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Entrevista com Tânia Pacheco, organizadora do II Seminário Brasileiro de Combate ao Racismo Ambiental

O II Seminário Brasileiro de Combate ao Racismo Ambiental, realizado no final de março, em Fortaleza, chegou ao fim com saldo positivo. Tânia Pacheco, consultora do Projeto Brasil Sustentável Democrático (BSD) da Fase e organizadora do seminário, fala sobre os avanços conquistados com a realização do evento e mostra como o racismo ambiental está relacionado com conflitos urbanos, inclusive a remoção de favelas.

Ibase – O que é racismo ambiental e qual a sua relação com conflitos urbanos?

Tânia Pacheco – Nós definimos racismo ambiental como “as injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre grupos étnicos vulneráveis ou vulnerabilizados (i.e., tornadas vulneráveis pela ação do capital) e outras comunidades, discriminadas por sua origem ou cor”. Essas injustiças estão democraticamente distribuídas entre as populações do campo e das cidades e podemos dizer que estão na própria origem dos conflitos urbanos que hoje presenciamos de forma crescente e, para muitos, ameaçadora.

Se lembrarmos, por exemplo, que o Brasil tem hoje uma população 83% urbana e considerarmos a imensidão de seu território, uma pergunta óbvia se impõe. Por que apenas 17% dos brasileiros e das brasileiras continuam no campo? A resposta é dolorosamente simples: porque, de uma forma ou de outra, desde o início da nossa colonização, o capital os expulsou de seus locais de origem, de suas matas, florestas e terras, e forçou-os a buscar em outros locais uma sobrevivência em geral precária, em que são submetidos a uma exclusão quase obrigatória.

Ibase – Como se dá essa expulsão?

Tânia Pacheco – Nos processos de expansão do modelo de desenvolvimento vigente, povos indígenas, remanescentes de quilombos, ribeirinhos, pescadores artesanais e uma série de outras comunidades tradicionais são sumariamente destituídos de seus direitos de cidadania. Suas terras são expropriadas (e junto com elas seus familiares, amigos, meios e modos de vida, práticas religiosas, cultura e tradições).

Muitas vezes, durante algum tempo, essas pessoas são ainda usadas, “em nome do progresso e do desenvolvimento”, para ajudar na destruição dos manguezais, para retirar as raízes das árvores que os acolhiam e alimentavam. São obrigados, para sobreviver, a participar da política de “terra arrasada” necessária à construção da estrutura básica para o estabelecimento dos grandes projetos de monoculturas, por exemplo.

Num segundo momento do processo de produção, tornam-se “mão-de-obra descartável”; viram indesejáveis a serem de alguma forma “invisibilizados”, quer pela violência, quer pela sumária expulsão. A partir daí, para alguns, principalmente povos indígenas, o suicídio será a solução. Mas para grande parte desses refugiados ambientais a procura da sobrevivência nos centros urbanos, maiores ou menores, acaba sendo a única alternativa.

Há algumas décadas, era comum, no interior do Brasil e principalmente no Nordeste, os tradicionais “serviços de alto-falantes da Matriz” serem usados para auxiliar na arregimentação de mão-de-obra barata para o Sul Maravilha, onde iriam trabalhar em ofícios menores, principalmente como peões de obra. Hoje, até mesmo isso virou coisa do passado. Mas legiões de migrantes internos continuam a fazer suas viagens. Não mais em busca do sonho da sobrevivência na grande cidade e da possibilidade de voltar às suas terras em condições de viver dignamente e/ou de auxiliar seus familiares, mas como não-cidadãos tornados párias, excluídos e marginalizados.

A cidade não mais os receberá de braços falsamente abertos, mas, ao contrário, como indesejáveis que irão se somar aos contingentes das favelas ou de áreas urbanas degradadas por lixões e depósitos de rejeitos tóxicos. Para muitos restarão a mendicância, a prostituição, a droga, a destituição dos últimos resquícios de cidadania. E isso em meio a uma opinião pública e a aparatos do próprio estado que os vêem a priori como marginais, principalmente se forem negros. Para as mulheres, um epíteto distintivo: são mães de futuros marginais.

Ibase – Então é possível relacionar a remoção das favelas ao racismo ambiental…

Tânia Pacheco – Sim. Anteontem, acompanhando via internet os comentários sobre Dandara, a ocupação que está se processando em Belo Horizonte, fiquei especialmente chocada com um comentário revelador, postado no YouTube.

Uma mulher comentava o fato com visível ódio, afirmando, em dado momento: “Vocês não estudam, vivem de bicos, põe(m) filhos no mundo sem condição, apesar dos programas de planejamento familiar do governo, não aprendem o simples ato de tomar um anticoncepcional, que também é doado! Um não basta, tem de parir uns três pelo menos! Um de cada pai! Adoram viver das migalhas do governo, as bolsas esmolas, e depois querem o que é dos outros porque não dão? conta de suas vidas? Quem é honesto e trabalhador adquire as coisas, não rouba! A cidade está cheia de projetos e ONGs que fornecem tudo para vocês e suas crias”. Alguma frases semelhantes depois, terminava: “Em breve o pau vai comer nessa ocupação em BH!”

