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Despindo o ‘país da fantasia’. Um debate entre Chico de Oliveira e José Arthur Giannotti

crise global
Imagem: Stockxpert

José Arthur Giannotti, professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, e Francisco de Oliveira, professor titular do Departamento de Sociologia da USP – acostumados a pensar o Brasil, eles dizem, em encontro realizado no ‘Estado’, que falta alteridade ao governo e, diante da crise, é preciso montar uma agenda e pôr fim à ilusão de que tudo vai bem.

Adeus marolinha, festas do pré-sal, discursos de ilusões. Adeus messianismo, compras a perder de vista, planos sem ação. Adeus, pois o que o Brasil precisa é de uma agenda, sem a qual seguirá sendo remotamente o “país do futuro” – mas o futuro é o presente. E a luz da lucidez contra a fantasia de que tudo vai bem por aqui pode ser acesa – quem diria – pela crise financeira que escureceu o mundo em 2008. Nisso tudo concordam o sociólogo Francisco de Oliveira e o filósofo José Arthur Giannotti, ambos da Universidade de São Paulo, ex-companheiros no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e integrantes históricos do grupo de intelectuais que, em 1980, assinou, no Colégio Sion, a ata de fundação do Partido dos Trabalhadores. Depois, cada um tomou uma estrada: Oliveira romperia com o PT e hoje está próximo do PSOL de Plínio de Arruda Sampaio. Giannotti, por sua vez, aproximou-se do PSDB. Não se considera, porém, um tucano, e sim um “tucanóide”, o que, na ornitologia política, talvez signifique uma ave de bico comprido, afiado e bastante crítico.

Os dois debateram a conjuntura nacional com a intermediação de Laura Greenhalgh e do editor Rinaldo Gama. O debate está publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 21-12-2008.

“Lula é regressão”, disparou o sociólogo, incomodado com o que considera “caráter messiânico” do presidente. “Os problemas não são enfrentados pelo governo; eles são embalsamados, como se pudessem ser resolvidos simplesmente com passes de mágica”, avaliou o filósofo.

Eis o debate.

REGRESSÃO E FANTASIA

Francisco de Oliveira – Analisando esse caráter do presidente como “homem providencial”, uma visão muito comum na política brasileira, vejo nisso uma regressão. Então, nesse sentido, acho que Lula representa a regressão. Eu preferiria um chefe de governo como Ulysses Guimarães. Não para despersonalizar a política, mas para tirar o caráter messiânico da figura presidencial. O messianismo não aconteceu com Fernando Henrique Cardoso porque ele não tem esse traço de personalidade. Ulysses era um grande articulador, conduziu o processo de redemocratização, um dos momentos altos da política brasileira, momento realmente criativo da vida nacional, até hoje mal avaliado, mal estudado pela academia. Há poucos estudos sobre aquele período.

José Arthur Giannotti – Eu não diria que Lula é uma regressão. Ele tem aspectos regressivos e aspectos positivos, na medida em que, a despeito desse ponto que você aponta, temos hoje uma integração maior no jogo político de uma população que até pouco atrás não havia sido incorporada. Tenho a impressão de que desde o tenentismo não se via uma tal ampliação do corpo político brasileiro. Por outro lado, observamos que essa integração está sendo feita a partir de uma enorme ilusão de unidade, o que é a própria negação da política. Por quê? Lula é um craque da comunicação, quanto a isso não há dúvida, mas ele pratica uma política que tende a escamotear as diferenças. Veja como, na medida em que o PT se dirigiu para o centro, não tivemos mais uma alternativa no campo político. Investidas como a do PSOL são, a meu ver, tentativas tradicionais da esquerda, mas são facções que não estão agarradas a nenhuma base social, enquanto o PT veio de uma bem definida. Pois bem, quando o PT foi para o centro, a política perdeu alteridade. E quando aparece alguma alteridade o PT logo trata de incorporá-la. Basta ver o número atual de ministérios: 37. Em caso de discordância, crie um ministério. Com isso, as lutas desaparecem. A despeito de as instituições políticas serem, do ponto de vista eleitoral, estruturadas e mais ou menos constantes, o jogo político fica inteiramente falsificado, pois você não sabe mais quem é adversário e quem é aliado. O jogo político torna-se um espetáculo. Os problemas não são enfrentados, ao contrário, são embalsamados, como se em algum momento possam ser resolvidos com passes de mágica, como o pré-sal, por exemplo. Temos aqui um futuro de fantasia.

