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De costas para Rondon. O ataque de ideólogos militares à demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol


Rondon no topo do monte Roraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela e a Guiana Inglesa, com as bandeiras dos três países, e acompanhado de índios macuxis, em 27 de outubro de 1927. Imagem do Jornal da Unicamp.

O ataque de certos ideólogos militares à demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol afronta o pensamento e obra do marechal. Ele valorizava a existência de Nações Autônomas indígenas; não a mera assimilação de indivíduos ao mercado de trabalho, como querem agora generais e empresários. A opinião é do antropólogo Ricardo Cavalcanti-Schiel, mestre e doutor pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), atualmente vinculado ao Laboratoire d’Anthropologie Sociale do Collège de France/École des Hautes Études en Sciences Sociales. O artigo encontra-se no sítio do Le Monde Diplomatique Brasil, 23-08-2008.

Eis o artigo.

Em meados de abril último, o atual Comandante Militar da Amazônia, General Augusto Heleno Ribeiro Pereira, proferiu no Clube Militar, no Rio de Janeiro, uma palestra em que associou as terras indígenas das fronteiras amazônicas a um risco iminente à soberania nacional sobre esses territórios. O seminário, promovido por aquele clube, levava o curioso título “Brasil, ameaças a sua soberania”, e, nele, as vozes nacionalistas conjugavam-se com vozes do melhor calibre conservador, como a do advogado Ives Gandra Martins, membro da organização católica ultra-conservadora Opus Dei. O resultado pretendia ser um contraponto entre denúncia e alarmismo, já bem insinuado pelo título do evento.

Frente à disputa judicial que se desdobra em torno da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, na fronteira nordeste de Roraima, as palavras do General Heleno, condenando a política indigenista brasileira como “lamentável e caótica”, causaram forte impacto jornalístico. Como desdobramento, outras vozes, militares e conservadoras, no mesmo tom, clamaram atenção. O tema no qual se harmonizam essas vozes pode ser sintetizado como o do fantasma retórico de uma nova e iminente ameaça à “segurança nacional”: a da “balcanização” étnica, capitaneada por ONGs internacionais, por meio da instrumentalização dos povos indígenas brasileiros, que poderia até mesmo desembocar numa perigosa e incontrolável catarata de processos “secessionais” do território nacional.

Assim, no frigir dos ovos da polêmica lançada pelo general Heleno, um ex-presidente do mesmo Clube Militar e também ex-Comandante Militar da Amazônia, o general Luiz Gonzaga Schroeder Lessa, um reconhecido e devotado nacionalista (mas não por isso menos espalhafatoso), publica uma nota no website do clube. Nesta, aponta como culminação da presumida conspiração internacional, a recente Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, aprovada pela ONU em 13 de setembro passado, com o voto favorável do Brasil. “A se confirmar essa tendência, teremos retalhado o Brasil em 227 nações, com 180 diferentes idiomas. O crime contra o Brasil e sua soberania e unidade territorial terá sido perpetrado”, diz o documento.

Para o general Lessa, o perigo está em que “a longa e polêmica Declaração é um instrumento internacional que modifica a ênfase nos direitos individuais e, pela primeira vez, valoriza os ’direitos humanos coletivos’ e atribui às comunidades indígenas a posse do território onde vivem e dos seus recursos naturais, bem como o direito coletivo à autonomia”.

O apelo fácil de um certo discurso nacionalista e o entroncamento da veemente condenação à política indigenista, feita pelo atual Comandante Militar da Amazônia, com a generalidade de um discurso anti-indígena, sustentado pela teia de interesses econômicos (sobretudo fundiários) na região, seguramente garantem, para essa retórica da nova “ameaça à segurança nacional”, um nicho regional de apoio político. No entanto, e a despeito da imediata dimensão localista dessas alianças implícitas, é razoavelmente evidente que o coro das manifestações críticas à “política indigenista”, almeja alçar a “questão indígena” a um novo patamar de inquietação ideológica, modulado com o ressoar público (e sobretudo midiático) de uma certa “preocupação amazônica”, particularmente audível nas semanas que se seguiram ao estardalhaço promovido pelo general Heleno.

Os novos acordes dessa nem tão nova melodia parecem soar agora na conjunção da retórica da “segurança nacional” com um possível (ou talvez mesmo, iminente) debate sobre alguns termos de regulação jurídica, que incidem sobre temas (a propósito dos quais pesa uma considerável disputa discursiva) que rondam a atualidade não apenas nacional como também internacional. Temas como multiculturalismo, diversidade, etnicidade, direitos coletivos, enfim, o estatuto sócio-jurídico não mais de um ideal (ou pressuposto) republicano da “igualdade”, mas sim daquele hoje alentado por uma certa agenda pós-moderna: o da “diferença”.

