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Especial: Crack avança em capitais e cidades médias brasileiras

Dedos queimados e calos são cicatrizes comuns deixadas pelo crack nas mãos de quem fuma Foto: Marcello Casal JR/ABr
Dedos queimados e calos são cicatrizes comuns deixadas pelo crack nas mãos de quem fuma Foto: Marcello Casal JR/ABr

Especialistas ouvidos pela Agência Brasil apontam para uma possível epidemia deste subproduto da cocaína, que provoca dependência agressiva, exclusão social do usuário e desagregação familiar, além de estimular a criminalidade

  • Sem prevenção e repressão eficiente, crack avança em capitais e cidades médias brasileiras
  • Lucros maiores e preço baixo em relação a outras drogas estimulam vendas do crack
  • Em Brasília, crack ganhou espaço e seduziu usuários de famílias da classe média
  • Avanço do crack pode ter relação direta com aumento de homicídios e crimes

Sem prevenção e repressão eficiente, crack avança em capitais e cidades médias brasileiras

Na esteira do despreparo do poder público e da sociedade em relação à prevenção, à repressão e ao tratamento dos efeitos da droga, o consumo do crack avança com desenvoltura no Brasil e faz multiplicar relatos de sua gravidade nas grandes capitais e cidades do interior.

Especialistas ouvidos pela Agência Brasil apontam para uma possível epidemia deste subproduto da cocaína, que provoca dependência agressiva, exclusão social do usuário e desagregação familiar, além de estimular a criminalidade.

Estudo recente realizado em Salvador, São Paulo, Porto Alegre e no Rio de Janeiro detectou um aumento do número de usuários de crack em tratamento ou internados em clínicas para atendimento a dependentes de álcool e drogas. Eles respondem por 40% a 50% dos indivíduos em tratamento, dependendo da clínica e de sua localização. A idade média dos usuários de crack (31 anos) é inferior à dos demais pacientes em tratamento (42 anos). Entre os dependentes desta droga, 52% são desempregados.

O levantamento foi coordenado pelo psiquiatra Félix Kessler, vice-diretor do Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro da Associação Brasileira de Estudos sobre Álcool e Drogas (Abead).

No cotidiano de atendimento a dependentes em Porto Alegre, Kessler ressalta a presença forte da droga no interior.

“No Hospital São Pedro, o número de usuários de crack vindos do interior é muito grande. A cada dez pacientes que procuram a emergência psiquiátrica do hospital, cerca de sete são usuários de crack vindos do interior”, conta Kessler.

Em Minas Gerais, municípios de médio porte, como Governador Valadares, Montes Claros, e Uberaba, apresentam há três anos índices elevados de homicídios entre jovens que coincidem com o aumento das apreensões de crack.

Segundo Luís Sapori, coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas em Segurança Pública da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), a droga também está presente há 10 anos em toda a região metropolitana de Belo Horizonte, com maior peso nas cidades de Contagem, Betim, Ribeirão das Neves e Ibirité. Na cidade histórica de Ouro Preto, jovens que frequentam as repúblicas estudantis admitem, em conversas reservadas, que o crack também passou a ser consumido nos últimos anos.

“Podemos concluir de forma categórica que o crack chegou ao interior de Minas Gerais. E não deve demorar a atingir municípios com menos de 50 mil habitantes. Infelizmente o crack transformou-se na principal droga comercializada. Ele tem um elemento mercadológico que supera em muito a cocaína”, afirma Sapori, em alusão ao fato de o crack ter mercado consumidor mais amplo e provocar uma dependência mais agressiva, que leva o usuário a gastar mais com o vício.

No Centro Mineiro de Toxicomania, unidade de atendimento ambulatorial mantida pelo governo estadual, há dez anos os dependentes de crack representavam 5% do total de atendimentos. Dados de 2008 indicam que eles já respondem por 25% da demanda, superando os dependentes de cocaína e maconha.

Caruaru, no agreste pernambucano, e Petrolina, no sertão próximo ao Rio São Francisco, são pólos que congregam cinturões de cidades de menor porte e já apresentam clara expansão no mercado de crack.

