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Programa apoiado pelo governo francês compara favelas do Brasil e da Índia


Um grupo internacional organizado por pesquisadores da França está fazendo um amplo estudo comparativo sobre os processos envolvidos com a urbanização e a regularização fundiária em favelas no Brasil e na Índia.

Iniciado em 2007 e com conclusão prevista para o fim de 2009, o programa de pesquisa, financiado pela Agência Nacional da Pesquisa Científica (ANR, na sigla em francês), organizou em São Paulo, na semana passada, o seminário “Políticas urbanas, territórios e exclusão social: Índia-Brasil, uma perspectiva comparativa”. O evento teve apoio do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP). Por Fábio de Castro, da Agência FAPESP .

O programa pretende utilizar o método comparativo para compreender melhor os processos e mecanismos subjacentes das ocupações ilegais do espaço urbano e analisar os diferentes desafios e soluções encontradas em cada país.

De acordo com um dos coordenadores, Hervé Théry, do Centro Nacional da Pesquisa Científica (CNRS, na sigla em francês) e professor convidado do Departamento de Geografia da USP, os estudos têm foco em dois eixos principais: o tratamento dado às favelas pelo poder público e a pressão das ocupações sobre as florestas periurbanas.

“Realizamos um primeiro encontro em Nova Déli, na Índia, em janeiro, e agora estamos iniciando a confrontação dos trabalhos de campo realizados nos dois países, a fim de iniciar uma comparação sistemática. Na conclusão do programa, no fim do ano que vem, teremos um colóquio em Paris para estabelecer a análise de fato integrada e comparativa dos casos”, disse Théry à Agência FAPESP.

Segundo ele, as comparações se concentram principalmente nos exemplos de Mumbai e de São Paulo, considerados bastante semelhantes, além de Nova Déli e Rio de Janeiro. Cerca de 20 pesquisadores participam do programa. Com abordagem interdisciplinar, o grupo é formado principalmente por geógrafos, além de antropólogos, economistas e sociólogos.

“É um princípio filosófico e científico francês que a luz nasce da comparação. Acreditamos que essa metodologia seja importante para compreender as especificidades de processos complexos e os mecanismos subjacentes da exclusão urbana. Embora as últimas favelas da França tenham sido extintas na década de 1970, o país ainda tem grandes problemas com bairros periféricos”, disse Théry, que está radicado no Brasil há 35 anos.

Processos comparados

Um dos participantes do programa, Nicolas Bautes, pesquisador da Universidade de Caen, na França, explica que as comparações são feitas em diferentes níveis: entre Brasil e Índia, mas também entre as metrópoles de cada país. Segundo ele, mais do que comparar territórios, o grupo pretende cotejar processos no âmbito da urbanização de favelas e da regularização fundiária.

“Estamos desenvolvendo uma metodologia com critérios que permitam dar sentido às comparações. A idéia não é comparar cidades e sim os processos que ocorrem no âmbito da intervenção pública em favelas, identificando processos similares em diferentes cidades. Focamos a atenção na ação dos governos municipais, nas dinâmicas locais e nas forças que atuam em diferentes locais dessas cidades”, disse Bautes.

O trabalho, segundo ele, seguiu um processo dedutivo: partindo de um conjunto de hipóteses, os pesquisadores foram a campo realizar entrevistas semidiretivas com os envolvidos nos processos. “Com os dados, identificamos uma série de processos e agora voltamos à metodologia para avaliar se os critérios das comparações fazem sentido”, explicou Bautes.

Mesmo quando se observam as situações de metrópoles de um mesmo país, segundo ele, as diferenças são gritantes. “São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, têm dinâmicas e sociedades muito diferentes, com desafios bem distintos. Mas vimos que foi muito rica a comparação de projetos públicos realizados na favela carioca da Rocinha e na paulistana de Paraisópolis”, disse.

Segundo Bautes, os pesquisadores avaliaram que o projeto público de urbanização da Rocinha, que envolve recursos federais, apresenta grandes dificuldades de execução por envolver diferentes níveis de poder.

