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Artigo

Agricultura tradicional versus moderna e sobrevivência humana, artigo de Carlos R. Spehar

Ao abrigarem várias espécies em cultivos associados, diminuem os riscos. Mais ainda, por usarem variedades menos uniformes, têm menos chance de que todas as plantas fiquem expostas a uma possível epidemia

Carlos R. Spehar (spehar@unb.br) é professor colaborador da UnB. Artigo enviado pelo autor ao “JC e-mail”:

Todo o conjunto de plantas exploradas pela agricultura comercial provém de seleções realizadas por nossos ancestrais. Ou seja, do trabalho de gerações, onde o convívio entre as plantas, os animais e o ser humano era a marca presente, se originou imensa variabilidade genética.

Essa mesma que tem sido apropriada por grandes corporações e outras iniciativas do gênero para a exploração comercial de sementes melhoradas.

Que seja reconhecido o mérito de acumular genes favoráveis em variedades comerciais, parece ser um consenso. O que não se pode é apropriar-se indevidamente, via patente ou restrição de uso, de um patrimônio da humanidade.

Na realidade as comunidades tradicionais de agricultores, indígenas de seus ambientes, é que teria o mérito de deter tanto poder sobre as plantas e animais. Afinal, foram elas que permitiram os avanços que se observam na agricultura, oferecendo, livre de custo, um patrimônio que herdaram de seus antepassados.

Se não houvesse convivência, co-habitando, acompanhando os processos vitais, observando e selecionando diferenças, não teríamos atingido tanta diversidade.

O paradoxal é que na agricultura moderna, os genes desejados são pinçados para introdução em um molde pré-estabelecido. Isto é, na especialização, com plantas homogêneas na maturação, no tamanho e na cor da semente, na produtividade, na composição e outros atributos, aumenta-se também a vulnerabilidade na reação a doenças e patógenos.

Daí, haver esse esforço constante de transferir genes. Na maior parte eles são encontrados na própria espécie. Com exceções são inseridos genes estranhos aos genomas, no processo conhecido por transgenia.

Porém, esse esforço parece fadado a virar refém das ameaças crescentes. Como dissemos, a agricultura nos trópicos deve ser dinâmica, tanto quanto a vida que neles é encontrada. Veja-se a diversidade nos sistemas em equilíbrio. Compare-se com florestas boreais. Percebe-se que a diferença é grande.

Contudo, desafiando o que a própria natureza nos diz, movidos por interesses econômicos, relutamos em aceitar o fato. Repetimos plantios, desde que os produtos nos dêem o lucro esperado. Não nos importamos em avaliar ameaças, desde que tenhamos vantagens. Elas podem, entretanto, desaparecer de repente, por nossa imprudência ou desconhecimento.

Voltemos às comunidades tradicionais, sejam elas de indígenas americanos, africanos, asiáticos, ou de outras partes do mundo tropical. Perceberemos que, em geral, respeitam o que a natureza lhes ensina.

Cultivam de forma diversificada animais e plantas, numa combinação empírica, sob baixo uso de insumos. Por isso mesmo, na maioria das vezes pouco rentável, quando comparada à agricultura comercial. Daí, estarem ameaçadas, também.

Ao abrigarem várias espécies em cultivos associados, diminuem os riscos. Mais ainda, por usarem variedades menos uniformes, têm menos chance de que todas as plantas fiquem expostas a uma possível epidemia.

Então, em um caso as ameaças são biológicas, com sistemas especializados cada vez mais vulneráveis. Em outro, são econômicas, restringindo as populações a uma condição de subsistência. Porém neste último, quando abandonam a atividade, deixam para trás suas tradições, costumes e variedades. Toda a cadeia produtiva perde.

Na agricultura moderna, mediante o uso de irrigação, onde não há geadas, os cultivos podem ser realizados durante todo o ano, multiplicando insetos e microorganismos que viram pragas. Isso contrasta com a agricultura de clima temperado, onde por imposição climática (inverno frio), a atividade biológica se reduz a um mínimo para sobrevivência.

Então, diante do impasse, por que não valorizar a agricultura tradicional, ajudando-a a melhorar seus padrões de desempenho, considerando que ela se aproxima do modelo ideal para os trópicos? Através dela pode-se manter a diversidade da qual todos dependemos.

Aos moldes do que ocorreu com o milho, quem sabe a formação de consórcios, envolvendo as partes interessadas, não poderiam apoiar a sua sobrevivência e o resgate?

As grandes empresas produtoras de sementes, os grandes exportadores e importadores, as indústrias de transformação, os governos – por segurança alimentar, dependem de se manter e explorar tamanha diversidade.

No Brasil, a Funai, por ação ímpar e pioneira, com a participação de universidades e iniciativa privada, tenta resgatar junto a comunidades indígenas o valor da semente. As trocas de experiências entre elas pode aumentar a sinergia do processo.

A coleta e manutenção de espécimes que, por experiência, lhes traz benefícios pode ser útil a todos. O melhoramento participativo de milho, no qual se resgatam variedades tradicionais, aprimorando o seu desempenho agronômico é outra ação do gênero.

Esses exemplos mostram haver soluções para velhos problemas relativos ao dilema de agricultura tradicional versus moderna. Em suma, torna-se necessário conhecer para saber intervir nos sistemas agrícolas tropicais, aumentando sua eficiência biológica e econômica. Deles depende a sobrevivência humana.

(www.ecodebate.com.br) artigo publicado pelo Jornal da Ciência, SBPC, JC e-mail 3387, de 09 de Novembro de 2007.