EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Notícia

PF chega à Raposa Serra do Sol para tirar não-índios da reserva

Operação Upatakon pode mobilizar até 500 homens para expulsar comerciantes e arrozeiros de área em Roraima – A tensão em torno da ocupação da terra indígena Raposa Serra do Sol – homologada há três anos pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva – aumentou nos últimos dias. O motivo foi o início, na quinta-feira, da Operação Upakaton 3 – nome dado pela Polícia Federal à serie de ações com que as autoridades federais pretendem retirar da área os últimos ocupantes que ainda estão lá: pequenos proprietários rurais, alguns comerciantes e um grupo de grandes e influentes produtores de arroz. Entre estes últimos, alguns prometem resistir à investida policial, com ações que vão de protestos públicos na capital, Boa Vista, a atos de sabotagem destinados a impedir a entrada dos policiais nas fazendas. Por Roldão Arruda, do O Estado de S.Paulo, 30/03/2008.

A Raposa é formada por uma área contínua de 1,7 milhão de hectares, dividida entre imensas planícies, semelhantes às das regiões de cerrado, mas aqui chamadas de lavrado; e cadeias de montanhas, na fronteira do Brasil com a Venezuela. Nela vivem cerca de 20 mil índios, a maioria deles da etnia macuxi. Entre os grupos menores estão os uapixanas, ingaricós, taurepangs e outros

Desde que Lula assinou o decreto de homologação da área, no dia 15 de abril de 2005, a área tem sido objeto de polêmicas e disputas. Os produtores rurais, moradores não-indígenas da região e até parte da população indígena reivindicam que pequenas partes da reserva sejam desmembradas. Eles já recorreram à Justiça, mas nos últimos três anos as batalhas judiciais têm sido sucessivamente vencidas pelo governo.

O caso ganhou repercussão internacional. Organismos da ONU e da OEA cobraram do governo a liberação da área para os indígenas. Na semana passada, a Advocacia Geral da União também fez cobranças. E os índios vinham ameaçando expulsar por conta própria os não-indígenas se o governo não tomasse a iniciativa até o fim de março. Na semana passada, o coordenador nacional do setor de defesa institucional da Polícia Federal, delegado Fernando Segóvia, realizou várias reuniões a portas fechadas em Boa Vista. Conversou com representantes dos Ministérios do Desenvolvimento Agrário, Meio Ambiente e Justiça, além de procuradores e representantes da Força de Segurança Nacional. Também se encontrou em duas ocasiões com líderes indígenas.

No início da noite de quinta-feira, um avião da PF desembarcou na cidade um grupo de 40 agentes, recrutados no Amazonas, no Acre e em Rondônia. Na sexta-feira chegaram outros 20. Segundo Segóvia, mais desembarques serão feitos nos próximos dias. Ele não informou, porém, o total de homens que vai mobilizar – entre agentes da Polícia Federal e da Força de Segurança – nem a data da expulsão dos não-índios. Em Boa Vista comenta-se que o desenlace pode ocorrer antes de 15 de abril – data do terceiro aniversário do decreto de Lula.

Pequenos produtores e comerciantes não devem opor resistência. Após receberem indenização pelas benfeitorias realizadas nas áreas onde estão instalados, serão removidos para assentamentos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Mas entre os rizicultores a disposição é outra. Paulo César Quartiero, espécie de porta-voz do grupo, exibe sempre um tom belicoso em suas conversas. Passa a impressão de um estrategista que sabia da inevitabilidade do encontro e que vinha se preparando – e até treinando – para a ocasião.

No início do mês, quando centenas de líderes indígenas – os tuxauas – se reuniram em uma assembléia na comunidade do Surumu, a 9 quilômetros da Fazenda Depósito, uma das propriedades de Quartiero no interior da Raposa, ele suspeitou: a reunião seria apenas um pretexto para marcharem e invadirem seus pastos e arrozais.