De outra parte, a específica articulação de instâncias políticas que sustentam a lógica discursiva daquela pretendida condenação lançada pelo general Heleno à política indigenista brasileira não apenas traz à tona o rastro de um movimento histórico que pode ser remontado às alianças políticas gestadas durante o projeto de colonização da Amazônia do assim chamado “regime militar” (expresso em seu lema “integrar para não entregar”), como traz à tona também uma tensão que perpassa a história da própria política indigenista brasileira no século 20.

Desse modo, a contundente crítica do general Heleno a essa política é, em termos históricos, tanto sintomática – se consideramos um período mais recente – quanto anacrônica – se consideramos uma já larga tradição constituída pelo Estado brasileiro (com a presença fundacional, inclusive, dos militares), a respeito do trato com os povos indígenas.

Em termos gerais, o século 20 parece ter caracterizado um novo padrão genérico de relações dos poderes públicos brasileiros com os povos indígenas. Se nos períodos históricos precedentes essas relações ficavam tão apenas determinadas, de forma circunstancial, pelo contato dos agentes colonizadores com os índios, o século passado deu lugar ao conceito de “proteção”, como lastro para uma política indigenista de Estado. Ambígua em seu conteúdo, oscilando entre a tutela cerceadora e a promoção da autonomia relativa, a lógica da proteção significou, em termos genéricos, o estabelecimento de uma relação direta, necessária e institucionalizada entre o Estado nacional e as populações indígenas.

Como uma nova forma de racionalidade administrativa do Estado, sua inspiração emanou do positivismo que embebeu a instituição militar e a tornou avalista de novas expectativas sobre a nacionalidade, com as quais a recente República ingressou no século 20. Do mesmo modo, seu mentor, tanto intelectual quanto “espiritual”, foi também um militar, o futuro marechal Rondon, encarregado de alcançar e já àquela época também “integrar”, através das novas tecnologias de comunicação (a saber, o telégrafo) as longínquas fronteiras do extremo oeste do país, onde a presença pioneira do Estado tinha que se haver com a presença dos “silvícolas”.

Dessa forma, o modelo rondoniano da proteção implicava, antes de tudo, em uma proteção “nacional”, que tomava as populações indígenas como parte de um patrimônio comum da nacionalidade, que devia ser integrado no (e pelo) espaço político do Estado Nacional, a despeito do (e quase sempre contra o) particularismo dos interesses das oligarquias regionais. Não por acaso, os termos com os quais o próprio Rondon emoldurou o sentido dessas relações, já em 1910, quando da fundação do primeiro órgão indigenista, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), sintetizavam uma paridade de estatuto entre comunidades indígenas e nacionalidade particularmente significativa, já seja até mesmo para os termos hoje tão caros às preocupações de alguns generais com a “segurança nacional”.

No mesmo momento da criação do Serviço de Proteção ao Índio, Rondon, em uma de suas cartas, após argumentar que uma descentralização federativa das incumbências relacionadas à proteção “aqui resultaria em extermínio, ali [n]a catequese forçada, teológica ou metafísica, e mais alem [n]o abandono”, conclui que: “os índios não devem ser tratados como propriedade do Estado dentro de cujos limites ficam seus territórios, mas como Nações Autônomas, com as quais queremos estabelecer relações de amizade”.

Se a lógica que ordena o princípio indigenista da proteção supõe uma relação, no fim das contas conformada como aliança implícita, entre o Estado Nacional e os seus “protegidos”, os povos indígenas, contra os interesses locais da exploração econômica irracional e do usufruto, é notório também que, historicamente, não apenas variaram suas escalas como também suas contingências políticas. A mais importante das mudanças de escala foi, com certeza, o advento histórico de criação do Parque Indígena do Xingu.

Patrocinado pela iniciativa dos irmãos Villas Bôas, que, para isso, conquistaram o apoio do ainda general Rondon e de uma aliança de atores sociais (jornalistas, antropólogos e militares da FAB, entre outros), proposto em 1952 e tornado efetivo em 1961, o novo parque, criado à semelhança dos parques nacionais de preservação natural (uma invenção norte-americana da segunda metade do século 19), destinou aos índios um extenso território, reconhecido como habitat social, que seria preservado como um território cultural, independente da mera função de subsistência material, como se reconhecia antes.

É essa concepção que foi consagrada pela Constituição de 1988, reconhecendo aos povos indígenas o direito a um território destinado à sua plena reprodução cultural, no qual se inserem seus marcos de memória e as referências espaciais culturalmente relevantes para o seu sentido de existência.

De outra parte, as contingências políticas também variaram, a ponto de produzir o que se pode chamar de “proteção ambígua”, operada, não obstante, a partir dos termos e princípio da lógica da proteção, e fazendo uso dos mecanismos institucionais criados sob seu abrigo. A década de 70 do século 20 representa provavelmente a culminação dessas “ambigüidades”. Ela se deu exatamente por ocasião da maior intensificação, promovida pelo Estado Nacional, e no contexto de um regime político autoritário, da expansão da fronteira agrícola e da exploração econômica, sob a forma do extrativismo empresarial ilimitado (e, por conseqüência, social e ambientalmente descontrolado) da Amazônia.

