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Artigo

O povo e a Transposição, por Frei Gilvander Moreira

[EcoDebate] Ciro Gomes e o governo federal divulgam um projeto de transposição fantasioso, uma mentira. A verdade precisa ser restaurada. Por isso, ouçamos o que dizem pessoas da mais alta idoneidade que lançam argumentos que nos ajudam a discernir sobre o projeto de transposição das águas do Velho Chico.

São totalmente contrários à Transposição das águas do rio São Francisco o cacique dos trukás, Aurivan dos Santos Barros (o Neguinho), e Isaura Pereira, que acolheu em sua casa o bispo de Barra, D. Luís Flávio Cappio, durante a greve de fome de 11 dias, de 26/09 a 07/10/2005. Para o cacique Neguinho, não há o que discutir sobre a transposição enquanto o governo não abrir o debate com todas as comunidades ribeirinhas do São Francisco. “O governo faz propaganda enganosa e aproveita a desinformação da população para ludibriar o povo do sertão com a promessa de água para todos”, diz. Neguinho lidera 4.200 índios que vivem na Ilha de Assunção, a menos de 100 metros de onde estão iniciando o canal do Eixo Norte. Os índios ocupam uma área de 6.200 hectares no município de Cabrobó.

Dona Isaura Pereira, 66 anos, é uma lavradora que deu guarida ao bispo de Barra, D. Luís Flávio Cappio, durante a greve de fome contra a transposição, em 2005. Devota de São Sebastião, ela vê a obra como um presságio de maus tempos. “Vão matar o rio, que já está doente”, diz a sertaneja.

O projeto de Ciro Gomes, assumido por Lula, em 2005, prevê a retirada de um mínimo de 26 m³ de água por segundo e um máximo de 127m3 por segundo, vazão média 65 m3/segundo – o que comporta a calha prevista no projeto: 25 metros de largura, por 5 metros de profundidade e 720 Kms de distância – para os Estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. É claro que se há uma calha que pode transportar até 127 m3/segundo, jamais irão levar só 26 m3/segundo.

A chegada do Exército em Cabrobó e em Floresta/PE demonstra a pressa do governo federal em iniciar a transposição, antes mesmo do julgamento das 16 ações ainda pendentes no Supremo Tribunal Federal (STF). Também não tem havido debates com as comunidades ribeirinhas. Os militares receberam do Ministério da Integração Nacional R$ 26 milhões para a primeira etapa da obra e não têm dúvidas de que a ela será executada.

A renda per capita do município de Cabrobó, em Pernambuco, caiu de R$ 85,04 (em 1991) para R$ 61,90 (em 2000). O índice de analfabetismo atingiu 32% em 2005, e uma taxa de evasão escolar de 13%. Mesmo estando na beira do São Francisco, há problemas no abastecimento de água e saneamento básico. Cabrobó, a 586 quilômetros de Recife (PE), a 570 quilômetros de Salvador, e a 15 quilômetros do ponto de captação do Eixo Norte da transposição do Rio São Francisco, está entre os 35 municípios mais pobres de Pernambuco. Apenas 30% da sua população, de 28 mil habitantes, dispõe de saneamento básico e a água encanada existe basicamente na sede. O desemprego urbano e rural, a violência, o tráfico de drogas e a prostituição são alguns dos problemas visíveis em Cabrobó. A maioria da população das 504 cidades da bacia sanfranciscana está em situação parecida com a de Cabrobó, sobrevivendo com os direitos humanos desrespeitados. Se Lula quer, de fato, priorizar os pobres encaminhe um projeto sério de revitalização da bacia do Rio São Francisco e destine o dinheiro da Transposição para um projeto de Convivência com o semi-árido.

Na Fazenda Mãe Rosa, a 15 quilômetros da cidade de Cabrobó, onde está o efetivo do Exército, os desempregados alimentam a chance de conseguir uma vaga nas obras de transposição. São pedreiros, motoristas, operadores de máquinas e auxiliares de serviços gerais que querem trabalhar. “Quero apenas uma vaga, não importando se a obra vai dar certo ou não. O que queremos é emprego”, disse o candidato a uma vaga de motorista, Marcos José de Holanda, de 23 anos. A forma mais econômica de gerar emprego hoje no Brasil é através da realização da Reforma Agrária. Quando se assenta uma família gera-se emprego para de 3 a 5 pessoas.

Maior liderança dos que são contra a obra de transposição do São Francisco, o bispo de Barra dom Luiz Flávio Cappio lamenta a posição do ministro Geddel, lembrando que, antes, no governo passado, ele era contra a obra, mudando de opinião agora, ao assumir o Ministério da Integração Nacional.

