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Artigo

Povo Guarani, um grande Povo! Resistência e luta pela demarcação de suas terras, artigo de Roberto Antonio Liebgott

[Guarani people, a great people! Resistance and struggle for the demarcation of their land, article by Roberto Antonio Liebgott]

Nesta breve reflexão pretendo apresentar algumas das dificuldades, expectativas e reivindicações de comunidades do Povo Guarani que vivem no Rio Grande do Sul, de modo especial na região metropolitana de Porto Alegre. E a questão principal relaciona-se à luta pela terra, considerando que estas comunidades estão submetidas a uma vida de privações e desigualdades, resultante do confinamento em pequenas porções de terras às margens das estradas, em áreas compradas pelo Estado ou cedidas por particulares. Ressalto que este texto não pretende ser um estudo aprofundado sobre aspectos étnicos, culturais e religiosos deste povo, mas pretende vincular esta discussão cultural à incontestável necessidade política de garantia das terras, como condição primordial para assegurar plenamente os direitos deste povo indígena.

Os Guarani ocupam tradicionalmente as terras que abrangem partes do Rio Grande do Sul (Missões, Pampa, Planalto, Litoral), Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul e regiões da Argentina, Paraguai, Bolívia e Uruguai. Neste amplo território, ao longo dos séculos, eles foram perseguidos por colonizadores, caçados, escravizados, exilados e tiveram suas terras invadidas, saqueadas e ocupadas. Nesse processo a Igreja, a serviço dos estados da Espanha, Portugal e depois do próprio Brasil, procurou catequizá-los e torna-los “almas convertidas” e, ao mesmo tempo, “corpos dóceis” para o trabalho, nos moldes do projeto que então se estruturava. A base das relações com os povos indígenas sempre foi colonial, ou seja, sempre se indagou qual a utilidade destes povos e quais as melhores maneiras de explorar sua força produtiva e seus territórios.

A resistência do Povo Guarani às frentes de ocupação e colonização foi dramática. Milhares de pessoas acabaram assassinadas em guerras, epidemias, confrontos, perseguições, confinamentos religiosos e territoriais. No entanto, apesar dessa prolongada história de desrespeito e violências os Guarani mantém formas coletivas de vida e práticas culturais que os distinguem. Dispersam-se em núcleos familiares, formando pequenas comunidades por diferentes regiões, em contínuo movimento e ocupando de maneiras diversas seus territórios tradicionais. Se antigamente eles eram donos de toda a terra, gradativamente foram empurrados, com uso da violência, para pequenas áreas, mas isso não significa que os vínculos territoriais tenham sido desfeitos.

Passados séculos, os Guarani se fazem presentes e isso é visto como algo que e incomoda a ordem, que põe em questão a autoridade e a legitimidade daqueles que colonizaram as suas terras. A presença guarani parece incomodar também autoridades, políticos, intelectuais das universidades e, de maneira especial proprietários de grandes e pequenas áreas de terra. Isso porque este povo traz a perturbadora memória de um passado sangrento, mas principalmente porque, no presente, sem grandes alardes ou enfrentamentos diretos, eles lutam por justiça, direitos e dignidade. Eles produzem uma resistência cotidiana ao modelo de sociedade e de economia concebido e construído em estruturas humanas individualistas, excludentes, preconceituosas e egoístas. Permanece este Povo na contramão da sociedade capitalista a bradar, como o grito de Sepé Tiaraju: “alto lá, esta terra tem dono”, ela é de Nhanderu, é de todos os Guarani e deve servir para todos os filhos da terra e não ficar sob o domínio e a posse de poucos privilegiados. Atualmente as terras dos Guarani estão quase totalmente concentradas, loteadas, devastadas, ocupadas por empreendimentos diversos, tais como as grandes propriedades para o monocultivo de eucalipto, pinus, soja, arroz e/ou para a criação de parques, a exemplo do Parque Estadual Itapuã.

Sob uma perspectiva ainda colonial parece não fazer sentido a reivindicação de demarcação de terras para este povo porque isso não traria retorno econômico ou político. Talvez por isso, grande parte dos argumentos contrários à demarcação podem ser resumidos na pergunta: “O que ganharíamos com isso?” E, infelizmente, a resposta a esta interrogação vincula-se a uma lógica econômica e a um modelo unilateral de desenvolvimento, no qual a base de todo investimento é necessariamente sua lucratividade e nunca seu caráter social ou humano.

