EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Notícia

Reserva Raposa Serra do Sol: Estão querendo tomar a terra dos índios. Entrevista com José Ribamar Bessa Freire, etnohistoriador

[Jornal dos Economistas] Polêmica que ganhou dimensão nacional e repercussão também na área da segurança das fronteiras do país, a demarcação em área contínua das terras indígenas da Reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, é o tema da entrevista desta edição do JE, que ouviu as opiniões de um experimentado especialista no assunto: o professor e etnohistoriador José Ribamar Bessa Freire, coordenador do Programa de Estudos dos Povos Indígenas Edu/UERJ. Para ele, um recuo do STF na decisão que o próprio Supremo Tribunal já adotou representará a agonia de povos indígenas, com a extinção de línguas e culturas que enriquecem o patrimônio do Brasil e da humanidade.

Jornal dos Economistas – O senhor é um especialista em questões indígenas. À luz de sua experiência, qual sua opinião a respeito das declarações do Comandante Militar da Amazônia, general Augusto Heleno, para quem a política indigenista do governo Federal é caótica?

José Ribamar Bessa Freire – Bom, o general precisa deixar claro o que ele entende por “caótica”. Dito assim, trata-se apenas de um adjetivo vazio, genérico, bombástico, com efeito propagandístico, mas que não quer dizer nada. Eu posso dizer que caótico é o Brasil, o universo, e daí? Como contestar isso? O general precisa explicar onde é que o caos está instalado, oferecer dados substantivos para que a gente possa confrontá-los. Fica difícil polemizar, se ele não esclarece em que se baseia para chegar a tal conclusão. Uma coisa, porém, é certa: o general se equivoca quando fala em “política indigenista do governo”. Sarney homologou 11 áreas indígenas no alto Rio Negro, em 1989; Collor criou o Parque Ianomâmi, em 1991, e homologou 112 terras indígenas, com quase 27 milhões de hectares; Itamar Franco reconheceu 55 terras indígenas; FHC demarcou a terra indígena Raposa Serra do Sol, em 1998, homologada por Lula, em 2005. Não é uma “política de governo”, é uma política de Estado. Foi a Constituição de 1988 que reconheceu os direitos indígenas sobre as terras que ocupam tradicionalmente e que foram consideradas propriedade da União. Não depende do governo ‘A’ ou ‘B’. Qualquer que seja o governo, é obrigado a respeitar a lei. Rebelar-se contra ela não é, portanto, fazer oposição ao governo, mas afrontar a lei maior do país. O que está no ‘ livrinho’, como dizia o marechal Dutra, deve ser respeitado por todos – índios, arrozeiros, ongueiros, missionários, juízes, antropólogos e generais – do contrário, vira bang-bang, faroeste, como, aliás, já está acontecendo em Roraima. Seis arrozeiros se armam e desobedecem a uma decisão do STF que cumpriu todos os requisitos legais, num ato jurídico perfeito. O STF, ao recuar, estimula os grupos que reagem com violência contra a lei, quando ela fere seus interesses. Quem gritar mais alto, leva? Isso sim, é que é o caos, porque contraria a ordem constitucional.

JE – Em entrevista a jornais, o ex-presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes, afirma concordar com o general Augusto Heleno, no que diz respeito à política indigenista estar sendo conduzida de forma caótica, citando como exemplo a Funasa. O que acha dessas afirmações?

Bessa – Conheço o Mércio, com quem tenho um bom relacionamento, mas acho que sua declaração é de um oportunismo deslavado. Ele foi presidente da Funai e durante quatro anos ficou perdido em meio a papelada burocrática, sem conseguir fazer nada. O Mércio agora quer pegar carona nessa ‘temporada de caça às terras indígenas já demarcadas’, como muito bem advertiu o antropólogo Paulo Santilli. Quer posar de bom-moço para alguns generais. É claro que existe uma montanha de problemas, contradições, lacunas, incompetências. Temos de criticar. Mas é preciso reconhecer que houve um notável avanço em muitas áreas. A própria Funai, do Mércio ao Márcio, não mudou só de um “e” para um “a”. Melhorou. Muito. Passou a ouvir mais os índios, a se preocupar com projetos de desenvolvimento e a apoiar outra área, que é a da educação indígena, a cargo do MEC, transformando a escola num espaço de diálogo intercultural entre índios e não índios, contribuindo para pacificar os espíritos de todos. De acordo com o Censo Escolar de 2005, 172.256 alunos indígenas freqüentam 2.417 escolas, com mais de 10 mil professores, dos quais 90% são indígenas. A Funasa, por exemplo, que derrapa em muitos lugares, em outros, como no Rio de Janeiro vem desenvolvendo um bom trabalho, formando agentes indígenas de saúde nas aldeias Guarani.

