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No meio do caminho, o mundo dos camponeses na Amazônia Oriental, entrevista com Gil Felix

A maior floresta tropical do planeta sempre esteve no alvo de acaloradas discussões sobre preservação ambiental e tem inspirado certo maniqueísmo de opiniões. De um lado, estão grupos que defendem a intocabilidade da Amazônia; de outro, aqueles que acreditam em um desenvolvimento sustentável da região. No centro do debate – e do caminho –, um grupo persiste em construir seus próprios percursos de vida em meio à densa mata tropical. São os chamados migrantes itinerantes, contingente formado por camponeses e pequenos produtores cearenses, baianos, capixabas, paranaenses, mineiros e maranhenses que literalmente puseram o pé na estrada – ou na floresta – em busca de sua própria história. Decidido a investigar a mobilidade desses camponeses e desvendar a realidade existente na região, o antropólogo Gil Felix foi a campo acompanhar o dia a dia desses migrantes. O resultado de sua pesquisa está no livro O caminho do mundo: mobilidade espacial e condição camponesa numa região da Amazônia Oriental (EdUFF, 2008, 252 p., R$ 30). Confira um pouco mais na entrevista abaixo, concedida pelo autor à Editora da UFF.

EdUFF – Onde o senhor desenvolveu suas pesquisas?

Gil Felix – Concentrei meu trabalho de campo em uma pequena região chamada Maçaranduba, localizada dentro de um Projeto de Assentamento de cerca de 22 mil hectares – o Projeto de Assentamento Agroextrativista Praia Alta/Piranheira. Esse projeto foi implementado no município de Nova Ipixuna, à beira do lago reservatório da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, sudeste do Pará. Quando falamos de Nova Ipixuna, cidade situada entre Marabá e Tucuruí, estamos falando da PA-150, rodovia que abriu um eixo norte-sul no Pará. Nova Ipixuna foi um dos municípios criados a partir da construção dessa estrada. Os municípios que ladeiam a PA-150 foram, em alguns momentos, canteiros de obras, local de pernoite de operários e também a área onde se instalaram algumas madeireiras. Todo esse movimento motivou a formação de pequenos centros.

EdUFF – Por que o senhor escolheu o Pará e, mais especificamente, a região de Marabá para realizar suas pesquisas?

Gil Felix – Desde os anos de 1970, Marabá tem sido um lugar privilegiado de estudos sobre o campesinato, o que conferiu à Antropologia uma literatura clássica e consolidada sobre o que seriam as frentes de expansão de trabalhadores e pequenos produtores naquela região. Este foi um dos fatores que me levaram ao Pará: “dialogar” com a produção acadêmica já existente sobre o campesinato em Marabá e em toda a região denominada Amazônia Oriental ou Amazônia Legal, que engloba municípios do Pará, Amapá, Tocantins, Maranhão e Mato Grosso (exceto os integrantes do Pantanal Mato-Grossense). Mas o que mais me motivou a realizar minhas pesquisas foi perceber que havia ali uma intensa mobilidade de um determinado contingente de trabalhadores. Decidi ir a campo para tentar entender o porquê desses deslocamentos e, sobretudo, como eles aconteciam.

EdUFF – E o que o senhor descobriu?

Gil Felix – A partir dos percursos que analisei, ficou claro que alguns migrantes tinham o objetivo de, em algum momento, fixarem-se e de procurarem condições para se reproduzirem socialmente, enquanto camponeses. Isso inclui o acesso à terra e a uma série de outros bens simbólicos e materiais. Mas isso não acontecia com todos eles. Muitos dos interlocutores que tive relataram ter membros da família espalhados “pelo mundo”. Aos poucos, fui descobrindo que essa referência era importante naquele contexto. “Mundo” é uma categoria socioespacial que eles utilizam para significar a parte oposta àquela em que eles se localizavam. Descobri que, em alguns casos, não havia contato entre os familiares há anos. Era comum ouvir, por exemplo, os dizeres: “O meu filho tá no mundo. Não tenho mais contato com ele”. Com isso, eles se referiam a parentes que estariam peregrinando “de fazenda em fazenda”, sem lugar certo, trabalhando em troca de diárias, empreitadas ou mesmo de forma assalariada nas cidades.

EdUFF – Como acontecem esses percursos?

