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Artigo

O Direito para um mundo novo, por Washington Novaes

[O Estado de S.Paulo] Remotas, distantes do âmbito da vida pessoal ou empresarial do cidadão. Para grande parte das pessoas, essa é a visão das questões fundamentais do nosso tempo, como a insustentabilidade dos padrões de consumo no mundo, além da capacidade de reposição do planeta – comentada neste espaço na semana passada, a propósito de relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) -, ou as mudanças climáticas já em curso. Mas a vida de todas as pessoas, todas as empresas, será profundamente afetada pelas decisões que terão de ser tomadas, nesses dois terrenos, no âmbito de cada país, assim como no de um Direito Internacional Ambiental, ainda incipiente.

Há poucas semanas, nas comemorações do 50º aniversário de formatura da turma de 1957 da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, o autor destas linhas teve a oportunidade de tratar desse tema na sessão solene – tentando esboçar ou antever as transformações que fatalmente virão, diante da gravidade do quadro. A começar pelo âmbito internacional.

Sabemos todos que, para mudar o quadro do clima e da insustentabilidade dos padrões de produção e consumo, regras universais terão de ser criadas e impostas – “A ética não será suficiente”, tem dito o presidente do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, Rajendra Pashauri. Mas não temos essas regras nem instituições capazes de levá-las à prática em toda parte. As convenções da ONU exigem consenso para decidir, mas isso é quase impossível diante da heterogeneidade de visões e interesses. Tem sido assim nas convenções do clima, da diversidade biológica, da desertificação, no Protocolo de Cartagena, em muitos fóruns. Nem mesmo os princípios da precaução ou do poluidor/pagador, que já são parte de várias convenções, conseguem tornar-se efetivos.

Há quem proponha criar uma Organização Mundial do Meio Ambiente, mas ela esbarraria nos mesmos problemas. Há quem – radicalmente “realista” – pense que só haverá solução concreta no âmbito da Organização Mundial do Comércio. Os próximos anos dirão.

Mas não é apenas no âmbito internacional que terão de ocorrer mudanças profundas. Na legislação de cada país, também. Porque será preciso regular o campo das matrizes energéticas e dos transportes, por exemplo. E o caso do transporte aéreo já é bem indicativo da complexidade. Muitos países europeus querem impor imediatamente metas de redução e taxas pesadas na emissão de poluentes no transporte aéreo, porque é o setor em que mais crescem as emissões de gases que intensificam o efeito estufa. Mas como fazer? Impor no país de origem do vôo ou no destino? E países intermediários? Impor a taxa por empresa? E se não houver taxação no país da empresa concorrente?

Como se fará para impor a preferência obrigatória pelo transporte coletivo, em detrimento do individual? Da mesma forma para a preferência pelo transporte ferroviário no lugar do rodoviário.

Por que caminhos se chegará à retenção obrigatória e ao uso (para certas finalidades) das águas pluviais, contribuindo para aliviar a pressão sobre mananciais e também para evitar inundações em áreas de solo impermeabilizado? Como se evitará mais impermeabilização, se a rara legislação hoje existente em alguns lugares é quase letra morta? Como se chegará ao reúso (pode ser na descarga sanitária) de águas de banho e cozinha? Como se impedirá o despejo de esgotos sem tratamento (quase 80% dos coletados, hoje) em cursos d’água e no mar? Como se tornará obrigatório o uso de métodos de irrigação que não desperdicem água escassa (mais de 50% nos pivôs centrais, por exemplo) e se impeça, neles, concessão de tarifas de energia subsidiadas?

Nessa área da agropecuária as questões serão muitas, por mais que irritem os produtores. Mas, como diz o Pnuma, o uso de recursos e serviços naturais já está uns 30% além da capacidade de reposição. Será preciso adequar. Ainda mais lembrando, como fez recentemente o relatório La sombra alongada de la ganaderia, da FAO, que está prevista uma expansão de 100% nessa área, quando seu impacto já precisaria ser reduzido à metade. Seja no consumo de recursos, seja na emissão de metano (57 quilos anuais por boi). E, na agricultura, no uso de fertilizantes, já que o nitrogênio é hoje uma das principais causas de degradação das águas e da biodiversidade marinha (100 milhões de quilos chegam anualmente ao mar). Sem falar na chuva ácida.

Regras muito severas terão de ser criadas para a área de geração de resíduos, de modo a reduzir o consumo de materiais, a degradação de áreas de despejo, a emissão de poluentes, a contaminação de lençóis freáticos. E para impedir a passagem dos respectivos custos para o setor público – toda a sociedade -, isentando o gerador do problema, seja o fabricante, seja o consumidor.

Mesmo na área da propriedade fundiária poderá haver exigências novas. Se a presença de vegetação nativa for decisiva, em termos de biodiversidade ou contribuição para o clima, será possível haver restrições de uso em terras privadas? Ou não haver mais restrição apenas nas áreas de reserva legal? Alguma contradição (em direção contrária) já está presente mesmo na legislação de hoje, que considera improdutivas (e suscetíveis de desapropriação para reforma agrária) áreas não utilizadas comercialmente – ao mesmo tempo que se recomenda a preservação na Amazônia, no Pantanal e em outras partes.

São desafios enormes para o Direito: criar legislação nacional e internacional (e instituições para cumpri-las) que atenda às exigências planetárias e adequar as regras jurídicas de cada país, que protegem a propriedade privada, às novas necessidades. Mas não haverá como escapar a eles. Nem mesmo quando se adentrar o campo da soberania nacional no uso de recursos e serviços naturais.

Quanto menos tempo se perder, melhor será.

Washington Novaes é jornalista – E-mail: wlrnovaes@uol.com.br

(www.ecodebate.com.br) artigo publicado pelo O Estado de S.Paulo – 09/11/2007