JE – Difunde-se que as áreas indígenas estão tomadas por Ongs estrangeiras, mais interessadas em nossa biodiversidade e no contrabando de informações genéticas. Diz-se existirem áreas dominadas pelos indígenas, aonde brasileiro é barrado e estrangeiros entram e saem à vontade. Isso é verdade?

Bessa – Olha só, sou amazonense, há mais de 30 anos venho percorrendo o nosso país de ponta a ponta, ministrando cursos de formação de professores indígenas. Na última Copa do Mundo assisti a um jogo do Brasil numa maloca indígena, em tevê alimentada por bateria de carro. Os índios vibravam com os gols da nossa seleção. Então, me pergunto: como é que 20 mil índios, que amam o Brasil, armados de arco e flecha, podem ameaçar a soberania nacional? Tem cabimento um negócio desses? Quem quer tomar as terras dos índios não vai dizer publicamente: “queremos nos apropriar das terras indígenas”, porque não vai ter respaldo na opinião pública. Então, habilmente, exploram a desinformação de brasileiros crédulos, que amam sua pátria e acabam acreditando em inverdades como a de índios hasteando bandeiras americanas, falando inglês e se aliando com os gringos para retalhar o território brasileiro. Esses discursos anti-indígenas são recursivos, aparecem, historicamente, cada vez que as fronteiras econômicas querem se ampliar em terras indígenas. É o mesmo blá-blá-blá de sempre. Ele acaba ‘colando’, porque dos 186 milhões de brasileiros, sequer 1 milhão conhecem uma aldeia indígena ou conviveram com os índios e tudo que sabem provém da mídia. Aí, como a maioria das pessoas não conhece a realidade, esse tipo de depoimento pode adquirir uma aura de credibilidade para incautos. A opinião pública precisa saber que existem bases militares dentro de todas as terras indígenas de faixa de fronteira, que muitos índios servem ao Exército como soldados, e que os índios em contato com a sociedade nacional se sentem também brasileiros. Todos esses “defensores da Pátria” criticam o fato de “dar terras”, mas ninguém “deu terras” aos índios. A Constituição apenas reconheceu o direito de os índios usufruírem os territórios que ocupam milenarmente e que são propriedade da União. Eu disse: da União! Os índios não podem vender as terras, nem dá-las como garantia para uma transação comercial, porque elas não lhes pertencem, são da União, quer dizer, de todos nós. Um fazendeiro, sim, pode vender suas terras a estrangeiros e impedir a entrada do exército, porque, afinal, a propriedade privada funciona assim. Os índios, não. Acontece que as oligarquias, aves de rapina, acham que o que é público lhes pertence, interpretam que podem se apropriar dos espaços públicos. Então, por trás dessa orquestração, o que existe mesmo é a defesa de interesses particulares e não nacionais. Para justificar a usurpação de terras, estão tentando confundir a opinião pública, induzindo a pensar que a relação das terras com os índios é de propriedade privada quando não é assim. Exigir que terras indígenas sejam – aí sim – “dadas” a fazendeiros significa privatizá-las, ou seja, entregar a alguns indivíduos as terras que nos pertencem. Guardiões das terras da União, os índios constituem uma garantia da soberania nacional, da biodiversidade e da sociodiversidade.

JE – Por quê?

Bessa – Por que o usufruto pelos índios de terras que ocupam milenarmente ameaçaria a soberania nacional, e não assim a propriedade privada de fazendeiros, que inclusive possuem armas e poder de fogo e praticam o monocultivo que atenta contra a biodiversidade? A história de Roraima mostra que as terras indígenas demarcadas, longe de serem ameaça à soberania nacional, constituem uma garantia de que essas terras continuarão pertencendo ao Brasil. No início do século XX, quando o governo brasileiro discutia os marcos das fronteiras com outros países, Joaquim Nabuco, que estudou toda a documentação, comprovou que o Brasil só conservou essas terras, porque os índios Makuxi, Ingarikó, Taurepang e Wapixana impediram a entrada de ingleses, franceses, holandeses e espanhóis. “Os peitos dos índios foram as muralhas dos sertões”, escreveu Nabuco.

JE – O general Augusto Heleno afirmou que a homologação da Reserva Raposa Serra do Sol em área contínua coloca em risco a soberania nacional e as fronteiras do país. E que são etnias diferentes, daí a homologação em área contínua criará uma guerra entre os indígenas, por serem de comunidades historicamente adversárias. Estas observações procedem?