A proteção ambígua pretendeu se justificar pela perspectiva assimilacionista, na qual o ideal a se perseguir é a incorporação dos índios como indivíduos avulsos a uma nacionalidade genérica, meramente abstrata; é a perspectiva pela qual a condição indígena é não mais que provisória; o sentido de mundo dessas coletividades humanas, descartável; a “cultura indígena”, enfim, e fazendo uso dos termos do então ministro do Exército nos albores da Nova República, “não é respeitável”.

Tudo o que importa, para essa conquista amazônica pensada pela geopolítica da segurança nacional, é a ocupação predatória do espaço, a apropriação selvagem da riqueza natural e a redução dos índios à estrita condição de mão-de-obra (igualmente apropriável). A noção rondoniana da comunidade, logicamente subjacente na designação que o marechal fizera aos povos indígenas como “nações” (pois aqui a terminologia é menos relevante que as elações lógicas), perde toda sua substância. O indigenismo suposto pela tradição militar autoritária de forma alguma filia-se ao legado rondoniano.

Mais do que a referência um tanto automática ao contexto político de uma época, a designação dessa tradição militar como autoritária é também compreensível no contexto de uma lógica política que, ao operar segundo a racionalidade instrumental dos interesses do Estado (justificados como “interesses nacionais”), descarta a complexidade social. Essa lógica pré-determina o mundo a ser visto e a forma como ele deve ser, literalmente (inclusive nos termos da semântica militar), “enquadrado”. Não foi casualidade que toda a justificação técnica que o general Heleno ofereceu, quando da sua cabal desqualificação da política indigenista brasileira (essa sim, rondoniana), não foi outra que a eificação fenomênica encarnada na fórmula retórica “é só ir lá para ver”. É claro que esse mundo “visto” pelo general já está pré-determinado (ou viciado) por uma mirada atavicamente obtusa.

O problema maior do pensamento militar brasileiro contemporâneo, condicionado ainda pela visão estratégica canhestra da “segurança nacional”, continua sendo, sem dúvida, a sua profunda ignorância do mundo social. Nisso, os militares não avançaram um centímetro desde os tempos da ditadura. Não é casualidade que o “indigenismo” dos militares reitere, para o caso atual do embate de interesses em torno da demarcação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, em Roraima, os mesmos argumentos sobre a “ameaça à soberania” (que as terras indígenas representariam) que já haviam empunhado à época do projeto Calha Norte e do debate em torno da demarcação da Terra Yanomami, duas décadas atrás.

Na verdade, para além da mera especulação, das miragens e dos fantasmas, só o que resta como base objetiva, para que, a partir dela, os renovados ideólogos militares possam vislumbrar uma “ameaça” à soberania nacional é, como o demonstra o horror manifestado pelo general Luiz Gonzaga Schroeder Lessa à Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, da ONU, o reconhecimento de uma coletividade amparada legalmente como tal, como se toda e qualquer nacionalidade não pudesse abrigar mais que a indivíduos, redutíveis à condição mercadológica de mão-de-obra. O espantalho dos direitos coletivos é provavelmente muito próximo ao fantasma do comunismo. Compreende-se que para alguns militares isso pareça ideologicamente ameaçador. Daí que constitua uma ameaça à soberania nacional, não deixa de ser uma enorme miopia política, tão característica, aliás, da tradição militar autoritária.

Essas considerações incidem, assim, irremediavelmente, sobre um debate contemporâneo que se desdobra sob a égide conceitual da diferença no espaço social. O que elas nos sugerem também é que não se trata de fazer simplesmente um elogio genérico à diferença e a uma diversidade retórica, mas de se ponderar sobre o estatuto dessa diferença, ou seja, sobre o que ela incide, a partir de quais critérios e segundo qual regime. Se a diferença cultural e a especificidade de uma memória social — que subsidiam, em último termo, o reconhecimento dos povos indígenas — fundamentam-se na partilha coletiva de um sentido de mundo, só há razão, portanto, para falar de coisa como “direitos étnicos” precisamente se são assumidos como direitos coletivos, irredutíveis ao mero usufruto individualista (como, do contrário, certa tradição liberal se esforça por impingir, ao tratar coisas como, por exemplo, políticas de quotas).

Reiteramos: a maior ameaça que no fim das contas ronda a cabeça de certos ideólogos militares é a “ameaça” dessa diversidade de sentidos e sua legitimidade; exatamente o que o pensamento autoritário não admite, apesar de sua eventual tintura de boas intenções, pincelada sobre uma retórica de defesa da soberania.

(www.ecodebate.com.br) publicado pelo IHU On-line, 25/08/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

[EcoDebate, 26/08/2008]