Oliveira – Concordo com essa idéia da política de fantasia, mas insisto na regressão. Embora pareça ter havido uma ampliação do espaço de inclusão de classes e grupos sociais na política, minha interpretação é diversa: houve uma exclusão. Tomemos o tema do populismo. Na literatura sociológica brasileira, ele foi prejudicado pelo fato de que sua emergência no País coincidiu com a ascensão do fascismo na Europa. Mas é um equívoco misturar populismo a fascismo, porque o fascismo é uma contra-revolução e o populismo, não: este representou uma inclusão autoritária das novas classes sociais na política. O populismo foi uma inclusão, sobretudo do novo operariado. Hoje nós estamos em um momento de desestruturação de classes: tanto o PT quanto o PSDB pensam apoiar-se em determinadas constelações de grupos sociais que estão em dissolução. O PT, na verdade, neste momento, exclui os trabalhadores da política.

Giannotti – Mas é um fenômeno internacional. Há a exclusão que vem pela forma de inclusão de um indivíduo isolado no jogo político. Você tem uma dissolução das lutas de classe e você tem, também, um indíviduo que passa a ser muito mais massa de manobra.

Oliveira – Por isso esses picos de popularidade do governo estão mesmo no horizonte, por causa desse fenômeno.

Giannotti – É preciso lembrar que não temos hoje uma separação gramsciana entre Estado e sociedade civil, pelo contrário. A sociedade civil hoje se tornou uma espécie de massa de manobra do jogo político.

O PT NEOLIBERAL

Giannotti – O movimento do PT em direção ao centro foi, no início, um tipo de manobra eleitoreira ou eleitoral. A Carta aos Brasileiros (documento conduzido pelo então coordenador da campanha de Lula à sucessão de FHC, Antônio Palocci, na qual o futuro presidente assumia o compromisso de não alterar a ordem econômica vigente no País ), feita no Banco Pactual, todo mundo sabe disso, foi uma forma de ganhar espaço para a eleição. E aquela política econômica foi mantida porque era eficaz, ao passo que uma política econômica ‘puramente petista’ não seria eficaz. Mas o fato de ser eficaz não significa que fosse a única possível… Enfim, a aliança com o capital financeiro fez com que a política econômica de Lula não apenas se mostrasse eficaz como também que seu governo se tornasse cada vez mais neoliberal. O governo de Lula é mais neoliberal do que o de Fernando Henrique.

Oliveira – O governo Lula é neoliberal. O de Fernando Henrique foi um governo de transição, de muitos riscos.

Giannotti – A única coisa que eles não conseguiram fazer, e os governos neoliberais da Europa fizeram, foi a privatização da Previdência. Mas noutro dia vi um levantamento de como foram os gastos do governo federal de janeiro até outubro. Se não me engano, tivemos R$ 160 bilhões para a Previdência; R$ 106 bilhões para programas sociais e custeio; R$ 102 bilhões para pessoal; e R$ 20 bilhões em investimentos. Se Obama fosse eleito presidente da República aqui, ele não poderia fazer nada do que pretende nos Estados Unidos, porque com R$ 20 bilhões de investimentos ninguém faz nada. Neoliberalismo não é liberalismo. Ele implica o desmonte da Previdência Social e em seguida um aporte de recursos para aquelas pessoas que ficarem fora do mercado. O que o neoliberalismo quer, acima de tudo, é o bom funcionamento do mercado.

Oliveira – É Milton Friedman (economista norte-americano, Nobel de 1976).

Giannotti – Isso. Você atua no mercado para que ele possa funcionar bem. Você atende o pobre, mas até chegar ao mercado, porque nessa hora ele entra na concorrência. Então, só por esses números de distribuição da arrecadação dá para concluir que este governo é profundamente neoliberal. Estamos assim: de um lado, travados pelo amortecimento do jogo político e, de outro, por um perfil de gastos que impede a construção de uma indústria nacional, de infra-estrutura, etc.

Oliveira – Mas este nó você não desata só através da economia. Este nó está na política.

Giannotti – Claro.

Oliveira – O nó está no arranjo das classes sociais, que se encontram numa desestruturação tremenda. Qual a diferença da social-democracia para o neoliberalismo? A diferença não se dá apenas na visão sobre Estado do bem-estar. A diferença está no fato de que esse Estado, num movimento de retroalimentação, pode vir a constituir grupos com capacidade de pautar a agenda do adversário. Isso é a política social-democrata: quando você tem uma economia como a da Holanda, em que 50% do PIB vão para os gastos sociais, você pauta a agenda do capital.

