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Jornada de Lutas: Subestimados, movimentos do campo apresentam plataforma

Movimentos sociais do campo e da cidade agitam país com protestos. Governo recebe propostas estruturantes de curto prazo em prol da produção familiar. “O problema da terra é muito maior do que se imagina”, diz pesquisador

Por Maurício Hashizume, da Agência de Notícias Repórter Brasil.

Movimentos sociais rurais e organizações do meio urbano que participam da articulação da Assembléia Popular promoveram protestos e ocupações públicas que agitaram o país nas duas últimas semanas. Os manifestantes denunciam problemas relacionados com o modelo econômico sob a égide do sistema financeiro que incentiva a expansão do agronegócio e aumenta o poderio de grandes produtores e empresas transnacionais.

Grupos populares protagonizaram ações diretas em repúdio aos impactos de empresas como Vale (mineração), Stora Enso (papel e celulose), Bunge (fertilizantes e grãos), Suez-Tractebel (geração de energia), Netuno Alimentos (pescado), Camargo Corrêa e Odebrecht (construção) e Grupo Votorantim, com atuação em diversos setores. Houve bloqueios de estradas e tomada de espaços públicos contra o projeto de transposição do Rio São Francisco (no Nordeste), a repressão do governo do Rio Grande do Sul, as promessas não cumpridas do governo de Alagoas; fazendas como a do atual senador e ex-governador da Paraíba, José Maranhão (PMDB-PB), foram ocupadas.

Empresas ligadas ao ramo da energia – Companhia Energética de Goiás (Celg), Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), Rio Grande Energia (RGE), Companhia Hidrelétrica do Vale do São Francisco (Chesf) – também sentiram a pressão dos movimentos do campo e da cidade, que contestaram também as condutas do governo e das empresas no processo de construção das usinas do Complexo do Rio Madeira, em Rondônia.

Membros da Via Campesina entregam conjunto de propostas ao governo (Foto: José Cruz/ABr)

No encontro com o chefe de gabinete da Presidência da República, Gilberto Carvalho, representantes da Via Campesina (que congrega os movimentos camponeses) entregaram um documento com “Programas Estruturantes de Curto Prazo“. A plataforma sugere, entre outras medidas, a aplicação de um programa nacional de incentivo ao manejo florestal, à agroecologia e ao reflorestamento de dois hectares por família camponesa, um programa nacional de agroindústria familiar e cooperativa, um programa de compra de alimentos da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e garantia de preços para alimentos básicos, um programa de geração de energia renovável em pequena escala e a constituição de uma empresa estatal de fertilizantes.

A expansão da monocultura – plantações de soja e de eucaliptos – e a extração ilegal de madeiras e a mineração, juntamente com projetos de desenvolvimento, como a construção de usinas hidrelétricas e o projeto de transposição do Rio São Francisco estiveram, segundo o Relatório Anual 2008 da Anistia Internacional, “entre as principais fontes de conflito”. “Aumentaram as expulsões forçadas, geralmente envolvendo ameaças e intimidações. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), de janeiro a setembro de 2007 foram expulsas 2.543 famílias em todo o Brasil, um aumento significativo com relação a 2006″, descreve o documento da organização internacional.

“Ativistas rurais e povos indígenas que realizam campanhas por acesso à terra foram ameaçados e atacados por policiais e por seguranças privados”, assinala a Anistia. No item “Disputas por terra”, a entidade sublinha a continuidade da violência nas áreas rurais, “geralmente em situações de disputa que opunham, de um lado, grandes proprietários de terra e, de outro, trabalhadores rurais sem terra e povos indígenas ou quilombolas”.

O assassinato de Valmir Motta de Oliveira, o Keno, liderança do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), é citado no relatório da Anistia. Em novembro de 2007, homens armados da empresa privada de segurança NF atacaram um grupo de trabalhadores rurais que ocupavam propriedade da multinacional Syngenta, próxima ao município de Santa Teresa do Oeste (PR). Keno morreu com um tiro no peito. “Um segurança da empresa [NF] também foi morto a tiros em circunstâncias incertas. Outras oito pessoas foram feridas no ataque, entre elas Izabel Nascimento, espancada até perder os sentidos. O assassinato se enquadra em um padrão de violência e intimidação há muito perpetrado pelas milícias rurais no Paraná”, colocam os ativistas.

“Caveirão do agronegócio”: quebra-mato, lateral revestida e com buracos (Foto: Terra de Direitos)

Na madrugada de 8 de maio, um grupo armado utilizou um caminhão preparado com grade “quebra-mato”, lateral revestida com proteção de placas de ferro e pequenas aberturas para o disparo de tiros para destruir lavouras e construções do Acampamento Primeiros Passos. Pertencente a Orlando Carneiro, dono da Fazenda Bom Sucesso (situada próxima ao acampamento), o veículo especial ganhou a alcunha de “caveirão do agonegócio”.

Os pistoleiros derrubaram as moradias das 150 famílias do Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST) acampadas nas cercanias da Rodovia BR-369, entre os municípios de Cascavel (PR) e Corbélia (PR). Um (Luciano Gomes Resende) dos dez pistoleiros presos em flagrante pela polícia é contratado da mesma empresa NF, que presta serviços à Sociedade Rural do Oeste (SRO). De acordo com Gisele Cassano, assessora jurídica da organização não-governamental (ONG) Terra de Direitos, os produtores rurais da região contribuem com uma arrecadação mensal para pagar o serviço de segurança privada armada. “Pedimos o fechamento da empresa, que atuou em outro caso de despejo no município de Lindoeste (PR) em abril de 2007, mas ainda não fomos atendidos”, coloca a advogada.

“A questão agrária é um problema estrutural do capitalismo. A reprodução da miséria, da expropriação e da desigualdade no campo alimenta o sistema”, contextualiza o geógrafo Bernardo Mançano, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Presidente Prudente (SP). Ele frisa que o agronegócio controla cerca de 70% das terras agricultáveis (300 milhões de hectares), recebe 90% dos recursos públicos para financiamento e produz somente 50% dos alimentos. Enquanto isso, os produtores familiares controlam somente 30% da área (120 milhões de hectares), fica apenas com 10% dos recursos públicos de crédito e produz igualmente 50% dos alimentos.

Metade desse total de 120 milhões de hectares de terras ocupados por pequenos produtores foi conquistada por meio de ocupações, de acordo com o professor, que coordena o Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera). Dados coletados e cruzados pelo professor da Unesp mostram que os números de ocupações de terra tanto da CPT quanto da Ouvidoria Agrária Nacional, ligada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), subestimam a realidade. “Não existe um procedimento científico para acompanhar a demanda pela reforma agrária. Mesmo a confrontação que fizemos é parcial. O problema da terra é muito maior do que se imagina”.