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Consultas públicas para construção de hidrelétricas são falsa democracia, artigo de Rodolfo Salm

[Correio da Cidadania] Assim como aconteceu com relação aos direitos humanos e liberdades individuais, a ditadura militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985 não foi nada branda com a floresta amazônica, que sobrevivera praticamente intacta até ali, a quatrocentos e tantos anos da invasão européia. O regime totalitário lançou as bases do atual estado de devastação quase que generalizada da região, através de incentivos explícitos à devastação e da abertura e construção de grandes estradas e hidrelétricas de enorme grau de destruição, como Balbina e Tucuruí. E nos deixou uma herança maldita na forma de planos de barragens em praticamente todos os seus grandes rios. Fala-se, por exemplo, que os pontos onde a rodovia Transamazônica se encontra com os rios Xingu e Tapajós foram definidos em função de suas aptidões para a construção de barragens. Neste contexto, o restabelecimento da democracia, em meados dos anos 1980, representou uma esperança para aqueles que já se preocupavam com a sorte da maior floresta tropical do planeta. Mas foi breve o alívio para os moradores do Xingu, especialmente na região de Altamira, que ainda na década de 1980 viram ganhar força a idéia de barrar este rio para a produção hidrelétrica.

Aqui em Altamira é quase impossível fugir da questão das hidrelétricas. Há pouco mais de duas semanas (16 de fevereiro) eu estava plantando mudas, cuidando da arborização do novo campus da UFPA, quando outro professor perguntou-me se eu sabia da consulta pública sobre a Belo Monte que acontecia naquele momento em algum ponto da cidade. Não. Eu não sabia. Esse assunto me faz ferver o sangue, mas, na verdade, eu dificilmente trocaria o prazer de mexer na terra (ainda mais plantando umas palmeiras que recebemos como doação do viveiro de mudas da prefeitura), por uma daquelas reuniões aborrecidas. Não vou, pensei. Mas, algumas horas mais tarde, quando eu já quase encerrava o plantio, recebi o recado distorcido de que “A ministra Dilma queria falar comigo”. Claro que isso não podia estar certo. Na verdade, a senhora Antônia Melo, liderança da luta contra a barragem, do Movimento Xingu Vivo Para Sempre, me convidara para outra reunião no começo da noite, com o representante da Casa Civil, Johaness Eck, e o grupo interministerial, que organizara a “consulta pública sobre o Plano do Xingu” que acontecia naquela tarde, além dos participantes do movimento de resistência à construção da hidrelétrica. Aí claro que eu tinha que ir.

Mais tarde, já no local da reunião, enquanto esperávamos o grupo de Brasília na sede da FVPP (Fundação Viver Produzir e Preservar), chegamos a duvidar que realmente apareceria. Apareceram. No primeiro contato, surpreendi-me com a juventude e a abertura do pessoal do grupo interministerial, que não lembrava em nada a dureza dos defensores das barragens. Um rapaz, da área da Educação Ambiental do Ministério do Meio Ambiente, até me cochichou algo sobre empurrar alguma etapa burocrática para a liberação da construção das hidrelétricas até o ano eleitoral para conseguir postergá-la, fazendo, é claro, a ressalva assustada “eu não te disse nada, viu?” (lamento). Mas isso pouco importava, pois logo ficou claro que quem mandava ali era mesmo o senhor Johaness Eck, duro e seco, como cabe a um assessor direto da Dilma Roussef. Feitas as apresentações de costume, quando cada um dos membros do movimento disse por que era contra o barramento do Xingu, o representante da Casa Civil, referindo-se à reunião daquela tarde, reclamou da ausência de representantes dos movimentos sociais, muitos dos quais presentes naquele momento ali, e da pouca participação popular. E questionou se o boicote fora proposital. Aproveitando este gancho, o Sr. Eck pediu para “baixarmos a bola” e falou sobre as virtudes da Constituição e da democracia em que vivemos. Pois, segundo ele, diferentemente do que acontecia nos anos da ditadura, o governo agora sai para ouvir o povo, que há consultas populares e estudos científicos. Num momento de pretensa humildade admitiu que o processo de licenciamento ambiental “tem problemas”, pois esta é a “democracia dos homens”, daí que não poderia ser perfeito. Com este discurso ele evidentemente queria virar o jogo, jogando sobre nós, os opositores à construção da hidrelétrica, o estigma de totalitários.

