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Artigo

Aquecimento, o maior inimigo, por Anatol Lieven

“Se as estimativas conservadoras do relatório de Stern estiverem corretas, já em 2050 os efeitos da mudança climática poderão ser tão fortes a ponto de arruinar as sociedades do Paquistão e Bangladesh”

[O Estado de S. Paulo] Todo sistema político, social e econômico já criado encontrou, cedo ou tarde, um desafio que sua própria natureza o impediu de superar. O sistema de governo confuciano da China imperial, que durou mais de 2 mil anos, ainda pode ser considerado o mais bem-sucedido da História.

No entanto, por fundar-se em valores de estabilidade e continuidade, e não de dinamismo e inventividade, ele acabou por se mostrar incapaz de sobreviver face ao capitalismo imperial ocidental.

Para as economias de mercado, e para o modelo ocidental de democracia ao qual elas têm sido associadas, o desafio existencial no futuro previsível será o aquecimento global.

Outras ameaças, como o terrorismo, poderão ser prejudiciais, mas nenhuma outra ameaça ou combinação de ameaças poderá destruir nosso sistema inteiro. Como a recente comissão oficial britânica presidida por Nicholas Stern afirmou acertadamente, a mudança climática “é o maior e mais amplo fracasso do mercado já visto”.

A questão que agora enfrentamos é se o capitalismo global e a democracia ocidental podem seguir as recomendações do relatório de Stern e fazer os ajustes econômicos necessários para manter o aquecimento global sob controle que nos permita preservar o sistema; ou se o sistema depende tanto do consumo ilimitado a ponto de ser, por natureza, incapaz de exigir até pequenos sacrifícios.

Se a segunda hipótese prevalecer e o mundo sofrer uma mudança climática radicalmente destrutiva, precisaremos reconhecer que tudo que o Ocidente hoje representa será rejeitado pelas futuras gerações.

O sistema capitalista democrático será visto como completo fracasso enquanto modelo para a humanidade e guardião dos interesses humanos essenciais.

Clima e política

Até mesmo as previsões relativamente conservadoras oferecidas pelo relatório de Stern – de uma queda de até 20% do PIB global anual até o fim deste século – implicam uma crise na escala da Grande Depressão dos anos 30.

Como sabemos, os efeitos dessa depressão não se limitaram à economia. Em grande parte da Europa e no Japão, democracias entraram em colapso e foram substituídas por regimes autoritários.

No entanto, como o relatório deixa claro, se continuarmos agindo “como sempre” quanto à emissão de gases do efeito estufa, não precisaremos esperar o fim deste século para ver conseqüências desastrosas.

Muito antes disso, uma combinação de enchentes, secas e fome destruirá países em muitas das áreas mais pobres da Terra – como já ocorreu na Somália.

Se as estimativas conservadoras do relatório de Stern estiverem corretas, já em 2050 os efeitos da mudança climática poderão ser tão fortes a ponto de arruinar as sociedades do Paquistão e Bangladesh.

A essa altura, não só a atual preocupação obsessiva com o terrorismo parecerá insignificante, como também todos os esforços democratizantes perderão sentido. O mesmo acontecerá, é claro, com os esforços dirigidos à redução da pobreza.

E esse é apenas o exame das prováveis conseqüências da mudança climática a médio prazo. Para o futuro posterior, o relatório prevê que, se continuarmos como sempre, o aumento da temperatura global média poderá passar de 5°C.

A julgar pelo que sabemos da história do clima do mundo, isso quase certamente levaria ao derretimento das calotas polares e a uma elevação de até 25 metros do nível do mar. Isso significaria o fim de várias das maiores cidades do mundo.

Se isso acontecer, o que nossos descendentes farão com uma cultura política e de mídia que dedica pouca atenção a esta ameaça em comparação com esportes, bens de consumo, lazer e uma ameaça terrorista comparativamente insignificante?

Eles lembrarão de nós como grandes modelos do progresso e da liberdade? Mais provavelmente, cuspirão em nossos túmulos.

Anatol Lieven é jornalista e historiador britânico

(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pelo O Estado de S. Paulo – 02/01/2007