Gil Felix – Um dos entrevistados me disse que saiu de sua casa, no Maranhão, sozinho, em direção ao Pará, onde morou “de favor” numa casa de pequenos agricultores. Isso ocorreu quando ele tinha 13 anos de idade. Quando saiu de lá, ele trabalhou como ajudante carregador, transportando bagagens e mercadorias em uma lancha que cruzava rios no interior do Pará. Ele casou-se pela primeira vez e se separou nesse mesmo período. E aí foi trabalhar num seringal. Saindo do seringal, ele trabalhou no desmatamento para a construção da rodovia Belém-Brasília. Durante esse tempo, ele fez contatos que possibilitaram seu acesso à terra num determinado local próximo à estrada. Ele casou-se novamente e fixou-se nesse local. Mas acabou sendo expulso, após uma desavença com um fazendeiro ou pistoleiro. Durante a entrevista, perguntei: “A roça do senhor já estava lá?”, uma vez que possuir uma roça é importante para o migrante pois, além de estar fixado naquele local, ele já tinha uma plantação em curso, o que é um estágio importante neste tipo de percurso como o dele. Já “abandonar uma roça”, para eles, significa um grande investimento jogado fora, uma situação inusitada e imprevista, embora aconteça com muitos deles. Assim como eles têm uma série de condições para “entrar na terra”, eu notei que os migrantes também têm uma série de técnicas e regras para “sair” dela quando as condições não são boas ou quando se deseja buscar “outros ares” ou ainda quando surge uma oferta de transação vantajosa. Mas voltando à entrevista. O migrante me respondeu: “Sim, só que eu não fui mais lá porque fiquei com medo de morrer, né. Ele [o pistoleiro ou o fazendeiro] mandava ‘meter o couro’, matar mesmo. Deu azar esse Rondon pra mim”. Rondon era a cidade em que ele estava, no Pará. “Eu saí de novo na diária”. Essa expressão significa que esse trabalhador havia retornado para uma situação de trabalho por diárias – o que, para ele, significava um retrocesso. Se antes ele já possuía uma terra e havia plantado uma roça – o que seria um avanço –, com a volta ao trabalho por diárias é como se ele estivesse retrocedendo em sua trajetória. Mas esse indivíduo teve uma desavença com alguém que poderia tirar a vida dele. Então, mais uma vez, ele se lança na estrada para construir um novo percurso. Estudar os diferentes percursos me mostrou as condições e os motivos que levaram o migrante a se deslocar.

EdUFF – O que os migrantes lograram conseguir com os deslocamentos?

Gil Felix – Serem reconhecidos, em alguns momentos, como pequenos proprietários de muito prestígio e sucesso. Outros conseguiram se encaminhar para abrir um comércio em uma cidade. Já outro grupo teria se vinculado de forma permanente como trabalhadores temporários em fazendas. Isso varia muito. Eles precisam gerenciar uma série de dificuldades e ausências de alternativas geradas pelo contexto encontrado naquela região, ao mesmo tempo em que colocam em prática estratégias bem concisas de mobilidade social e espacial. Por exemplo, em alguns momentos, eles deixavam suas famílias para trabalhar “de fazenda em fazenda”, num tipo de percurso inicialmente solitário. Mas, para que o migrante conseguisse o acesso à terra – se houvesse esta possibilidade –, não bastaria a terra propriamente dita, como, normalmente, afirmavam para mim. Dentre muitas outras coisas, eles precisavam constituir uma família.

EdUFF – Como os camponeses itinerantes são vistos pela sociedade?

Gil Felix – Eu lia na imprensa regional uma série de acusações contra os camponeses – mais especificamente os assentados. Por terem uma “cultura de itinerância”, eles se recusariam a se fixar. Às vezes, as acusações eram bastante pesadas, e os camponeses chegavam a ser apontados como um grupo de seminômades que teria acesso à terra em um determinado local e rapidamente o abandonariam para ir explorar mais na frente. Eram desqualificações, isto é, uma tentativa de culturalizar algo para o qual não havia uma explicação muito clara – pelo menos não para mim. Isso em um contexto político de disputa pela terra, que ali sempre foi muito intensa, além do interesse em desqualificar determinados movimentos sociais. Assim, eles são vistos como pessoas que cultuam a itinerância: não param em lugar nenhum e aquilo que adquirem em determinado momento “botam no bolso e vão embora”. Esse é apenas um tipo de desqualificação. Os agentes envolvidos nesse campo – sejam da mídia regional, do INCRA e, em alguns momentos, lideranças sindicais dos trabalhadores ou dos sindicatos patronais rurais – se utilizam deste tipo de justificativa ou argumentação. É quase como se os camponeses fossem vistos como um “bando de aproveitadores”.

