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Pesquisadores da Unicamp integram projeto internacional de investigação da mortalidade materna

Procedimento cirúrgico no Hospital da Mulher-Caism: grupo da Unicamp teve papel importante ao longo da fase preparatória (Fotos: César Maia/Antonio Scarpinetti)
Procedimento cirúrgico no Hospital da Mulher-Caism: grupo da Unicamp teve papel importante ao longo da fase preparatória (Fotos: César Maia/Antonio Scarpinetti)

Na indústria aeronáutica, um conceito batizado de near miss (quase perda, em português) tem ajudado os especialistas a entender as determinantes dos acidentes aéreos. A análise minuciosa desses casos, tanto quanto dos desastres efetivamente ocorridos, fornece informações valiosas que permitem a adoção de medidas destinadas a evitar novos sinistros. A partir dos anos 90, a medicina adotou esse conceito e o adaptou à área da ginecologia e obstetrícia.

A intenção era compreender melhor as complicações envolvidas na mortalidade materna e, dessa forma, propor estratégias para minimizar o problema. Baseada em trabalhos realizados por grupos de pesquisadores de diversos países, um deles abrigado na Unicamp, a Organização Mundial da Saúde (OMS) formulou um projeto que pretende investigar, em nível global, os episódios de near miss materno. A ação, que alcançará 400 hospitais de 27 países, incluído o Brasil, será coordenada pelo médico João Paulo Dias de Souza, que acaba de defender tese de doutorado sobre o assunto na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade, sob orientação do professor José Guilherme Cecatti.

De acordo com João Paulo Souza, que atua no Departamento de Saúde Reprodutiva e Pesquisa da OMS, o estudo será desenvolvido ao longo dos próximos dois anos e acompanhará 350 mil mulheres. Em 2009, ocorrerá a etapa de treinamento de pessoal nos 27 países envolvidos no projeto, espalhados por todos os continentes. Em 2010, serão feitas as coletas e análises dos dados. “Mas a preparação para esse trabalho vem sendo feita desde o ano passado, quando a OMS promoveu reuniões para a definição da terminologia, dos indicadores e da estrutura de ação”, destaca. Na fase de preparação, continua o médico, o grupo da Unicamp cumpriu papel de destaque. As pesquisas realizadas pela equipe contribuíram para alimentar boa parte das discussões. “Felizmente, o grupo da Unicamp já estava envolvido com esse tema quando ele começou a ganhar destaque no meio científico, no início dos anos 2000. Com a inauguração da UTI do Hospital da Mulher-Caism, em 2002, o hospital passou a receber um número cada vez maior de casos de morbidade materna grave, o que nos possibilitou investigar mais a fundo as suas determinantes”, relata.

Para explicar a importância da pesquisa em torno do near miss materno, o médico usa como exemplo um episódio do setor aeronáutico, de onde o conceito foi importado. Em setembro de 2006, um Boeing e um Legacy chocaram-se no ar, entre o Norte de Mato Grosso e o Sul do Pará. A primeira aeronave caiu, causando a morte de 154 pessoas. A segunda conseguiu pousar, com dificuldades, em uma base aérea da região. “O Boeing, por analogia, representa a morte materna. O Legacy, por seu turno, equivale ao near miss. Ou seja, ambos enfrentaram praticamente as mesmas circunstâncias, mas por sorte ou por um aspecto técnico um deles escapou. Portanto, as determinantes que fazem com que um acidente ocorra também estão presentes numa quase perda. Tanto para o segmento aeronáutico quanto para a medicina, a compreensão desses elementos pode ajudar a definir estratégias que reduzam ocorrências do gênero”, detalha João Paulo Souza.

O representante da OMS lembra que não basta estudar apenas os casos de morte materna para entender completamente o problema. Hipoteticamente, ele afirma que um hospital pode registrar apenas um óbito por ano, mas somar dez casos de near miss no mesmo período. “Nessa hipótese, embora o número de mortes não seja excessivo, as determinantes da mortalidade continuam presentes. Se essas causas não forem devidamente identificadas e atacadas, o risco para as mulheres continuarão existindo”, alerta. Os fatores que mais concorrem para a morte materna, conforme o médico, são as complicações hipertensivas, hemorragias, infecções e problemas decorrentes de abortos provocados. Atualmente, cerca de 500 mil mulheres morrem por ano no mundo durante ou em um curto período após a gestação. No Brasil, são perto de 2,5 mil casos anuais.

Mas como fazer para reduzir esses índices? Na opinião de João Paulo Souza, a resposta está na mudança do atendimento às mulheres grávidas. Ele lembra que a mortalidade materna sempre preocupou os cientistas e autoridades da área de saúde. No começo dos anos 80, durante uma conferência no Kênia, foi lançada uma proposta em âmbito mundial para tentar controlar o problema. Na ocasião, foi dada especial atenção às medidas preventivas. “Entretanto, decorridas quase duas décadas, a estratégia não surtiu bons resultados, pois a questão do enfrentamento das emergências ficou em segundo plano”, relata o médico.