Bessa – Bem, sinceramente, confesso minha ignorância, porque não li nenhum trabalho de pesquisa do general justificando tal afirmação. De qualquer forma, a estratégia dele de desqualificar a demarcação em área contínua não encontra respaldo nos trabalhos que conheço de antropólogos e historiadores sérios como Nádia Farage e Paulo Santilli. Este último produziu, em 1992, o laudo técnico que deu origem à demarcação. Quando se menciona as rivalidades entre etnias, está se evocando uma informação histórica válida para o período pré-colonial e que aqui aparece distorcida. Primeiro, porque já houve grandes deslocamentos e o processo histórico se encarregou de desfazer rivalidades, estabelecendo novas alianças. Depois, porque os índios de Roraima sacaram que precisam se unir pra se defender das agressões e por isso criaram associações em que estão todos representados. Os arrozeiros estão tentando dividir o movimento, instrumentalizando alguns índios, dizendo que eles são contrários à demarcação. É um discurso que não se sustenta. Isso equivale a dizer que existem escravos contrários à abolição da escravatura.

JE – É dito que as áreas indígenas estão tomadas por Ongs estrangeiras, mais interessadas em nossa biodiversidade e no contrabando de informações genéticas do que propriamente na preservação das culturas indígenas e que existem áreas dominadas, onde brasileiro é barrado e estrangeiro entra e sai à vontade. Isso é verdade?

Bessa – Quanto às Ongs, acontece que o governo brasileiro, como ente público, não foi capaz de desenvolver projetos e executar políticas no cumprimento dos preceitos constitucionais relativos aos povos indígenas: demarcação de terras, educação, saúde, meio-ambiente, desenvolvimento auto-sustentável, patrimônio cultural e bem-estar social. Essa incapacidade do Estado foi a principal razão para o rápido crescimento do terceiro setor e a proliferação de organizações não-governamentais, sem fins lucrativos. No entanto, não se pode incorrer num erro de avaliação, ao fazer uma generalização apressada. As Ongs são como o colesterol: há o bom e o mal. É preciso diferenciar as que trabalham com seriedade em parceria com as comunidades indígenas daquelas convertidas em autênticos “gigolôs” de índios. Coincidentemente, essa confusão vem sendo cultivada por setores contrários aos direitos indígenas garantidos pela Constituição de 1988, que colocam todas as Ongs no mesmo saco, para tentar desmoralizar as alianças dos índios e enfraquecê-las. Atuando em áreas indígenas da Amazônia, tivemos praticamente todos os tipos de Ongs descritas por Vilmar Berna: as chamadas “Ongs de combate”, cujo objetivo é organizar e mobilizar os setores interessados para reivindicar melhor qualidade de vida; as “Ongs profissionais”, que vão mais além e montam uma estrutura capaz de elaborar e executar projetos em parceria com governos, empresas e organizações indígenas, usando recursos públicos ou privados destinados a projetos; e até mesmo as denominadas “Ongs de cartório”, que existem apenas como um endereço e foram criadas para se beneficiarem de isenções fiscais e agregar valor às suas marcas institucionais, “desvirtuando e confundindo a noção de Ongs como organizações que representam os interesses da sociedade civil.” Não sabemos com precisão quantas dessas organizações atuam na Amazônia, quais são os projetos desenvolvidos por elas especificamente em áreas indígenas e quais são os seus resultados, de onde vêm os recursos com os quais operam, qual a porcentagem de fundos públicos e de que ministérios saíram, qual o montante das contribuições provenientes de países estrangeiros ou de organizações religiosas, como estão sendo utilizados esses recursos, quantos voluntários prestam serviços a essas entidades, quantos empregos foram criados no setor.

JE – Ou seja, não há informação confiável?

Bessa – Sim, e a ausência de informações contribuiu para que se generalizasse, indevidamente, para todas as Ongs, as prática ilícitas de algumas “Ongs de cartório” ou “Ongs pilantrópicas”, que serviram de ´laranja´ para desvio de dinheiro público. De qualquer forma, parece legítima a reivindicação para que todas elas prestem contas do que fazem. A sociedade começa a cobrar das Ongs maior transparência e visibilidade. Agora, se existem Ongs fazendo contrabando em áreas indígenas, são elas que devem ser combatidas, até mesmo para defender os índios. Isso, no entanto, não pode servir de pretexto para privatizar as terras indígenas e entregá-las a fazendeiros. Na realidade, é perigoso generalizar, como sinaliza Hélio Matos, porque “a imensa maioria das organizações do Terceiro Setor é séria, honesta, não vive de dinheiro público. A maior parte dessas organizações se mantém basicamente pela solidariedade e pelo dinamismo da sociedade civil brasileira, que são também imensos, ao contrário do que prejulgam aqueles aos quais faltam tais sentimentos republicanos e cidadãos”. Agora, um cidadão qualquer que queira entrar numa reserva, precisa de autorização dos índios e da Funai, da mesma forma que qualquer brasileiro que queira entrar numa fazenda particular precisa de licença de seu proprietário.