Onde se localizam as comunidades Guarani no Rio Grande do Sul

A maior concentração populacional Guarani (Mbyá, Ava-Katu-Eté ou Nhandeva-Xiripa) ocorre em cidades ou região próximas de Porto Alegre, missões e litoral. Nas missões, local em que se estruturou, até 1756, uma espécie de “cidade guaranítica” planejada pelos missionários jesuítas, que pretendiam a catequização deste povo, habitavam milhares de famílias e onde hoje vivem pouco mais de 37 famílias, ou uma população não muito superior a 200 pessoas, em uma área denominada de Nhacapetum (Ko’eju), comprada pelo Estado do Rio Grande do Sul com 236,33 hectares .

Na região de Caçapava do Sul, local das grandes batalhas entre os exércitos de Portugal e Espanha contra o povo Guarani, área denominada de Irapuã, vivem pelo menos 13 famílias num acampamento às margens da BR-290, sendo que reivindicam a demarcação de suas terras há mais de 30 anos e a Funai nada faz para assegurar este direito.

Outra região que foi de ocupação Guarani hoje se constitui em reserva ambiental denominada de Taim (Ita’y). No momento a área não está ocupada por famílias Guarani. A Funai realizou levantamentos preliminares para identificar se ali se constitui em terra deste povo.

Em Pelotas, também às margens de uma estrada, localiza-se a área denominada de Kapi’i Ovy, onde atualmente residem algumas famílias que comercializam seus artesanatos e cestarias.

Na região de Camaquã existem algumas áreas de ocupação tradicional Guarani, que são a Mata São Lourenço, Pacheca (Ygua Porã), Água Grande (Ka’amirindy), Águas Brancas (Velhaco). Destas áreas, apenas Pacheca (Ygua Porã) foi demarcada pela Funai, com pouco mais de 1.852 hectares , onde vivem cerca de 15 famílias. Água Grande (Ka’amirindy) foi adquirida pelo Estado do Rio Grande do Sul e nela vivem 10 famílias em menos de 165 hectares . A área de Águas Brancas foi delimitada pela Funai com 115 hectares e no momento não há famílias ocupando a referida área que se constitui num grande banhado.

Em Salto Grande do Jacuí foi demarcada uma área de 234 hectares e onde vivem hoje 30 famílias. A área é pobre em recursos ambientais e o rio, do mesmo nome, que cortava a área indígena está morto em função de uma hidrelétrica.

Próximo ao Salto do Jacuí está situada a área Estrela Velha (Itaixy). Esta é uma terra de 70 hectares , onde vivem 10 famílias e que foi destinada aos Guarani pela Companhia de Energia Elétrica do Rio Grande do Sul, no entanto a referida terra está com o procedimento demarcatório em curso, através de GT da Funai.

Próximo a Porto Alegre, existem vários acampamentos e terras reivindicadas pelos Guarani como sendo de ocupação tradicional. Às margens da BR-116, nos municípios de Barra do Ribeiro e Guaíba, há três grandes acampamentos denominados de Passo da Estância, Passo Grande ou Flor do Campo (Nhu Poty) e Petim (Arasaty). Próximo a eles, o Estado do Rio Grande do Sul adquiriu uma área de 202 hectares que foi denominada de Coxilha da Cruz ( Tekoá Porã). Nesta terra, ainda não totalmente regularizada, habitam mais de 20 famílias e nos acampamentos moram mais de 25 famílias. A Funai se comprometeu em criar grupos de trabalho para proceder a identificação e demarcação destas terras, incluindo uma área reivindicada nos municípios de Guaíba e Eldorado do Sul, denominada de Arroio do Conde.