“Quando o poder da prefeitura atua em Paraisópolis unilateralmente, estimulando a participação da população, os projetos fluem melhor. É uma questão de governança: quanto mais complexa é a dinâmica dos atores, mais ambíguo se torna o projeto resultante”, afirmou o geógrafo, que é formado na Universidade de Paris 7 e fez pós-doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Um fator que chamou a atenção dos pesquisadores foi o paradoxal sucesso de iniciativas de mobilização social nos locais mais esquecidos pelas políticas públicas. “Quando a situação é mais complexa, há um envolvimento mais forte e, quando se trata de uma comunidade pequena, os líderes comunitários têm maior capacidade de gerenciar os problemas”, afirmou Bautes.

Na comparação com os casos indianos, os pesquisadores identificaram que há uma tentativa dos poderes públicos de desenvolver maneiras padronizadas de lidar com os problemas das favelas.

“A princípio achamos que não há uma maneira normativa para trabalhar com favelas. Uma hipótese é que, como se trata de preocupações globais, as soluções acabam sendo padronizadas e ‘vendidas’ para outras metrópoles. O Brasil, por exemplo, tem tentado adaptar soluções da Colômbia para lidar com áreas de risco. Queremos entender como as especificidades locais são tratadas nessa tentativa de construir um padrão de ação”, disse.

Outro aspecto de destaque é a grande diferença de densidade populacional dos dois países. Para os pesquisadores que trabalham em Mumbai, o problema das favelas de São Paulo pode até não parecer tão grave.

“A situação do Brasil é aparentemente muito melhor, porque o Estado está tomando atitudes. Mas os problemas estruturais são muito diferentes. A Índia não tem a mesma a história brasileira de intervenção estatal. Lá, a sociedade é que toma a dianteira das ações públicas. O representante da prefeitura é antes de tudo o representante de uma casta, de um grupo social”, apontou Bautes.

Florestas ocupadas

Além das ações de urbanização das favelas, os pesquisadores estão estudando a dinâmica do território favelado sob a perspectiva do meio ambiente, avaliando a ocupação das florestas nos limites urbanos. De acordo com Hervé Théry, que trabalha nessa vertente, no Brasil os trabalhos de campo foram realizados em São Paulo, na floresta da Cantareira, ao norte, e na área de proteção ambiental Capivari-Monos, ao sul. No Rio de Janeiro, o foco é a floresta da Tijuca. Na Índia, a situação avaliada se limita a Mumbai, já que Nova Déli não tem florestas.

“Constatamos que, além de ser um tema preocupante pelo consumo do espaço verde, é um processo social complexo. Quem desmata a floresta na Cantareira e faz barracos em áreas instáveis, inundáveis, em declive, faz isso por necessidade. Há um grande conflito entre a luta dos poderes públicos para manter um pouco de ordem na cidade e a luta do movimento social para achar um local decente para morar”, disse.

A questão da densidade populacional é marcante também em relação às ocupações nas florestas, segundo Théry. “Quando contamos aos pesquisadores que trabalham na Índia que o problema das ocupações ilegais na floresta da Tijuca envolvia uma centena de famílias, eles quase caíram na gargalhada. No parque que sofre com a ocupação ilegal em Mumbai há cerca de 500 mil pessoas.”

No Brasil o processo de urbanização é um fato consumado, com mais de 80% da população morando em cidades. Enquanto isso, na Índia, uma cidade como Mumbai tem 20 milhões de habitantes em um país cuja taxa de urbanização é de apenas 30%. “Podemos prever que eles poderão ter cidades de 60 milhões de habitantes dentro de alguns anos. E a ocupação ocorrerá especialmente nessas áreas de floretas, consideradas ‘vazias’ por quem não tem onde morar”, disse Théry.

Apesar de todas as diferenças, o pesquisador ressalta que as políticas públicas seguem caminhos semelhantes. “Muito do que poderia ser tentando já foi, com soluções similares. Mesmo sendo culturas diferentes, os remédios adotados convergem. Atualmente, nos dois países há uma ênfase na participação das comunidades e, em ambos os casos, as soluções autoritárias foram deixadas para trás”, disse.

[EcoDebate, 05/09/2008]