empregam e faturam mais por hectare que a pecuária. Mas os empresários têm dificuldade para encontrar áreas com papéis em ordem para comprar. Estima-se que 96% das terras supostamente privadas estão em situação irregular. Boa parte é foco de disputas entre agricultores e fazendeiros. Nos últimos dez anos, 253 pessoas foram assassinadas em conflitos na região.

A expectativa do governo é que a titulação das terras reduza os embates e os entraves ao desenvolvimento. “Existem na região posseiros em situação de instabilidade, e os governos estaduais da região pedem pressa na aprovação dessa lei”, diz o ministro Guilherme Cassel, do MDA. Segundo ele, o ministério terá um portal na internet em que publicará todas as requisições de títulos, que poderão ser contestadas mesmo anonimamente. “Nenhuma lei inibe todas as fraudes, mas queremos criar um ambiente democrático e transparente para barrar os laranjas”, afirma Cassel.

Mas os efeitos da proposta que saiu do Congresso são controversos. Teme-se que quem se apropriou indevidamente de terras públicas para especulação – os grileiros – se beneficie da lei. A senadora Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente, definiu o projeto como a “pior iniciativa do governo até hoje”. As críticas partem também dos Ministérios Públicos Federais da Amazônia. Em nota divulgada na semana passada, 37 procuradores de sete Estados da região pedem que Lula vete a MP. “Essa lei vai favorecer os grileiros, aumentar a violência e incentivar novas invasões”, diz Felício Pontes, procurador da República em Belém. Segundo ele, se a lei estivesse em vigor quando a missionária Dorothy Stang foi assassinada, em 2005, a comunidade que ela defendia teria perdido o direito à terra. Após a morte da freira, os ribeirinhos conseguiram a criação de uma reserva extrativista. Pontes afirma que, pela nova lei, o fazendeiro Vitalmiro Moura, o Bida, acusado de ser o mandante do crime, condenado em um primeiro julgamento e absolvido no segundo, estaria apto a reivindicar o título das terras.

O ponto mais polêmico é o item que permite dar título das terras a empresas ou a quem não more no município da propriedade. O próprio ministro Cassel diz que preferia que Lula vetasse essa opção, embora afirme que a lei prevê salvaguardas contra a especulação. “A lei exige que haja produção no local”, diz. Muitas vezes, no entanto, o que configura a produção é o mero desmatamento. Outro aspecto que gera dúvidas são as facilidades de pagamento. Quem comprar o título de uma área das grandes, de 400 a 1.500 hectares – uma a três vezes o bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro –, poderá pagar parcelado em 20 anos, com carência de três anos. “Pela lei, em três anos também, antes do primeiro desembolso, esse comprador já estaria liberado para revender a terra”, diz o ativista Paulo Adário, do Greenpeace. “Como você espera inibir a especulação assim?” O ministro Cassel afirma que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), responsável pelos títulos, não permitirá a operação. Mas é um caso de interpretação da lei.

A aplicação da nova lei não será fácil. “Várias pessoas conseguiram registrar títulos de terras, mesmo irregularmente, em cartórios”, diz Brenda Brito, pesquisadora do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Um levantamento feito no ano passado pelo governo do Pará descobriu 3 mil títulos de terras inconstitucionais. Juntos, eles dão quatro vezes a área total do Estado. “O Incra e os institutos estaduais de regularização fundiária enfrentarão milhares de disputas judiciais”, diz Brenda.

Com tantos problemas, fica difícil acreditar que a lei vai pegar. A primeira tentativa de regularizar terras na Amazônia foi um decreto paraense que pretendia validar as sesmarias – do tempo da colonização portuguesa – e concessões de terra que tivessem um terço da área cultivada. Publicado em 28 de outubro de 1891, ele estabelecia um prazo de cinco anos para legalizar as terras. Diante de seu descumprimento, foi reeditado 22 vezes nos séculos seguintes, com novos prazos. A última tentativa foi em 1996, também sem sucesso. A nova MP pode ter destino semelhante.

MP 458 Quem fica com as terras: Como deverá ser a distribuição de títulos de propriedade na Amazônia, segundo a medida provisória que pode ser sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva

[EcoDebate, 20/06/2009]

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