A DEMOCRACIA QUE QUEREMOS

Giannotti – Qual é o efeito da crise global na política brasileira? Se nós continuarmos com essa hegemonia lulista do encobrimento das diferenças, o Judiciário continuará legislando e o Executivo ficará, como o Legislativo, sujeito ao balcão de negócios. Mas se a crise conseguir arrebentar com essa “política da ilusão”, ou ao menos colocá-la em xeque, daí teremos uma situação interessante e é para isso – insisto – que nós devemos estar preparados. Seremos obrigados a discutir que país iremos começar a construir, a partir de uma nova situação, de um capitalismo que também estará se reestruturando. Noutro dia eu estava conversando lá no Cebrap sobre qual seria a saída política para a crise. Não acredito, por exemplo, que os Estados Unidos aceitarão qualquer intervenção em sua política relativa ao Banco Central. Alguma coisa, porém, terá de ser feita: não sei se reforço do FMI, se mais controle internacional. Mas que tipo de controle seria este? Tenho a impressão de que a tendência é a de que Estados nacionais fortificados estabeleçam determinados protocolos e fechem acordos. Acordos que vão durar até que um desses Estados se sinta mais forte para quebrá-los, como a história comprova, basta lembrar de Breton Woods.

Oliveira – É o “eterno enquanto dure” do poeta.

Giannotti – Que tipo de controle haverá nos Estados nacionais para que eles possam participar desses protocolos? E como é que vamos poder controlar os protocolos? A crise nos colocará diante de uma questão básica, a democracia. Teremos de pensar que tipo de democracia queremos no Brasil porque, se não o fizermos, não seremos parceiros internacionais. Se não tivermos uma democracia forte, em que os partidos consigam pautar os adversários, como diz você, cairemos no quê? Em fantasias do passado – como essa equivocada política Sul-Sul cujos resultados estamos vendo. Ou seja: a questão primordial hoje é como nós podemos melhorar nossa democracia. A meu ver, precisamos de uma democracia vigilante, atenta às diferenças do pensamento político que o lulismo veio apagar.

Oliveira – Sou menos otimista quanto aos protocolos internacionais. Ao mesmo tempo, entendo que se a crise não disparar novos processos, iremos para o reino das sombras.

Giannotti – Vamos para a guerra. Não a guerra aberta, conflagrada, mas a guerra pela sobrevivência.

Oliveira – Nesse aspecto o papel dos Estados Unidos é fundamental, a ponto de que um antiamericanismo tolo, hoje em dia, perde completamente o sentido. Porque a solução da crise passa por lá. Nós vimos o barateamento do custo de produção da força de trabalho norte-americana num processo em que foram inseridos no mercado de trabalho nada menos que 800 milhões de pessoas, vindas da China e Índia. Esse Obama está condenado a ser um novo Roosevelt. Vai ter de bater o martelo e abrir um vastíssimo programa de investimentos no próprio país, do contrário não quebrará essa equação em que os Estados Unidos passaram a depender da China.

Giannotti – Disso pode vir um capitalismo mais interessante, porque aquele que conhecíamos, e tal como conhecíamos, já não existe mais. Se isso ocorrer, sairemos com uma desvantagem enorme, porque não resolvemos nosso problema da educação. E aí a culpa é tanto do governo quanto da oposição. Aquela grande transformação que esperávamos não aconteceu nem no governo Fernando Henrique nem no governo Lula. Estamos atrasadíssimos. Se, através dessa nova forma de capitalismo, com suas novas regulações, não tivermos investimento em educação, ficaremos ainda mais atrasados em relação a esse novo mundo que vai surgir. Isso é muito grave. Não adianta a gente ter simplesmente planos. Chega de planos! Precisamos é de uma agenda. O que eu quero saber é, com os recursos atuais, o que nós vamos fazer hoje, amanhã, que metas vamos cumprir daqui a cinco anos, independentemente de quem será o presidente da República ou o governador. O País depende dessa agenda para sair do buraco, ou para não cair no buraco.

CRESCIMENTO EM XEQUE

Oliveira – Repare bem como esse crescimento das classes menos favorecidas, essa explosão do consumo tão falada neste ano é algo volátil. O governo baixou a alíquota de IPI dos automóveis e a venda de carros cresceu substancialmente. Claro que isso não se sustenta. Toda vez que você tem uma desregulação, o efeito imediato é fulminante. Aí você entra em êxtase. Mas, depois, os chamados mercados começam a se adaptar – e não há, de fato, um movimento de redistribuição de renda vigoroso capaz de segurar uma coisa dessas. O que tem sido nesses últimos anos a economia brasileira? O que explica esse grande consumo? De um lado, as commodities, que alavancaram o crescimento e, de outro, as privatizações.