Para tentar desmascará-lo, perguntei-lhe se haveria a chance de conseguirmos a suspensão do projeto da hidrelétrica, caso as consultas populares indicassem a insatisfação com a idéia. Ao que me respondeu sinceramente que era muito difícil, para não dizer impossível. Então, questionei- lhe sobre a validade de estudos que já partem do pressuposto de que a usina será construída de qualquer forma. E perguntei também como que, ainda não havendo licenciamento ambiental, os representantes da Eletronorte e da Eletrobrás estariam autorizados a afirmar categoricamente que a usina será construída. Só o anúncio feito pela Eletronorte de que Belo Monte seria efetivamente construída foi o suficiente para que cidades da transamazônica, como Anapú, tivessem sua população duplicada no espaço de poucos anos. É gente que veio para cá com a expectativa da construção da hidrelétrica e que, no momento, mal tem do que viver. A idéia, no meu modo de ver, é criar um fato consumado quanto à sua construção.

Nos últimos dias ainda tivemos a infeliz notícia de que, contrariando todas as leis, estudos e pareceres, cerca de 80 pessoas, contratadas por uma empresa com interesse na construção da hidrelétrica, já iniciaram trabalhos de terraplanagem na região da Volta Grande visando à construção de parte da infra-estrutura relativa à hidrelétrica. Isso sim é antidemocrático, fere a Constituição. Acusam-nos de nos esquivar do jogo democrático, mas os movimentos sociais sabem bem o que estão fazendo ao boicotar o teatro que se arma em torno destas falsas consultas populares.

É engraçada essa nossa democracia. Alguns dos populares reunidos na FVPP, prestes a terem suas vidas devastadas pela construção desta hidrelétrica, e plenamente cientes desta tragédia, mantinham a fé no presidente Lula. Diziam: “estão mentindo para o Lula”, “se ele viesse aqui e falasse com a gente, não aceitaria isso”. Por outro lado, a mais de um ano das próximas eleições presidenciais, já estamos praticamente limitados a uma opção entre, de um lado, Dilma Roussef, escolhida pelo presidente Lula e, de outro, José Serra ou Aécio Neves, que do ponto de vista das hidrelétricas aparentemente não se distinguem em nada.

Como transcreveu o bispo do Xingu, Dom Erwin, no prefácio do livro Tenotã-mô (do professor Oswaldo Sevá), um jornal de São Paulo assim descreveu, em 1970, a visita do presidente Médici a Altamira para a instalação do marco inicial da construção da Transamazônica: “O presidente emocionado assistiu à derrubada de uma árvore de 50 metros de altura, no traçado da futura rodovia, e descerrou a placa comemorativa (…) incrustada no tronco de uma grande castanheira com cerca de dois metros de diâmetro, na qual estava inscrito: ‘Nestas margens do Xingu, em plena selva amazônica, o sr. Presidente da República dá inicio à construção da Transamazônica, numa arrancada histórica para a conquista deste gigantesco mundo verde’”. O bispo completou: “Não entendi as palmas delirantes da comitiva desvairada diante do estrondo produzido pelo tombo desta árvore, a rainha da selva. Aplauso para quem e em razão de quê?”. Na época não havia consultas públicas nem estudos de impacto ambiental. Mas no fundo dava no mesmo, pois a voz dos atingidos por estas mega-obras de infra-estrutura continua sendo ignorada. A Dilma é o Médici de saias.

Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é professor da Universidade Federal do Pará.

* Artigo originalmente publicado no Correio da Cidadania, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.

[EcoDebate, 09/03/2009]

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