“São regiões onde o crack entrou nos últimos anos, e o problema não é só da área metropolitana. O conceito de epidemia é uma metáfora instigante para pensarmos nesta explosão do crack em municípios de médio e grande porte no Brasil”, avalia José Luiz Ratton, coordenador do Núcleo de Pesquisa em Criminalidade, Violência e Políticas Públicas de Segurança da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

No Rio de Janeiro, em favelas como Jacarezinho e Manguinhos, que eram historicamente livres do crack, há 3 anos formaram-se cracolândias com a “benção” de criminosos que viram, na droga, uma chance de ampliar seus lucros.

“É impressionante. A qualquer hora do dia, vemos crianças e adolescentes consumindo a droga e deitados no chão. Áreas dominadas pela facção Comando Vermelho passaram a vender e isso vem como uma tsunami”, descreve a socióloga Sílvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes.

No Distrito Federal, pontos de comercialização estão espalhados por praticamente todas as cidades satélites. A venda acontece também na região central da cidade, próximo à Esplanada dos Ministérios.

Em meados da década de 1990, usuários de cocaína e crack eram responsáveis por menos de um quinto da procura em serviços ambulatoriais relacionados a drogas ilícitas. Hoje eles respondem por 50% a 80% da demanda. Nos últimos anos, o crack também começou a ganhar terreno entre grupos com rendimentos mais elevados, apesar de a droga ainda ser mais comum entre as classes de baixa renda.

Lucros maiores e preço baixo em relação a outras drogas estimulam vendas do crack

“Com certeza, o crack chegou para destruir. A cocaína dá dinheiro, mas não dá tão rápido. No crack, o vício é mais rápido. A rapaziada fumou aqui, não volta para casa, vai dar um jeito de pegar mais, até o corpo chegar no limite. O crack dá muito mais dinheiro.”

As palavras de Léo, 29 anos, ex-traficante que atuava em cidades satélites de Brasília, apontam para um dos principais fatores do aumento do crack nas grandes e médias cidades brasileiras.

A droga se mostrou, em muitos casos, mais rentável aos traficantes do que a venda de outras mais caras, como a maconha e a cocaína refinada. Na região metropolitana de Belo Horizonte, por exemplo, um papelote de cocaína custa cerca de R$ 20, enquanto uma pedra de crack sai em média a R$ 5.

A característica do consumo, entretanto, pode fazer do crack uma oportunidade financeira mais atraente para o vendedor. Um usuário de cocaína consumiria em uma noite dois ou três papelotes. Muitos dependentes do crack que procuram o Centro Mineiro de Toxicomania relatam fazer uso médio de 15 a 20 pedras por dia.

“Um único usuário de crack gera mais renda do que um usuário de cocaína. O crack gera fissura, dependência forte pelo uso continuado. Isso explica também por que as bocas de fumo estão se transformando em grandes revendedoras de crack”, diz o coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas em Segurança Pública da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Luís Sapori.

Na prática, o ex-traficante Léo explica essa contabilidade: “Vou te falar a real, na noite, a gente fazia R$ 1 mil. Só com pedra, pedrinha assim de R$ 10. Dá dinheiro para quem está nesse meio, dá dinheiro, R$ 1 mil de lucro. Se você anunciar que tem crack, neguinho vai bater na sua casa de manhã, à tarde, à noite, de madrugada. Não tem conversa.”

Para os usuários, a busca pelo crack surge como oportunidade de experimentar algo diferente, mais forte. “O crack veio por motivação de alguns amigos, que falavam que era mais forte, que dava uma viagem imensa e deixava o cara mais poderoso. Resolvi experimentar e acabei viciando”, conta Maurício, 31 anos, morador de Brasília e em tratamento há 3 meses para se livrar do vício de vários anos.

“O efeito do crack é muito rápido. No Plano [Piloto, região central de Brasília] você compra uma pedra a R$ 10, fuma, tem um efeito de 50 segundos, depois vem a compulsão que faz você procurar mais”, reforça GP, 33 anos, também ex-usuário em tratamento.

Segundo o psiquiatra Félix Kessler, coordenador de pesquisas sobre álcool e drogas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o crack é uma droga muito potente e provoca efeitos mais fortes do que o álcool e a maconha em crianças, jovens e adolescentes. “Drogas fumadas entram no organismo rapidamente. O pulmão tem superfície extensa que absorve grande quantidade de substância, que vai direto ao cérebro”, assinala Kessler.