Giannotti – E os programas sociais.

Oliveira – Não. O Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) já mediu isso. O efeito maior na redistribuição de renda é da seguridade social – não é o Bolsa-Família, nem o aumento do salário mínimo, o que não quer dizer que estes não sejam importantes. Agora, as privatizações, sim, liberaram um excedente financeiro formidável, que tornaram possível inclusive essa explosão do consumo apoiado em prestações a perder de vista.

INVESTIMENTOS E CIÊNCIA

Giannotti – O valor do PAC dentro do orçamento nacional é uma piada, mas é o que sustenta o projeto de sucessão do presidente Lula. Agora, uma coisa é o PAC e outra coisa é a ilusão do PAC.

Oliveira – Uma lista de investimentos é facílima de se fazer. Olhe para as cidades brasileiras. Elas viraram acampamentos! Assentamento do MST é melhor do que a periferia de São Paulo hoje. Está na cara que é preciso investir no sistema de transporte público, em todas as cidades brasileiras. O Ministério das Cidades está aí, mas não disse a que veio. O problema é transformar a lista numa agenda. Isso é crucial.

Giannotti – É crucial, mas outra vez esbarramos nesse véu da ilusão que cobriu o País sob o lulismo. Há uma enorme crença de que estamos caminhando bem e os problemas estão sendo resolvidos. E a crise nos joga diante de uma série de situações que não têm sido tocadas. Ou a crise nos leva a colocar o pé no chão ou viraremos de fato o “país da fantasia”. O país do futuro, no futuro.

Oliveira – Fico muito impressionado com essa euforia, por exemplo, em torno do pré-sal. Estamos eufóricos porque vamos nos tornar uma nova Arábia Saudita? Achamos realmente que a agenda do novo capitalismo vai ser pautado por isso? Me parece que o novo sistema não será pautado por quem tiver mais ferro ou mais petróleo, mas por quem dominar melhor as tecnologias.

Giannotti – Hoje não existe mais uma divisão básica entre ciência e tecnologia. Agora temos a tecnociência, um novo paradigma de uma ciência altamente ligada à tecnologia. Diante disso, precisamos de uma alta integração dos intelectuais, uma integração em rede. Temos no Brasil muitos núcleos importantes, mas sem integração.

Oliveira – O Programa do Genoma é, nesse sentido da integração, muito emblemático. Porque você só pode fazer essa ciência com a tecnologia mais avançada.

AÇÕES AFIRMATIVAS

Giannotti – Muito bem, precisamos fazer a inclusão social via educação no Brasil. É inadiável. Mas, isso implica estabelecer cotas raciais? Não. Uma coisa é pensar nas ações afirmativas que precisamos implementar neste País. Outra coisa é baixar o regime das cotas e achar que o ‘sistema’ se encarrega de resolver as conseqüências disso. Não é verdade. Resolveremos nossos problemas de acordo com nossas tradições. Se nós temos instituições que possam funcionar de maneira republicana, então a idéia de inclusão social tem de ser feita de tal forma que eu não seja obrigado a me identificar como preto, branco, italiano, indígena, etc. Peter Fry (antropólogo inglês radicado no Rio de Janeiro) tem toda a razão: não podemos racializar esse processo de inclusão. O caminho é fazer a inclusão pela educação, mas como isso está diretamente ligado à questão da pobreza, então façamos a partir da pobreza. Claro que há preconceito contra o negro no Brasil! Mas por que eu tenho que ensinar uma criança mulata a dizer “eu sou preta”? Por quê? Para quê? As ONGs no Brasil estão seguindo de tal forma os padrões americanos que tentam repetir aqui os problemas de raça dos EUA, problemas que nós não temos.

Oliveira – O equívoco da transposição do modelo americano começa pela razão demográfica. Não somos um país de minoria negra. Somos um país de maioria negra: entre negros e mulatos, estamos todos. É por isso que a visão republicana se impõe com mais força, Giannotti. Há que se fazer políticas para as maiorias. Fazer para as minorias pode nos levar a um viés perigoso, ou seja, não precisamos ficar medindo a porcentagem de sangue para saber se é negro ou branco. Agora, o problema que você aponta não é só decorrência das faltas de oportunidades de educação, mas também um problema de mercado de trabalho. Com toda essa tecnociência amalgamada pelo capital, o panorama é totalmente outro. A educação formal pode não servir para nada hoje em dia. Você pode contratar mão-de-obra com baixa alfabetização e tudo bem.