EdUFF – O senhor acredita que, para além de prejudicar as famílias camponesas, essa desqualificação também prejudicaria o crescimento do pequeno produtor, do ponto de vista econômico?

Gil Felix – De certa forma, essa atitude os coloca no “fim da fila” na busca de comoção pública pelos recursos para aplicação de políticas de incentivo. Ou seja, o homem do campo, em especial o chamado “itinerante” ou “migrante”, já começa sua caminhada tendo de responder a uma série de acusações para conseguir atenção e apoio por parte dos gestores.

EdUFF – Qual a relação entre a atividade migratória e o desmatamento da Amazônia?

Gil Felix – Existe todo um leque de acusações. “Além de tudo, esses migrantes ainda são os responsáveis pelo desmatamento da Amazônia”. Isso tem um peso político-simbólico muito forte nas discussões sobre o uso de terra na Amazônia. É mais uma das acusações que são colocadas sobre os chamados itinerantes. Essa foi a questão que me motivou: que carga pesada é essa que paira sobre essas pessoas que, às vezes, saem “com uma mão na frente e outra atrás”, tentando apenas se constituir como camponeses?

EdUFF – A quem interessa apontar o migrante itinerante como um dos responsáveis pelos problemas ambientais na Amazônia?

Gil Felix – Há um contexto de disputa política por recursos públicos e intervenções naquela região que leva a esse tipo de questão ser de fato constituída enquanto um “problema social”. Há agentes envolvidos para a construção dessa imagem. Os assim chamados “problemas sociais” são questões que são construídas por agentes sociais, por instituições que defendem certos argumentos, publicam livros e matérias em jornais, fazem uma série de intervenções para tentar transformar a suposta itinerância em uma das preocupações que a sociedade deve ou precisa ter no momento. Acho que isso daria uma pesquisa bastante interessante: como e em que momento se começou a considerar a “itinerância” um problema social? Aí, sim, a gente vai ter elementos concretos para saber quais são as pessoas envolvidas, quais são os discursos, quem está contrapondo qual discurso. Acho que o livro é importante para despertar reflexões e traz elementos empíricos que estavam em jogo usando do meu trabalho de campo e sobre a complexidade desses agentes que estão sendo desqualificados.

EdUFF – A mobilidade masculina é maior que a feminina?

Gil Felix – Não diria que é maior, mas que ocorre por motivos diferentes. Em geral, os homens “saem para o mundo” quando atingem a idade de 13 anos. E isso acontece até os 25 anos. Já as mulheres partem para “o mundo” sob outras condições e um pouco mais “tarde”, embora as primeiras uniões conjugais aconteçam entre os 13 e 18 anos de idade. Mas a grande diferença entre os deslocamentos feminino e masculino está no fato de que, para os homens, a questão do trabalho pesa mais, enquanto para a mulher, o fator decisivo para a mobilidade é o casamento. Pude constatar que as mulheres, ao menos em certos casos, tinham um deslocamento espacial-geográfico muito intenso, o que impele a novas uniões conjugais, reconstituições ou novas construções familiares. O processo de arranjos domésticos, familiares, é muito dinâmico. Essa é uma contribuição que tento levar adiante, mas que ainda precisa ser melhor aprofundada na literatura antropológica sobre campesinato.

EdUFF – A que conclusões o senhor chegou?

Gil Felix – A questão da mobilidade espacial camponesa na Amazônia Oriental acontece em um contexto muito rico, que precisa ser melhor estudado por meio de pesquisas mais intensas, etnografias e teorias que busquem dar conta do fenômeno. São questões que necessitam ser vistas e revistas sobre um determinado contingente de trabalhadores que formam a Amazônia e o Brasil. Acho que este é o início de uma preocupação que precisa ser mais e melhor explorada, pois ainda há muita coisa a ser estudada. Meu livro é uma tentativa de iniciar um processo de construção de conhecimento sobre esses camponeses que se lançam na estrada.

* Enviado pelo Fórum Carajás.

[EcoDebate, 03/06/2009]

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