O grande canavial, por Mauro Santayana
[Jornal do Brasil] No início dos anos 50, a excelente revista Anhembi, editada por Paulo Duarte, em São Paulo, publicou um ensaio sob o título de A “pastorização” do Brasil. Apesar de me recordar da essência do texto, a memória me nega hoje a identidade de seu autor, mas é quase certo que se tratasse do próprio e polêmico diretor da publicação. Seria bom que a Unicamp, proprietária do acervo do intelectual, reeditasse o artigo. Ele é atualíssimo, quando o presidente Bush visita o Brasil.
O texto, e recorro à memória, denunciava o projeto norte-americano de transformar o Brasil no celeiro do Ocidente, dificultando a sua industrialização e favorecendo as atividades agropastoris. O autor do estudo lembrava uma das razões que haviam levado Tito a romper com Stalin, um pouco antes. Moscou queria explorar a excelente fertilidade do Vale do Danúbio, transformando-o em fornecedor de comida para os países socialistas industrializados (Alemanha Oriental e Tcheco-Eslováquia) e, no excedente, para a China. Tito se insurgiu contra o projeto, criou seu próprio modelo de socialismo, o da co-gestão, e assegurou a unidade da Iugoslávia. A Romênia, a Bulgária e a Hungria sentiram-se estimuladas a oferecer ligeira resistência a Moscou, obtendo nichos compensatórios de produção industrial.
A isca atual para a pastorização do Brasil (com desculpas pelo neologismo já velho) é o etanol. Os Estados Unidos, elogie-se sua inteligência estratégica, pensam longe. Seu projeto dos anos 50 se frustrou, diante da obstinação de Vargas e de Juscelino em industrializar o Brasil. Agora, os norte-americanos percebem que não só o petróleo escasseia, o que o tornará sempre mais caro, como podem perder as fontes supridoras, ao ficar sem o controle do Oriente Médio e do Cáspio. A região, que foi dos motivos centrais das duas grandes guerras do século passado, pode ser a forja da terceira, uma vez que a Rússia e a China, unidas, representam poder bélico considerável, e a ambas não interessa o predomínio absoluto do Cáspio e do Golfo Pérsico pelos anglo-saxões.
A força dissuasória de Pequim e de Moscou já se está fazendo sentir em Washington. Para os Estados Unidos nada é melhor do que transformar o cerrado e a floresta amazônica em vastíssimos canaviais. Voltaremos, assim, ao ciclo econômico dos dois primeiros séculos (16 e 17) da ocupação brasileira, quando só produzíamos açúcar e aguardente nos rudimentares engenhos do litoral.
O governo brasileiro parece fascinado com o projeto de produzir energia a partir dos vegetais, e de exportá-la para o mundo. Trata-se de jogo perigoso. Não será possível utilizar as vastas áreas agriculturáveis necessárias a essa produção maciça, sem prejudicar a produção de alimentos para a crescente população brasileira. Mas este é só um dos problemas. Outro será a devastação de áreas naturais, como as que restam do cerrado brasileiro, com prejuízo para o meio ambiente, muito maior do que a devastação de hoje. E o mais grave deles será o político, com a dependência do mercado norte-americano, principalmente se o projeto etanol for, como se divulga, financiado ou subsidiado pelos Estados Unidos. Se amanhã pretendermos fugir a esse contrato, poderemos ter o destino do Iraque.
O presidente George Bush, que chega ao Brasil amanhã, deverá ser recebido com o respeito que merece o povo norte-americano, que ele representa. O sentimento nacional contra a política de Washington deverá ser contido. Mas será erro terrível, e talvez irremediável, transformar o país em produtor preferencial de álcool para o consumo dos Estados Unidos.
(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pelo Jornal do Brasil – 07/03/2007