Na cidade de Porto Alegre e nos municípios de Viamão e Capivari estão ocupadas as terras de Lomba do Pinheiro (Anhetengua) – onde vivem 15 famílias, ainda não regularizada e com menos de 10 hectares ; Lami (Pindó Poty) – acampamento onde vivem 08 famílias em menos de dois hectares; Canta Galo (jataity) – homologada com 286 hectares e onde vivem mais de 30 famílias; Itapuã (Pindo Mirim) – não demarcada, mas que foi constituído GT pela Funai para proceder sua identificação, englobando nesta demarcação as áreas da Ponta da Formiga e Morro do Coco, cerca de 15 famílias vivem nas proximidades da terra tradicional em um assentamento de 24 hectares feito pelo Estado do Rio Grande do Sul; área da Estiva (Nhundy) – localizada nas margens da RS-040 em Águas Claras, município de Viamão, área de 7 hectares cedida pelo município e onde vivem mais de 20 famílias; Capivari (Porãi) – acampamento situado no município de mesmo nome onde vivem mais de 12 famílias; Granja Vargas (Yryapu), área adquirida pelo Estado do Rio Grande do Sul de 43 hectares e onde vivem 10 famílias.

Mais próximo ao litoral estão demarcadas as áreas Barra do Ouro, com mais de 2.266 hectares e onde, pelas condições ambientais, distâncias, clima e relevo, vivem poucas famílias; Varzinha – terra demarcada com 795 hectares e onde vivem 15 famílias; Osório – área adquirida pela Funai, como compensação mitigadora em função da duplicação da BR-101, onde vivem 12 famílias; Riozinho (Itapoty) – área adquirida pelo Estado com 12 hectares e onde vivem 07 famílias; Torres – área adquirida pela Funai com 94 hectares em função de indenização pela duplicação da BR-101 e onde vivem 08 famílias.

Algumas dezenas de famílias habitam terras demarcadas pela Funai para o Povo Kaingang como é o caso de Guarita onde vivem pelo menos 15 famílias de Guarani, em Planalto onde vivem mais de 30 famílias de Guarani, na localidade denominada de Passo Feio e M`baraká Miri, e na área Guabiroba, no município de Benjamin Constant, vivem 08 famílias. Encontra-se com o procedimento de demarcação em curso a terra indígena Mato Preto, no município de Getúlio Vargas, com mais 4.236 hectares e onde vivem 15 famílias Guarani.

Vale ressaltar que tanto as terras demarcadas como as adquiridas pelo Estado ou através de acordos e compensações, em função da duplicação da BR 101, são insuficientes e na sua maioria com espaços ambientais degradados, não existindo nestas áreas nenhuma perspectiva de futuro para as comunidades. Portanto, é necessário que a Funai proceda os estudos, através de GTs, para a identificação, delimitação e demarcação das terras do Povo Guarani no Rio Grande do Sul.

A realidade: Como vivem as famílias Guarani e suas principais reivindicações!

A “busca da terra sem mal” é uma constante na vida dos Guarani. Seguem sua trajetória histórica de resistência e luta, acampados entre as cercas das fazendas e as estradas; andando nas proximidades das grandes cidades; percorrendo caminhos entre um acampamento e outro, entre uma terra demarcada e as tantas por eles reivindicadas; confeccionando seus artesanatos e comercializando-os às margens das rodovias ou nos centros urbanos; coletando matéria prima em “propriedades privadas” para seus trabalhos manuais ou para manutenção de seus barracos de beira de estrada; plantando pequenas roças de milho, batata, mandioca, melancia, abóbora, amendoim; criando pequenos animais como porco, galinha, pato.
Nestes pequenos espaços de terras que lhes restaram, eles vivenciam sua cultura, suas crenças, língua e tradições, em íntima relação com o sagrado, com o que lhes dá esperança de viver, apesar de toda uma existência de sofrimento e perdas. Resistem, apesar de todas as influências e imposições da sociedade dominante, de aparatos de Estado, das leis e de uma cultura excludente.

Eles vão tecendo laços de parentesco e entre-ajuda, convivem, partilham, sonham, protegem uns aos outros, mantém em segredo seus mais sagrados conhecimentos e crenças, como fonte de vida futura, ritualizando acontecimentos cotidianos. Conhecem um Deus que lhes quer sempre Guarani, um Deus que, através deles, pretende mostrar ao mundo que é possível pensar sociedades alternativas a esta que domina e oprime, a sociedade dos juruá (dos brancos). Com suas formas de viver e de pensar, os Guarani colocam em questão esta nossa sociedade, intolerante ao diferente, fundada no desejo de concentração de bens materiais, nossa cultura pensada para fortalecer o individualismo nas relações entre pessoas, nas relações econômicas, políticas, jurídicas, religiosas e educacionais.

