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Artigo

Outros arrastões, Frei Gilvander Moreira

[EcoDebate] No dia 07 de fevereiro (de 2007), o menino João Hélio, de apenas seis anos de idade, foi arrastado em um automóvel, por bandidos, numa distância de sete quilômetros na cidade do Rio de Janeiro. O crime bárbaro chocou o povo brasileiro. Não poderia ser de outra forma. As conseqüências da ação dos bandidos e a condição da vítima deixam-nos perplexos. A que ponto chega a nossa sociedade!

Esse fato nos remete imediatamente a duas reflexões necessárias. A primeira, para o risco dos oportunistas que aproveitam o momento de comoção para fazerem os seus discursos retrógrados e cujas proposições apontam sempre para as mesmas soluções comprovadamente ineficazes contra o aumento da criminalidade e da violência. Um grupo de parlamentares está desengavetando seis propostas que tramitam na Câmara dos deputados sobre a redução da maioridade penal. Não é com mais repressão que a violência será superada.

A segunda reflexão aponta para o fato de as pessoas se comoverem na medida em que a mídia divulga exaustivamente o fato. No entanto, podemos constatar que outros arrastões tão perversos e tão danosos levam à morte milhares de pessoas e quase não são divulgados. Muitos fatos já se tornaram banais para a mídia, outros são vistos às avessas da realidade, as vítimas é que são vistas como algozes. Vemos que a violência crônica que se perpetua na sociedade deixou de provocar perplexidade, assim, não ganha espaço na mídia. Não sendo divulgada, não causa comoção, nem indignação.

A Reforma Agrária está sendo arrastada há 506 anos por uma iníqua estrutura fundiária, onde impera o latifúndio, o agronegócio e a violência. Tudo manipulado ao gosto dos grandes proprietários de terras aos quais não interessam mudanças. O povo pobre permanece sem acesso ao trabalho, à moradia, à dignidade. Os povos indígenas, entre eles o povo Xavante, foram arrastados de suas terras por fazendeiros e grileiros durante séculos. A morosidade do Poder Judiciário fez o povo indígena Xavante sangrar quase à extinção. Somente agora a justiça deu-lhe ganho de causa e o direito de voltar para as suas terras no Mato Grosso. Mais de dois terços deste povo morreu à mingua. Os povos Guaranis e Tupinambás foram arrastados de suas terras pelo jugo da Aracruz Celulose no Espírito Santo.

Os negros vêm sendo arrastados, inicialmente pelos traficantes internacionais, depois pelos capitães do mato de ontem e de hoje: preconceitos de toda sorte, racismo, apartaid social, as favelas que perduram por mais de 300 anos. São dilacerados nas piores escolas, nas moradias subumanas nas áreas de risco, no cultivo das piores terras, na condenação sem julgamento dos milhares de jovens negros que lotam as cadeias.

O desemprego estrutural arrasta milhões de brasileiros para “viver de bico” sem nenhum direito trabalhista. A falta de política de saúde e as condições subumanas de gestação e infância arrastaram 14% da população para algum tipo de deficiência física e/ou mental.

Existe no Brasil o arrastão na comunicação social. Apenas seis redes privadas controlam 667 veículos de comunicação, emissoras de TV, rádio e jornais diários, atingindo 87% dos domicílios em 98% dos municípios brasileiros. A concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucas famílias arrasta o direito à informação imparcial, asfixia os meios de comunicação alternativos e impede a democratização da informação.

Grande parte da juventude, excluída da escola e da oportunidade do primeiro emprego, vai sendo arrastada para a criminalidade, para o narcotráfico e para o mundo da violência. Milhares de jovens são assassinados antes dos 25 anos de idade ou vai parar atrás das grades.

Some-se que um mês e meio de trabalho do povo está sendo arrastado a cada ano para os ralos da corrupção. Dinheiro solapado de diversos projetos sociais. Os banqueiros, apoiados no sistema financeiro que mantém juros escorchantes e altas taxas de lucratividade (usura disfarçada), arrastam montanhas de dinheiro da população para as suas fortunas pessoais.

Mais de 1 milhão de famílias de trabalhadores rurais, sitiantes, meeiros e pequenos agricultores já foram arrastados de suas terras pelas águas das barragens das hidrelétricas que vão destruindo identidades, devastando o meio ambiente e gerando exclusão social. Tudo sob o auspício das autoridades que assumem o falacioso discurso do desenvolvimento econômico e do progresso. No entanto, o que vemos é mais exclusão, mais concentração de riqueza em poucas mãos.

Milhares de nascentes, lagoas, córregos e rios estão sendo arrastados pela fúria das mineradoras, monocultura do eucalipto, uso predatório dos bens naturais e falta de políticas públicas na área do saneamento básico.