José Luiz Ratton, que coordena o Núcleo de Pesquisas em Criminalidade, Violência e Políticas Públicas de Segurança da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), lembra que o mercado consumidor do crack, focado nas classes C, D e E, é naturalmente mais amplo do que o da cocaína. O fato de ser uma droga barata permite maior acesso e maior quantidade de uso.

Psiquiatras também têm relatado que a droga conquista adeptos nas classes A e B em ritmo crescente. Além disso, a estrutura exigida para a venda é mais simples. “Ele [o crack] pega todas as classes sociais com capilaridade. O ganho não está restrito ao nicho da classe média, como a cocaína. Tem uma base consumidora maior e é mais barato. As perdas são menores no estoque e na logística de transporte. O mercado é mais pulverizado e fragmentado. É um grande varejo de camelôs de droga, com produção artesanal”, descreve Ratton.

Em Brasília, crack ganhou espaço e seduziu usuários de famílias da classe média

Por muito tempo, a imagem do crack esteve associada a moradores de rua e usuários de baixa renda. Mas há indícios de que o consumo da droga ganha espaço progressivamente nas classes de renda maior. Em clínicas e grupos terapêuticos de Brasília, representantes da classe média que se renderam ao crack não são mais raridade.

Famílias de áreas nobres da cidade experimentam os trágicos efeitos da droga. Carla, 30 anos, mora com a tia em uma área central de Brasília e começou a usar droga aos 12 anos Aos 28, veio a experiência com o crack: ela fugiu de uma clínica em São Paulo e comprou 20 pedras na cidade de Suzano.

Com dois filhos, um de 11 anos e outro de 8, Carla tenta hoje se recuperar do vício: “O crack está na classe média e tem muita mulher usando. Está começando mais cedo. Hoje você encontra meninas de 14, 15 anos, já no fundo do poço”, conta Carla. “Há três anos, Brasília estava começando a abrir para o crack. Você ia na boca e não encontrava pedra.”

“Brasília está virando uma segunda São Paulo. Você encontra droga em qualquer esquina. Nunca vi aqui em Brasília tanto crack como agora em 2009”, observa o ex-usuário Maurício, 31 anos.

Para saciar o desejo de consumir crack, Carla caiu na criminalidade. “Você começa a fazer coisas que fogem de todos os princípios. Não cheguei a me prostituir, mas cheguei a roubar. Eu trabalhava mas meu dinheiro não dava.”

Jéssica, 22 anos, moradora de uma área central de Brasília, experimentou o crack por influência de uma amiga. “O consumo de crack está crescendo em Brasília. Antes não se ouvia falar de crack. Os traficantes da 109 sul [quadra comercial e residencial da cidade] vendiam só maconha, cocaína e, às vezes, merla. Agora vendem e usam crack.”

Após seis internações, Jéssica se diz disposta a reescrever sua história. Ela tem consciência de que as perdas não foram poucas com a experiência. “Deixei de estudar, de me formar, perdi um emprego no Ministério da Agricultura, bati carro várias vezes. O efeito [do crack] dura menos, e a fissura é maior. Acaba de fumar, dá uns dois minutos, e você fica desesperado querendo mais. Me envolvia com assaltante, traficante, prostituta.”

GP, 33 anos, é ex-usuário de drogas e tem origem numa família rica. Ele estima ter gasto mais de R$ 300 mil por causa do vício, especialmente após passar a consumir crack. Perdeu carro, foi roubado e garante que o crack não é mais droga de pobre. “Hoje estou vendo playboy chegar de BMW para comprar pedra e depois terminar na rua doidão. Já vi gente vender até a porta de casa.”

Dados policiais confirmam que o crack avança no Distrito Federal em substituição à merla. Somente no ano passado, a Polícia Civil apreendeu mais de 4 quilos de crack, suficientes para mais de 10 mil porções de consumo.

“O crack é mais fácil de portar. São pequenas pedras comercializadas. A merla é colocada em latas, é difícil para esconder. Em uma caixa de fósforos, é possível guardar cerca de 50 porções de crack. A merla é volátil, em poucos dias dissolve, enquanto o crack dura vários dias em condição de ser consumido”, explica o chefe da Coordenação de Repressão às Drogas da Polícia Civil do Distrito Federal, delegado João Emílio de Oliveira.