Dom Cappio viajou, em 1992, das nascentes do rio São Francisco à foz, durante um ano, conversando com as populações ribeirinhas e exortando-as sobre o dever de defender o rio e os povos da bacia sanfranciscana. Recentemente, o Ministro da (des)integração Nacional, Geddel Vieira, percorreu o Rio São Francisco, das nascentes à foz, em 5 dias, de avião, para prometer compensações que visam cooptar parte das lideranças e líderes políticos. Se fosse de barco, perceberia que dos 1.600 quilômetros navegáveis, em 1000 Kms não é mais possível a navegação.

Nos arredores da aldeia dos Tumbalalás, com 4.000 indígenas, ficam as lavouras de cebola, arroz, abóbora, milho, feijão e outras culturas, além dos pastos onde são criados bodes, ovelhas e poucas cabeças de gado. “Tem dia que a gente dorme com o rio vazio e acorda com ele cheio, pois esse controle do nível da água é feito de acordo com os interesses de quem controla o lago artificial da hidrelétrica de Sobradinho. O projeto de transposição engloba a construção de mais duas barragens, reforçando a estatização da água do São Francisco. Isso quer dizer que as pessoas que cultivam suas lavouras e criam seus animais em ilhotas podem acordar de manhã e descobrir que perderam tudo com a inundação provocada pela abertura das comportas dessas duas novas barragens”, argumentou Maria José Marinheiro, a Maria Tumbalalá, uma das líderes do grupo.

O cacique da aldeia Pambu, Cícero Romão Gomes ressalta que a construção das barragens previstas no projeto de transposição causará danos aos ribeirinhos. “O São Francisco é controlado hoje por uma barragem. Sofremos na época do apagão, em 2003, porque eles fechavam a represa em Sobradinho e os barcos não passavam em determinados pontos do rio próximo à aldeia, por causa da formação de bancos de areia. Agora, todo o plantio do período de vazante, de onde tiramos nosso sustento, poderá ser perdido com essa continuação da estatização das águas, que deveriam ser controladas por Deus”, disse o cacique. Segundo ele, os tumbalalás não foram ouvidos durante o período de discussão sobre o projeto de transposição.

Assim como seus co-irmãos indígenas trukás, os tumbalalás reclamam da escassez de peixes no rio São Francisco, sobretudo após a inauguração da barragem de Sobradinho (BA). “Quando eu era criança, minha mãe ralava mandioca enquanto esperava a fartura de peixes retirada do rio. Hoje eu choro porque é impossível sobreviver da pesca como antigamente, da riqueza do São Francisco. Com essa transposição, não sei o que será do nosso povo que hoje está na juventude”, disse Ernestina Gomes do Nascimento, 75 anos, tumbalalá nascida e criada na aldeia Pambu, em Abaré.

Outra Tumbalalá, Maria de Lourdes Gomes, 80 anos, irmã de dona Ernestina, também se lembra com tristeza da época em que era possível pescar peixes graúdos no São Francisco. “Era uma fartura e hoje o peixe está cada vez mais difícil. E o pior é que estão querendo tirar água do rio e levar para longe, enquanto nosso povo continua com sede. Mais de mil cabeças de bode que são criadas pelo nosso povo precisam ser levadas a uma distância de 2 km, na margem do rio, para que os bichos consigam tomar água”, lamentou. As irmãs do povo Tumbalalá afirmam que estão revoltadas com o presidente Lula, por causa das obras de transposição. “Ele fala em combater a fome, mas pode aumentar ainda mais o sofrimento das pessoas pobres”, disse Maria de Lourdes. “Se eu me encontrasse com o Lula, subiria no palanque e mostraria para ele a bobagem que está fazendo com essa história de transposição”.

Os pescadores que dependem do rio São Francisco para sustentar a família estão assombrados com o fantasma das obras de transposição. Aqueles que conseguiam pescar mais de 100 kg de peixe por semana nas águas que banham o município de Cabrobó, no sertão pernambucano, hoje não pegam 30 kg num mesmo intervalo, segundo Gildomar Expedito da Silva, 31 anos.

Para dizer que não se trata de história de pescador, Gildomar tem uma teoria para a preocupação dos moradores de Cabrobó que precisam do São Francisco para a subsistência. “Os peixes estão cada dia mais raros porque os maiores, como dourado e surubim, sobem o rio na época da desova. Quando nascem, os filhotes ficam presos na represa de Sobradinho e não conseguem mais descer. Como vão construir mais barragens agora, com esse projeto de transposição das águas, nosso medo é que diminua ainda mais a quantidade de peixe no curso do São Francisco, onde pescamos”, disse.