Giannotti – Acho o contrário. Você hoje mobiliza mão-de-obra que precisa de educação formal para ser lábil, para ler códigos.

Oliveira – Sim, mas só para ler códigos, sinais…

Giannotti – Isso já implica uma formação sofisticada.

Oliveira – Sofisticada, talvez, mas não significa que seja educação formal.

Giannotti – E vem agora essa estupidez de incluir filosofia e sociologia no currículo do ensino médio. Sou contra. Isso não passa de uma reserva de mercado para o filósofo, para o sociólogo, assim não dá. Às vezes chego a pensar que é preferível que os filósofos não dêem aula, porque a qualidade do que andam produzindo é baixíssima. Poderão até emburrecer os alunos.

LEGISLAÇÃO TRABALHISTA

Oliveira – Outra bobagem é essa história de rever as leis de trabalho. É um atentado, além de uma bobagem. A melhor ciência humana sabe perfeitamente que o ‘mercado’ é uma instituição. Por isso precisa de regulação. Aliás, esse foi um aspecto bem problemático da gestão tucana, na minha opinião – essa visão de que o mercado é livre, visão que acabou sendo inteiramente assimilada pelo PT… Veja bem, não acredito em regulação de mercado ad aeternum. As regulações são mecanismos tópicos. Agora, é estupidez pensar que, ao desregular o mercado, você cria novas oportunidades, porque não é assim que as coisas se passam, nós sabemos. Na verdade, o que nos falta são melhores mecanismos de inclusão social no sistema regulado. Desregular o mercado de trabalho agora, neste momento de crise, pode ser apropriado do ponto de vista imediato, mas pode causar uma devastação tremenda. Outra coisa: não há mais como falar em mercado de trabalho; temos de falar em mercados de trabalho, no plural.

Giannotti – É aí que eu quero entrar, provavelmente com uma visão mais nuançada do que a sua. Temos hoje uma multiplicidade dos mercados de trabalho. A despeito disso, somos regidos por uma legislação de 1930. Não é de hoje que especialistas em relações do trabalho têm dito que essa legislação apresenta problemas e a regulação precisa ser revista. Acontece que neste momento nós temos uma situação de crise e precisamos atravessá-la com um sistema de regulações atrasado, que tem a ver com um capitalismo que não existe mais. E agora? Não sei se o momento de flexibilizar é agora ou se já não perdemos tempo demais para modernizar a legislação. Concordo que mudar num momento de crise pode causar uma devastação social muito grande. Mas alguma negociação terá de ser feita.

Oliveira – Acho que estou falando algo diferente, Giannotti. Não penso que carecemos de menos regulação, ao contrário. Conheço uma moça, inteligente, bonita, contratada por uma loja de shopping center. Ela trabalha 12 horas por dia num ambiente que não parece trabalho. Dá um duro danado, mas parece diversão. Aliás, esta é uma característica do nosso tempo: o trabalho que não tem cara de trabalho. Então eu me pergunto: o que falta aí? Regulação, e não o contrário. Concordo com você que a nossa legislação trabalhista precisa ser modernizada, mas, dependendo do setor, talvez tenha que se intervir mais. E não menos.

GOVERNANDO O MAGMA

Oliveira – Se a tragédia do PT foi chegar ao poder com sua base social sendo erodida, a tragédia anterior, de Fernando Henrique, foi acreditar na desmontagem do bem-estar social. Fernando Henrique, um social-democrata, não poderia ter feito tal coisa – e eu sempre disse isso. Ele atirou no que viu e acertou no que não viu. Ou seja, mirou na pesada burocratização do Estado brasileiro e acabou derrubando os andaimes que escoravam o sistema do bem-estar social. Sobrou o quê? Sobrou esse magma que estamos vendo aí. Que andaimes ele retirou? Por exemplo, as estatais, que, aceitemos ou não, fizeram o capitalismo brasileiro. Daí veio Lula acreditando que ainda era possível governar com as ferramentas do bem-estar social. Danou-se. Não havia mais as ferramentas. Lula governa o magma.