Além de o crack ser uma droga mais agressiva na geração de dependência, a Polícia Civil do DF acredita que a ausência de punições rígidas para usuários faz o consumo crescer entre a classe média. “A lei tornou-se muito branda em relação ao usuário e ele está pouco ligando quando é preso portando droga para consumo pessoal. Ele vem à delegacia, passa aqui meia hora, assina um termo de comparecimento ao Juizado Especial, mas não liga”, afirma Oliveira.

Moradora da Vila Planalto (próximo ao Palácio do Planalto), Márcia, 58 anos, mãe de um usuário de crack em tratamento, sentiu em casa a transformação do filho. “Ele era um cara limpo, arrumado, mas passou a ser um cara que não se importava com nada. Parecia sempre deprimido. Cheque, bolsa e dinheiro não podia deixar em qualquer lugar. Eles vasculham tudo numa rapidez que ninguém entende.”

Avanço do crack pode ter relação direta com aumento de homicídios e crimes

O abalo psicológico e os gastos necessários para manutenção do vício são dois elementos do consumo do crack que potencializam o flerte do usuário com as ações criminosas. A maior parte dos usuários são jovens de classes sociais mais baixas.

“O indivíduo se isola num processo de embrutecimento absurdo e desumanização que gera rompimentos familiares, de trabalho e de escolaridade”, diz o coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas em Segurança Pública da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Luis Sapori . “Isso gera um tipo de violência mais intensiva, consistente e perversa do que a cocaína e a maconha.”

O psiquiatra Félix Kessler, que realiza pesquisas sobre o consumo de crack no Rio Grande do Sul, confirma a relação preocupante entre o consumo de crack e a violência. “Os danos familiares, sociais e profissionais que essa droga causa, a violência que ela gera, levando às vezes o indivíduo para a criminalidade, preocupa muito. Os pacientes se tornam mais agressivos e, no desespero do uso da droga, temos visto meninos indo para criminalidade e meninas se prostituindo em troca da pedra”, relata Kessler.

O coordenador do Núcleo de Pesquisa em Criminalidade, Violência e Políticas Públicas de Segurança da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), José Luiz Ratton, acredita que o crack talvez seja a única droga disponível no mercado brasileiro que tenha relação direta com certos tipos de criminalidade.

“O problema da disponibilidade de armas junto com o crack, nas áreas pobres, é muito grave. Não é só o crime contra a propriedade, mas o crime contra a vida. A combinação destes elementos é explosiva”, ressalta Ratton.

A obsessão pelo consumo gerada pelo crack também preocupa policiais. “O usuário do crack faz o que for possível para comprar a droga. A droga domina o ser humano de uma forma que ele está pouco ligando se vai ser preso. Se não tiver uma repressão muito forte, repercute principalmente nos crimes contra o patrimônio”, diz o chefe da Coordenação de Repressão às Drogas da Polícia Civil do Distrito Federal, delegado João Emílio de Oliveira.

Indícios da relação direta entre o crescimento do consumo de crack e o aumento dos índices de criminalidade nas localidades motivaram pesquisadores a colocarem como prioridade o desenvolvimento de estudos que garantam diagnóstico preciso do problema.

“Quero fazer um grande estudo local e nacional para comprovar que o crescimento dos homicídios em várias regiões brasileiras não pode ser separado da entrada do crack nestas localidades”, afirma Sapori, da PUC Minas.

Sapori acredita que uma combinação de ações repressivas e preventivas eficientes contra o comércio e o uso de crack pode levar a uma redução do nível de homicídios no Brasil. Mas, por ora, as estruturas públicas se mostram aquém do desafio, a começar pela ausência de informações empíricas consistentes.

“A polícia percebe o problema, mas ainda precisa compreender melhor o que se passa. Ainda sabemos pouco da relação direta do crack com a criminalidade. Os americanos já cuidaram disso nas décadas passadas. No caso brasileiro, é hora de fazer o mesmo, ou seja, estudar o problema do ponto de vista da saúde pública, da reinserção social e do tráfico”, alerta Sapori.

* Todos os nomes de usuários de crack, ex-usuários, jovens e crianças desta reportagem especial são fictícios

Matérias de Marco Antonio Soalheiro, da Agência Brasil, publicada pelo EcoDebate, 11/03/2009.

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