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Mais para Maggi do que para Marina, artigo de Maria Inês Nassif

[Valor Econômico] Para além do meio ambiente, os problemas da Amazônia decorrem, em grande parte, da questão fundiária. O desmatamento é apenas capítulo de uma novela que se desenrola dentro da mata, com enredo parecido com o de um bangue-bangue: terras de ninguém disputadas por grandes posseiros, entre si, e por pequenos posseiros e grandes posseiros. O centro da disputa é um território que, em sua grande parte, é público. Ou seja, a região amazônica vive um paradoxo onde o que está em disputa é a propriedade privada do bem público, a terra. Existe uma clara omissão do Estado nesse conflito e o governo Lula ajuda a confirmar essa regra.

A titularidade das propriedades rurais da Amazônia é, em sua maior parte, questionável. Segundo estudo do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), sobre dados do recadastramento da região (“Quem é dono da Amazônia?”, de Paulo Barreto, Andréia Pinto, Brenda Pinto e Sanae Hayashi), a região tem 43% do território em áreas protegidas, ou seja, 209 milhões de hectares. Isso não quer dizer que essa seja uma área preservada: o Incra reconheceu, em 2006, que pelo menos 10 milhões de hectares precisavam ser regularizados. Mais 21% do território são de terras supostamente públicas que estão fora da área protegida (áreas de reservas indígenas, de populações tradicionais ou de posseiros recentes); 32%, ou 150 milhões de hectares, são terras supostamente privadas, mas sem validação do Incra; e só 4% (ou 20 milhões de ha) têm cadastros validados pelo Incra. Já foram desmatados 18% de floresta original (mais de 700 mil km2).

Isso quer dizer que existem áreas preservadas onde há posseiros; áreas públicas não preservadas ocupadas por posseiros; e terras cuja propriedade é considerada duvidosa (que, sabe-se, foram originalmente ocupadas por posseiros e griladas; ou em algum momento passaram para as mãos dos Estados, e de lá para um particular, por vias legais ou por grilagem; ou têm posse regular da terra, concedida pelo Estado ou pela União, mas não a declararam. Enfim, por alguma razão os proprietários desse imenso território não foram provar a titularidade de suas terras quando o Incra fez o último cadastramento).

Segundo Paulo Barreto, da Faculdade de Ciências Agrárias do Pará, o padrão de colonização da Amazônia segue a lógica de muita terra para pouca gente, tanto em relação às propriedades que têm registro, como àquelas que são apenas posse. Isto é, o que está em questão é a posse de grandes propriedades. O conflito agrário envolvendo pequenos posseiros é praticamente superado, devido ao poder de fogo (literal) dos grandes posseiros.

Para Barreto, existe uma dinâmica de ocupação que culmina na concentração da terra. Ela começa no desmatamento, por madeireiros. Ao longo de enormes estradas ilegais abertas no meio da mata por motosserras, a primeira infra-estrutura do pedaço de mata recém-ocupado, há a corrida pela posse. A violência é parte indissociável do momento seguinte, a luta pela posse dessa terra. Os grande posseiros entram nos territórios com “equipes” de pistoleiros e “conquistam” grandes lotes.

A primeira ocupação após o desmate costuma ser a pecuária. Se a terra é boa para grãos e os preços internacionais estiverem favoráveis, passa-se para o momento seguinte, o agronegócio, em particular o plantio de grãos. Se as fazendas de gado ou o agronegócio estão ocupando informalmente lotes de terras públicas, o meio de produção, que é a terra, é gratuita. A posse dela é obtida na marra. E a posse definitiva, isto é, a titulação, ocorre no momento em que o governo faz uma anistia, ou quando arruma mecanismos legais para “vender” a terra para o ocupante. Assim, na origem de cada propriedade da Amazônia está a violência.

Outro caso típico de ocupação, a que envolve conflitos entre pequenos e grandes posseiros, ocorre em regiões que mobilizaram mão-de-obra para mineração ou para grandes obras (hidrelétricas e estradas) e que, ao fim, ficaram por lá, sem empregos. Existem regiões de pequenos posseiros que foram para os programas de colonização do regime militar e por lá ficaram, e comunidades que vivem do extrativismo. A lógica é a mesma da luta do grande contra o grande, mas mais cruel: ganha quem tem poder de fogo, e o grande tem muito mais poder de fogo do que o pequeno.

Há uma enorme incapacidade do governo Lula para lidar com uma situação complexa como a fundiária, no geral, e a fundiária da Amazônia, em particular. O PT jamais conseguiu dar organicidade ao entendimento em torno da questão agrária. O partido, como frente de grupos de esquerda, internalizou duas visões antagônicas sobre o problema. Uma delas prioriza a luta pela terra – são os grupos ligados ao MST e à Comissão Pastoral da Terra, esvaziados pelas defecções de 2005. Outro setor considera a questão da reforma agrária superada pelo avanço das relações capitalistas no campo. Essa divisão já definia, no pré-64, duas posturas distintas da esquerda: daqueles que levaram a luta política para o campo formando sindicatos, líderes e mobilização para conquistas trabalhistas; e aqueles que, como Francisco Julião com suas Ligas Camponesas, defendiam a “reforma agrária na lei ou na marra”, isto é, a luta do camponês pela posse da terra em que trabalha.

O nó da frente de esquerda que é o PT, e o do seu governo, é que eles abrigam gregos e troianos da esquerda, mas são obrigados a compor com a direita para governar – com os que, como o governador Blairo Maggi, defendem interesses do capitalismo primitivo, ou seja, da posse da terra pela força que, em algum momento, vai gerar um direito de (grande) propriedade capitalista. Sem outras fronteiras agrícolas para ampliar, o grande negócio agropecuário força agora as portas da Amazônia. Como para a região convergem os problemas fundiários e do meio ambiente, e os dois estão intimamente associados, a omissão significa não resolver os problemas fundiários e não dar uma solução à crescente degradação do meio ambiente. Foi no direito de propriedade da terra pública na Amazônia que se concentraram os conflitos na gestão Marina Silva. Na dúvida, o governo Lula costuma se omitir. Quando pressionado, acaba tendendo mais à Maggi do que à Marina.

Artigo originalmente publicado pelo Valor Econômico, de 05/06/2008.