No final dos anos 90, a comunidade internacional percebeu que uma parte das complicações poderia de fato ser prevenida com medidas ligadas ao pré-natal, essencialmente na preparação para emergências, incluindo educação em saúde, detecção precoce de complicações e suplementação de ferro para as portadoras de anemias. Outra parte, porém, não tinha como ser evitada, o que exigiria melhor infraestrutura para o atendimento de emergências. “Trata-se de um dos poucos exemplos em saúde pública em que as iniciativas de maior impacto não estão relacionadas à prevenção, mas sim ao tratamento das complicações”, afirma o representante da OMS. O estudo global envolvendo os casos de near miss faz parte desse novo conceito. João Paulo Souza conta que foi escolhido para coordenar essa empreitada justamente por causa da sua ligação com o assunto e em razão da tradição do grupo da Unicamp, ao qual continua ligado, no desenvolvimento de pesquisas na área da saúde materna. “Prestei o concurso, passei e assumi a coordenação do projeto”, resume o médico, que está baseado atualmente em Genebra, na Suíça.O médico João Paulo Dias de Souza, coordenador do projeto: estudo acompanhará 350 mil mulheres

Rede brasileira
Antes de a Organização Mundial da Saúde (OMS) propor a realização do estudo global em torno do near miss materno, o grupo da Unicamp envolvido com o tema já havia percebido a necessidade de promover estudos colaborativos nessa área. Em 2007, por ocasião de um congresso de ginecologia e obstetrícia ocorrido em Fortaleza (CE), os pesquisadores da Universidade sugeriram a criação de uma rede brasileira voltada aos estudos na área da saúde materna. Um projeto nesse sentido foi apresentado ao Ministério da Saúde e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que decidiram financiar a empreitada. “A partir de meados de 2009, vamos iniciar um estudo em rede, por meio do qual pretendemos monitorar 25 hospitais de diversas regiões do país, entre eles o Hospital da Mulher-Caism. Queremos acompanhar, durante um ano, entre 50 mil e 60 mil partos, de modo a analisar os casos de morbidade e near miss”, adianta João Paulo Souza.

Na prática, a rede brasileira, que ficará sediada fisicamente na Unicamp, terá os dados consolidados um ano antes do estudo global. “Em outras palavras, a experiência brasileira servirá para orientar alguns dos passos que daremos no trabalho mais amplo. Isso mostra que o Brasil tem pessoal e estrutura adequados a esse tipo de estudo”, analisa o médico. Um dado que reforça a avaliação do representante da OMS vem da sua própria tese de doutoramento. Por meio dela, João Paulo Souza estimou pela primeira vez o número de casos de near miss materno ocorridos no Brasil: 70 mil ao ano. Ele obteve esse resultado por meio do desenvolvimento de indicadores de morbidade materna grave, que foram posteriormente adaptados a um estudo populacional.

O levantamento das informações foi feito pela equipe da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde, com a colaboração do Ministério da Saúde, a partir de setores censitários definidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Foram visitados cerca de 15 mil domicílios em todo o país. Uma das questões apresentadas pelos entrevistadores era se havia alguma mulher na residência que havia sido submetida a parto nos últimos cinco anos. Em caso positivo, um questionário específico era aplicado, com o objetivo de apurar se as mulheres haviam apresentado alguma complicação durante ou logo em seguida à gravidez. “Por sorte ou por terem sido cuidadas adequadamente, essas 70 mil mulheres sobreviveram. Resta-nos agora analisar detalhadamente essa situação, para que possamos aprimorar a infraestrutura de atendimento às emergências”, observa o representante da OMS.

No caso brasileiro especificamente, aperfeiçoar o atendimento significa não apenas ampliar o número de leitos de UTI obstétrica, mas também treinar os profissionais da área da saúde (médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem etc) para que estes estejam capacitados a reconhecer a gravidade dos casos e iniciar a terapêutica imediatamente, segundo João Paulo Souza. “Uma grávida que apresente complicações e que more numa cidade pequena, onde não existe unidade de saúde especializada, não pode esperar para receber os primeiros cuidados depois de ser transferida para um centro urbano maior. Quanto mais precoce for o tratamento, mais chance de sucesso ele terá. Por analogia, é preciso adotar a mesma abordagem que se faz no caso de trauma ou de infarto do miocárdio”, compara o médico, referindo-se à importância do aproveitamento das primeiras horas após a complicação inicial, as chamadas “horas de ouro”.

Matéria de Manuel Alves Filho, no Jornal da Unicamp, ANO XXIII – Nº 420

[EcoDebate, 06/03/2009]

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