No cerrado brasileiro, 93% da reserva total, existente em 13 estados do Brasil, já foram arrastados pelas correntes dos tratores de esteira e pelas motos-serras. Após ser transformado em carvão, o cerrado é arrastado para dentro das caldeiras das siderúrgicas, que por sua vez arrastam para o desolamento o esforço de todos os brasileiros, numa transação ridícula que se perpetua: o consumo de tanta matéria prima, com tanto dano ambiental, para a exportação de produtos primários. Indústria que gera parcos empregos e cujo resultado econômico só serve para pagar o serviço das dívidas e(x)terna e interna contraída pelo governo.

Grande parte da Amazônia está sendo arrastada pelas madeireiras, pelos pecuaristas e pela monocultura da soja, deixando para trás uma “sojeira” social e ambiental sem tamanho. As sementes transgênicas aumentam a produção, mas estão arrastando milhares de espécie de sementes para a extinção. A biodiversidade fica mais pobre, ganham as multinacionais do agronegócio e perde a humanidade toda.

Entre 1970 e 2003, o modelo do pseudo-desenvolvimento capitalista arrastou 30% de diversidade biológica do planeta. Se normalmente desaparecem, no processo normal de evolução, 300 espécies de seres vivos por ano, atualmente, devido à voracidade consumista, desaparecem mais de 3.000 espécies. É mais um viés da devastação ecológica, um arrastão ecológico.

O (neo)pentecostalismo católico e evangélico está arrastando muita gente para espiritualismos que colocam “panos quentes” em cima de muitas opressões. A baixaria da mídia está arrastando meninas e adolescentes para a gravidez precoce. A violência banalizada arrasta o medo para dentro das pessoas e alimenta a indústria de segurança. O economicismo arrasta muita gente para a redução da vida à dimensão econômica. Só se pensa em dinheiro. “Quanto ganharei com isso?”, pergunta uma multidão que se ajoelha diante do deus capital. Se olharmos bem, há muitos outros arrastões que nos estão passando despercebidos.

Diante de tantas constatações desoladoras, é preciso fazer algo, e urgente. Ter a consciência de que tudo isso o que está acontecendo é o resultado de políticas equivocadas que estão em curso, há muito tempo, no Brasil.

A qualidade das políticas sociais na área do trabalho, saúde, educação e segurança social era o critério pelo qual se aferia a qualidade das ações governamentais. A segurança dos cidadãos frente à violência, o crime e os acidentes estava intimamente ligada ao bem-estar, sendo vista como resultado dele. Todavia, com o avanço do neoliberalismo e o colapso do socialismo real tudo começou a mudar. As políticas sociais começaram a deixar de ser prioridade e deixaram de ser vistas como fator de segurança. Agora, a segurança é que passa a ser a prioridade dos governos. A segurança internacional foi confiada aos Estados Unidos. (E que segurança?! Em nome da democracia atrocidades e desrespeito aos direitos humanos são cometidos). O aumento da criminalidade, a imigração e o terrorismo vieram dar força a essa mudança. Aumentaram os orçamentos públicos da segurança, ao mesmo tempo em que surgiu uma nova indústria da segurança; diga-se, uma das mais rentáveis nos dias atuais.

Como resultado desta mudança, vemos que pode faltar dinheiro para as políticas sociais, todavia há uma grande pressão para o investimento na segurança. O declínio do bem-estar (se é que houve no Brasil) e o aumento das desigualdades não são considerados como fatores de insegurança. Nas relações entre cidadãos, a solidariedade básica, a hospitalidade, a curiosidade desprevenida e a ajuda mútua vão sendo substituídas pela suspeita que temos de estranhos, xenofobia, preferência pelo familiar e privado, condomínios fechados e, no limite, guerra civil, toques de recolher.

Penso que devemos ter a humildade de perceber que a questão da violência na atualidade, não apenas no Brasil, mas na maioria dos países, cujo paradigma é a chamada democracia liberal, é o resultado do descaso das políticas públicas nas áreas sociais e do total abandono em que foram condenados os empobrecidos. Nenhum marginal caiu de um disco voador, vindo de um planeta estranho. É o produto de uma sociedade que a cada dia se torna mais esquizofrênica e indiferente ao outro. Uma sociedade que banalizou os diversos atos de violência, os arrastões como mostrados acima. Continuar concentrando os nossos esforços apenas para garantir recursos na área da segurança, em prejuízo da retomada de um projeto de justiça social e de construção de uma sociedade sustentável, é mais um tiro no pé. É um golpe fatal contra qualquer possibilidade de paz social e de democracia no Brasil!

Frei Gilvander Moreira Mestre em Exegese Bíblica e assessor da CPT, CEBI, MST, MAB e SAB.
E-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br

in www.EcoDebate.com.br – 15/02/2007