De acordo com Gildomar, apenas peixes de pequeno porte, como pescada, traíra e piranha são encontrados com mais facilidade no rio. As tilápias, espécie um pouco maior, só são achadas de vez em quando, de acordo com o pescador. “A gente perde dinheiro porque o peixe é pequeno. Vendemos qualquer um a R$ 2,50 o quilo. Os peixes de grande porte, como os surubins de 20 kg a 25 kg ou o piau, que chega a 10 kg, são vendidos a R$ 7. Mas esses só aparecem aqui trazidos em câmaras frias, por vendedores que vêm de fora”, afirmou Elizângela de Souza, 20 anos, mulher de Gildomar.

Elizângela disse que cresceu vendo o pai, Raimundo Alves dos Santos, 44 anos, pescando no Velho Chico. “Meu pai mexe com pesca há 32 anos e eu nunca o vi tão preocupado com a falta de peixe. Alguns filhos já se casaram e saíram de casa, mas ele ainda tem duas crianças e mulher para sustentar. Se a situação piorar mais com essa transposição, teremos que procurar outro meio de vida”, disse.

Quem pesca no São Francisco para ter o que comer em casa também lamenta a transposição. Na manhã do dia 20 de maio (de 2007), Luiza Maria da Conceição, 55 anos, tentava pegar o que seria o almoço do dia, próximo à ponte que leva à ilha de Assunção, em Cabrobó. Ela disse que estava pescando há mais de três horas. Na sacola, havia apenas um pequeno piau, com menos de 300 g. “Tem dia que eu passo a manhã inteira aqui e não vem nada na linha. Se tirarem água do rio, vai ser muito ruim para nós”, afirmou. “Se a gente tiver apenas peixe e farinha em casa, não passamos fome. Quem vive às margens do São Francisco não está satisfeito com essa transposição, porque temos medo de que as obras sequem o rio”, disse Luiza.

O Atlas do Nordeste, elaborado por técnicos da CODEVASF (Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco), para a ANA – Agência Nacional de águas – demonstra a disponibilidade hídrica no Nordeste e alternativas ao projeto da transposição. Prescreve 530 obras para resolver o problema da “escassez” de água no Nordeste.

Roberto Malvezzi, assessor da CPT e um dos maiores conhecedores da questão da água no mundo, alerta: “As obras da transposição são decididas pelo capital econômico e financeiro, que é o mesmo que administra o País há quinze anos, desde o Governo Itamar. É que quando chegou ao poder um novo grupo no Ceará, liderado pelo Ciro Gomes e pelo Tasso Jereissati, ele projetou todo um sistema de desenvolvimento para aquela região, que incluiu a construção do Porto de Pecem, a construção da Transnordestina, que é a estrada de ferro que vai levar os produtos até o Porto, e o complexo industrial do Porto de Pecem, inclusive com siderurgia. Para todo esse projeto econômico, além do complexo de indústria de ferro, e também em função da irrigação e da criação de camarão em cativeiro, eles precisam de água. Então, a transposição, na verdade, é uma peça de um projeto de desenvolvimento maior, muito mais amplo. E, como num projeto de desenvolvimento desses envolve muito capital, muito dinheiro (só a transposição está orçada em quase sete bilhões de reais), todos os envolvidos com o agronegócio têm interesse nisso. Na verdade, mudam o governo e os ministros, mas o projeto de transposição nunca sai de pauta. O Ministério da Integração está a serviço deste projeto há mais de quinze anos. Evidentemente, sabemos que há interesses poderosos, determinados e articulados. Nós temos tentado dizer à sociedade brasileira que o projeto, que aparece como que para acabar com a sede do povo, tem por trás o interesse poderoso da agroindústria, do complexo siderúrgico e de uma elite que irá se beneficiar com essa água. Isto significa que a transposição não tem a finalidade de saciar a sede das pessoas mais necessitadas. Para isso, existem outras propostas, outras alternativas, que nós defendemos, mas, infelizmente, não conseguimos encontrar eco no Governo Federal, que se colocou a serviço desse projeto econômico daquela região do Nordeste.”

Enfim, pela realidade descrita acima, somos radicalmente contra o insano e faraônico projeto da Transposição das águas do rio São Francisco. Queremos sim um autêntico projeto de Revitalização de toda a bacia sanfranciscana e um arrojado projeto de Convivência com o semi-árido.

Frei Gilvander Moreira, Assessor da CPT de Minas, mestre em Exegese Bíblica, professor de Lc e At, assessor de CEBs, CEBI, MST, SAB, membro da coordenação do Movimento Capão Xavier vivo – www.capaoxaviervivo.org
e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br

in www.EcoDebate.com.br – 10/07/2007