JE – O senhor conhece os índios da Reserva Raposa Serra do Sol? Em discurso, no Clube Militar, o Comandante Militar da Amazônia disse que eles vivem bêbados, abandonados. É isso mesmo?

Bessa – Conheço a Reserva por ter ido lá três vezes, mas nunca fiz pesquisas na área. De qualquer forma, essa historia toda me faz lembrar a fábula do lobo e do cordeiro, do La Fontaine. O lobby do arroz diz que os índios ameaçam a segurança nacional. Os índios provam que isso não é verdade. O lobby retruca que deixar os índios juntos dentro da terra pode provocar uma guerra fratricida. Os índios desmontam a argumentação. Aí o lobby diz que os índios são bêbados, preguiçosos, atrasados e desconhecem as técnicas de produção. Os índios exibem os resultados das pesquisas arqueológicas, indicando que desde o ano 5.000 a.C. os moradores da região já haviam domesticado a mandioca; as escavações encontraram um forno, comprovando que desde 3.000 a.C. já fabricavam farinha, produto ainda hoje consumido em todo Brasil. Possuíam técnicas e conhecimentos sofisticados, faziam experimentos genéticos, melhorando a raça de vegetais, o que foi comprovado com pesquisas feitas em suas roças, onde é possível encontrar frutas, como o abiu, do tamanho de uma melancia, quando no resto da floresta não passava do tamanho de um limão. O lobby insiste que precisa da terra para plantar arroz, porque nas mãos dos índios ela é improdutiva e que os índios constituem um obstáculo ao progresso etc. Os índios respondem aquilo que o coordenador do Conselho Indígena de Roraima, o macuxi Dionito Souza, disse aos ministros do STF, com documentos em mãos: que os índios têm, dentro da área, 35 mil cabeças de gado e que as 194 aldeias querem aumentar o rebanho; que os índios vendem anualmente 3 mil bezerros; que produzem 50 toneladas de milho e outras 50 de feijão. Se os arrozeiros são beneficiados com isenção fiscal, por que não se pode estimular a produção indígena? A Fazenda Casa Branca foi processada criminalmente porque aplicou agrotóxicos nos arrozais, e com isso matou muitas aves e outros bichos, poluiu igarapés, e prejudicou a saúde de todo mundo, causando grandes danos. A produção indígena não é agressiva em relação ao meio ambiente.

JE – Chega-se a falar do risco de um Kosovo, em Roraima. Há este risco, em sua avaliação?

Bessa – Eu confio no Exército Brasileiro, na sua capacidade de defender a soberania nacional e no patriotismo de seus integrantes. Só teme um Kosovo quem cai numa confusão conceitual que não faz distinção entre nação e Estado. Acreditar que as denominadas ‘nações indígenas’ possam se erigir em Estado equivale a crer que a “nação rubro-negra” pode declarar a independência da Zona Sul do Rio de Janeiro. Teme esse perigo quem desconhece as condições históricas de lá e de cá, ou quem não confia nas Forças Armadas que nos deram um Rondon, generoso, corajoso, defensor dos índios. Parodiando o general Juracy Magalhães, ministro da Justiça da ditadura militar, responsável pela censura aos jornais, que disse “O que é bom para os EUA é bom para o Brasil”, podemos afirmar que “o que é bom para os índios é bom para o Brasil”. O único ‘argumento’ capaz de justificar a usurpação das terras indígenas é o do lobo de La Fontaine: a ´razão´ truculenta do mais forte prevalece, quando a lei não é respeitada. Morro de medo da atual escalada anti-indígena, que está ressuscitando muitos Búfalos Bills em pleno século XXI. Se o STF recuar e modificar o modelo de demarcação contínua da reserva Raposa Serra do Sol abre um precedente enorme para que assistamos a agonia dos povos indígenas, a extinção de línguas e culturas que enriquecem o Brasil e o patrimônio reconhecido da humanidade.

Entrevista originalmente publicada pelo Jornal dos Economistas, CORECON-RJ, maio/2005.