Entre as dificuldades enfrentadas pelas comunidades Guarani, destacam-se as seguintes: eles ocupam apenas pequenas porções de terras, insuficientes até mesmo para a subsistência alimentar, sem água potável, sem saneamento básico e afetados por rios e lagos contaminados e poluídos. Dependem, para a sua alimentação, essencialmente de doações e cestas básicas, quando estas são fornecidas pelo Estado ou pelos municípios e sofrem com a omissão e ausência dos órgãos de assistência federal. A eles são destinadas políticas públicas fundamentadas no assistencialismo e não nos direitos constitucionais, sendo a política fundiária embasada numa perspectiva compensatória e restritiva de seus direitos territoriais e culturais. Exemplo disso é a política paliativa de compra de terras, ao invés de demarcação de terras conforme prevê a Constituição Federal. Sofrem também a ingerência de departamentos e secretarias do Estado do Rio Grande do Sul nas discussões sobre demarcação de suas terras e de políticas diferenciadas.

Alguns segmentos da sociedade civil, de universidades e também funcionários do Estado fomentam a idéia de que os Guarani podem viver em pequenas áreas, bastando, para isso, o estabelecimento de acordos com proprietários de terras próximas aos locais onde eles estão assentados ou acampados, possibilitando-lhes o uso dos recursos existentes nas terras destes proprietários.

O mesmo pretendem com relação ao uso de áreas decretadas como parques ou reservas ambientais, ou seja, ao invés do reconhecimento de que estes parques se sobrepõem às terras indígenas, o que se propõem é a concessão para os Guarani utilizarem os espaços de “preservação ambiental”, mediante acordos estabelecidos sob as regras de nossa sociedade, em terras que tradicionalmente lhes pertencem. Isso porque, para determinados segmentos da sociedade os Guarani não precisam de terra demarcada e sim de convenientes pactos que não coloquem em questão as bases da propriedade privada da terra. Poderíamos perguntar para quem estes acordos são mais convenientes, dado que não se nega a tradicionalidade da ocupação guarani nesta região.

Na contramão dessas soluções mais “confortáveis”, as comunidades reivindicam hoje: demarcação das terras de ocupação tradicional; assistência planejada, digna, diferenciada; participação nas discussões sobre as políticas públicas; cuidado com o meio ambiente; respeito para com sua cultura e suas terras; espaços públicos para comercialização de seus produtos e artesanatos.

Os Guarani, apesar de todas as ingerências, consolidam movimentos de luta pelo direito de terem, dentro de seu grande território tradicional, terras demarcadas pelo poder público. Não pretendem que o Estado lhes faça concessões ou favores, querem apenas que seus direitos constitucionais e originários sejam devidamente assegurados. Aguardam que o poder público demarque as áreas por eles apontadas como importantes para seu futuro. No entanto, a morosidade, a negligência e as promessas não cumpridas têm sido a tônica do órgão indigenista nos últimos anos.

Como superar os obstáculos impostos por um país e por uma sociedade que cria leis que não são cumpridas e que cria mecanismos para interpretar tais leis tendo em vista o benefício de alguns à custa da miséria e do sofrimento da ampla maioria que vive sem terra, sem água, sem emprego, sem lazer, sem abrigo? Como lidar com os poderes de Estado que desrespeitam a dignidade das pessoas, que não promovem assistência adequada em saúde, educação, que não asseguram o direito a diferença como a Constituição Federal preconiza? Como os Guarani podem confiar em leis, pessoas, estruturas políticas que promovem a destruição das terras, dos rios, das matas e das culturas diferentes? Como se relacionar com uma sociedade que trata mal as crianças e os velhos, que não têm respeito ao Deus da vida? Estas perguntas os Guarani fazem insistentemente na relação que estabelecem com os juruá.

Estas indagações mostram que o problema que temos a enfrentar é muito mais profundo do que a demarcação (ou não) das terras indígenas. Trata-se de pensarmos qual mundo, qual sociedade, qual homem pretendemos constituir, e de definirmos quais valores consideramos indispensáveis para nortear as relações entre as pessoas e as diferentes culturas, mediando nossas escolhas por valores econômicos ou por valores sociais e humanos.

Roberto Antonio Liebgott, membro da Equipe do Cimi Sul – Porto Alegre e Vice-Presidente do Cimi.

(http://www.EcoDebate.com.br, 04/11/2008) publicado pelo IHU On-line, 03/11/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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