Confesso que, mais que tudo, esse “você e suas crias”, que me transportou direto para o tempo das senzalas, por pouco me tira do sério. Mas a verdade é que esse é o senso comum da maioria da chamada classe média, que continua a ser escravocrata nas próprias relações que mantém com as trabalhadoras domésticas.

E o final do comentário fecharia a minha resposta à sua pergunta se anteontem, 14, um jovem de 17 anos, Felipe dos Santos Correia de Lima, trabalhador e estudante, não tivesse sido morto com um tiro na cabeça, às 11 horas da manhã, por policiais que entraram atirando na favela da Maré. O Observatório das Favelas, que dedicou seu editorial ao caso, terminou seu comentário também com uma frase tristemente real e contundente: “Isso não é notícia”.

Ibase – Se voltarmos na história, a partir de que momento se constata o surgimento desse tipo de racismo?

Tânia Pacheco – Essa pergunta tem uma resposta fácil e curta: no momento em que os portugueses aqui chegaram e deram início ao chamado genocídio indígena.

Ibase – Na sua opinião, como é possível enfrentar o racismo ambiental?

Tânia Pacheco – Uma resposta macro e que, até segunda ordem, faz parte da nossa utopia a ser perseguida: por meio de uma revolução política, social e cultural, que mudasse o nosso padrão civilizatório e derrubasse o sistema capitalista que nos subjuga e desumaniza. Algo óbvio, mas difícil. Na prática, vamos dando pequenos passos nessa direção. O embate que o Grupo de Trabalho de Combate ao Racismo Ambiental vem travando é um deles. Criado dentro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, em 2005, e hoje integrado por dezenas de entidades e muitas pessoas físicas igualmente comprometidas, de todo o país, atuamos por meio de campanhas, denúncias e de apoios a grupo atingidos.

Paralelamente, nos preocupamos também com a produção de materiais diversos, buscando sensibilizar e contribuir para uma nova visão do Brasil que queremos. Queremos dar a nossa contribuição contra toda forma de racismo, institucional e ambiental, construindo um discurso contra-hegemônico que ajude a combater a verdadeira “orquestração” movida pelo aparato dos meios de comunicação. Para isso, é fundamental que consigamos desmontar a “lógica” presente nas páginas de Opinião da grande imprensa por intelectuais que usam suas credenciais acadêmicas para construir uma legitimação ideológica para um estado de coisas em si totalmente ilegítimo, em nome da “propriedade privada”, do “desenvolvimento” e do “progresso”.

Ibase – A segunda edição do seminário nacional trouxe novidades? O que avançou em termos de discussão e propostas desde o primeiro?

Tânia Pacheco – Saímos do II Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental, antes de mais nada, fortalecidos. Como pontos positivos, tivemos a adesão de muitas novas entidades e de pessoas totalmente comprometidas, que serão parceiras fundamentais nos desdobramentos da luta. A própria reorganização política do GT, agora sob o regime de uma forte Coordenação Colegiada, sem dúvida contribuirá para isso.

Além disso, penso que foi fundamental termos a presença de pessoas que arriscam suas próprias vidas nesses embates. Apenas como exemplos, citaria, dentre elas, Crispim dos Santos, combatente ameaçado de morte que integra a luta do Quilombo de São Francisco do Paraguaçu, Bahia; Angelina de Carvalho Pereira, do Movimento das Mulheres Camponesas, atualmente militando no Acre; José Cardoso, articulador do Movimento Nacional dos Catadores de Material Reciclável. Sem esquecer, por um momento sequer, os Anacé, que nos acolheram no nosso último dia de trabalho, e conosco dividiram sua terra, sua indignação, seus alimentos e seus sonhos. Isso foi sem dúvida uma injeção de ânimo, de força e de desafios para todos nós.

Ibase – Um dos resultados também foi a Carta de Fortaleza. Poderia falar sobre a importância deste documento?

Tânia Pacheco – Ao redigi-la, nos preocupamos, muito mais do que realizar uma análise de conjuntura acadêmica, em pactuar uma verdadeira carta de princípios, que marque as opções, os compromissos e os rumos da luta do nosso GT daqui por diante.

Ibase – Quais os desdobramentos futuros?

Tânia Pacheco – A construção do Mapa do Racismo Ambiental no Brasil continua a ser um dos nossos alvos, como estratégia e como instrumento de luta. A aliança com outros movimentos da América Latina, já iniciada com a Coordinadora Nacional de Derechos Humanos, ONG peruana, é outro objetivo a ser alcançado, uma vez que o combate ao racismo ambiental transcende as nossas fronteiras. Fora isso, muita luta, muita busca de novas parcerias, e, acima de tudo, muita indignação, elemento que penso ser fundamental para nos manter vivos e humanos.

Por Flávia Mattar, da Agência Ibase. Colaborou Diego Santos

[EcoDebate, 22/04/2009]

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