Diante disso, se preparou para receber os possíveis invasores. De acordo com suas informações, contratou em Manaus, a cerca de 740 quilômetros de Boa Vista, pela BR-174, um grupo de ex-PMs para servirem como seguranças. “Vieram em dois ônibus”, contou. Nas duas entradas da fazenda ele também armou barricadas com sacos de pedra e areia e arame farpado. Numa das entradas pôs uma plaina – implemento usado para preparar a terra dos arrozais – para impedir a entrada de carros. “Cheguei até a minar parte do terreno.”

Por cima dessa barreira, colou pequenas bandeiras do Brasil. Ele advoga que nessa guerra ele é o nacionalista, enquanto o governo faz o papel de entreguista. “Quem está por trás da criação das terras indígenas, manipulando os índios, são ONGs internacionais, a serviço de nações estrangeiras”, repete.

O confronto com os tuxauas não ocorreu. Mas as barreiras, as bandeirolas e até um ex-policial militar continuam lá. Esperando os índios. Ou a PF.

Os índios também adotam um tom belicoso. “Não vamos esperar mais. Já foram três anos de humilhações e situações de desrespeito em nossa própria casa. Cansamos de esperar, e se o governo não agir agora nós vamos lutar. Sabemos morrer, mas também sabemos matar”, disse ao Estado o tuxaua Dionito José de Souza.

Ao 39 anos, com nove filhos e uma neta, ele é coordenador-geral do Conselho Indigenista de Roraima e acredita que já chegou a hora dos índios assumirem todo o controle da região: “Quando era pequeno e ia para escola de brancos, me castigavam todas as vezes que eu falava na minha língua, o macuxi. Levava 12 palmatórias em cada mão e depois ficava ajoelhado no milho e com os abraços abertos em cruz. Hoje não é mais assim. Os índios querem retomar sua cultura, dirigir seu destino. Não podemos fazer isso com estranhos dentro de casa.”

Os rizicultores começaram a ocupar a região nos anos 70 e hoje representam um dos setores mais importantes da economia do Estado. Depois do arroz, vendido principalmente em Manaus, estão começando a plantar soja. Apesar disso, não possuem títulos de propriedade – e não têm direito a indenização por elas, só pelas benfeitorias.

Quartiero acredita que a causa dos rizicultores tem a simpatia das Forças Armadas – que não estão oficialmente envolvidas na Operação Upatakon 3. “O Exército é nacionalista, patriota, e seus dirigentes discordam dessa política de demarcação de terras indígenas, que está criando uma espécie de nação índia, que vai de Roraima à Cabeça do Cachorro, no Amazonas, englobando toda a chamada Calha Norte”, afirma.

Na terça-feira, dois dias antes de a PF iniciar a operação, Quartiero foi ao Rio, participar de um seminário do Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos (Cebres), no Clube de Aeronáutica, com o seguinte tema: “Amazônia, cobiçada e ameaçada”. Um dos palestrantes do seminário, o coronel da reserva Gélio Augusto Barbosa Fregapani, ex-chefe da Abin em Roraima, chegou a tratá-lo como uma espécie de exemplo de resistência na Amazônia.

Apesar das deferências, Quartiero não ficou até o fim do seminário. Ainda na terça embarcou para Brasília, onde o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) havia acabado de tomar uma decisão: devolveu-lhe o cargo de prefeito de Pacaraima, que ele havia perdido um ano atrás, acusado de corrupção. O caso ainda deverá ser julgado pelo Supremo, mas Quartiero prepara-se para assumir a prefeitura.

Pacaraima é um município pobre, com cerca de 8 mil habitantes, na fronteira do Brasil com a Venezuela. Está dentro de área indígena e, portanto, ameaçado de desaparecer. Constitui por enquanto mais um palanque para o rizicultor defender suas fazendas, onde cria cerca de 4 mil cabeças de gado, planta 4.500 hectares de arroz e outros 1.300 de soja.

A situação é de expectativa. Os índios e os rizicultores aguardam os próximos movimentos do delegado Segóvia.