Giannotti – Esse magma é algo que destrói a identidade, a solidariedade, o espírito republicano. Quando você vive uma modernidade que leva à massificação, na qual o Estado perde seus parâmetros, aí a coisa vira magma mesmo. Ou seja, quando o Estado deixa ir para o brejo uma das mais importantes instituições republicanas, a escola pública, é sinal de que estamos mal.

FUTEBOL E O SISTEMA DE ÍDOLOS

Giannotti – O que dizer dos jovens de baixa renda que tentam escapar para um futuro melhor através do esporte? O que é isso? O que mais me preocupa, quando me deparo com esses jovens sonhando com o estrelato nos campos, nas quadras, é ver como a família se engaja no projeto. É uma coisa esquisita até. Pouco antes da Olimpíada, precisei freqüentar um conhecido departamento de ortopedia para cuidar de um problema de saúde. Então pude travar contato com atletas que estavam machucados e faziam fisioterapia. A ansiedade daqueles jovens diante da possibilidade de não participar das provas e a pressão dos familiares sobre eles era uma coisa tremenda. O que esse ‘sistema de ídolos’ está produzindo neste País é menos um processo de ascensão social e mais um processo de desintegração dos laços sociais – incluindo os familiares, os escolares e mesmo os esportivos. Há inclusive recursos públicos sendo liberados para que o esporte entre nesse jogo destrutivo e desintegrador.

Oliveira – Veja o que acontece no futebol. Já foi uma tremenda expressão da identidade nacional, hoje não é mais. Com essa globalização toda, as diferenças entre as grandes equipes do mundo tornaram-se irrelevantes. A meu ver, hoje o melhor futebol do mundo é o inglês. E não mais o brasileiro ou o espanhol. Por quê? Porque nele corre a grana mais pesada. É isso: futebol virou uma empresa global como qualquer outra.

Giannotti – O que importa ressaltar é que a idéia da educação pelo esporte, aqui no Brasil, tornou-se perigosa. Pode ser socializadora, mas pode ser perversa também, dentro desse sistema de ídolos. O ídolo tem lá seus 15 minutos de celebridade. Mas o que se ganha de dinheiro nesses 15 minutos, hein? É uma coisa absurda. Marx lá trás já dizia: o capitalismo traz civilização e barbárie. Até hoje. O que nos cabe é reconhecer os momentos civilizatórios do capitalismo e nos afastar dos movimentos de barbárie.

CORRUPÇÃO

Giannotti – Como fica o homem público? Ah, virou marchand, num tempo em que a política foi depreciada em favor das negociações diretas. Quando falei, lá atrás, que há na política uma certa zona de amoralidade, onde negociações acontecem, quase me comeram. Mas é justamente nessa zona de indefinição que se cria o novo. Só que, em outros países, se o sujeito cruza a zona de amoralidade e parte para a corrupção, ele é punido. Aqui, não. O Congresso é o exemplo maior disso.

Oliveira – Ignácio Rangel (economista maranhense) já dizia que a corrupção é o condimento do capitalismo. O problema é quando o condimento se transforma no prato principal. Um pouco de corrupção sempre irá acontecer nessa zona cinzenta, pois ela está ali, na interface entre Estado e mercado. E, portanto, sendo estrutural, só pode ser controlada pela ação republicana. Agora, o que vemos hoje nas diferentes esferas de poder é um jogo de cumplicidades, feito para acabar em empate e dentro do qual a denúncia original se perde num buraco negro.

Giannotti- Tudo isso tem muito a ver com a falta de identidade dos partidos políticos. Quando tivemos o primeiro episódio do mensalão, e o PSDB, naquele momento, soava como arauto da moralidade pública, apareceu o caso Eduardo Azeredo (ex-governador de Minas pelo PSDB, acusado de operar esquema fraudulento de financiamento de campanha). A obrigação do PSDB ali era entregar o Azeredo, e não protegê-lo. Foi um erro. Então os dois partidos básicos no confronto político, o PT e o PSDB, acabaram se igualando como partidos mensaleiros. Vale retomar a história de Roma. Enquanto havia a república, controlava-se ou tentava-se controlar a corrupção. Quando veio o império, foi o descalabro total. Estamos talvez entrando numa fase imperial da corrupção brasileira, na qual ela não é sequer questionada. Isso, dentro de um sistema jurídico que prende por quase dois meses uma jovem pichadora de um saguão de exposições vazio, mas solta banqueiros corruptos depois de dois ou três dias.

(Ecodebate, 22/12/2008) publicado pelo IHU On-line, 21/12/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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