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Artigo

Transposição do rio São Francisco: um projeto desnecessário, por João Suassuna

Em maio do corrente ano, publicamos um texto na internet intitulado Caneco de Ouro, no qual fizemos alusão às potencialidades hídricas existentes no Semi-árido brasileiro para o abastecimento de sua população, mostrando, claramente, que o projeto de transposição do rio São Francisco, da forma pela qual foi apresentado à sociedade pelo governo federal, era desnecessário. Mostramos que a água no Semi-árido existe, e até de forma abundante, faltando, apenas, uma política adequada de distribuição desse recurso natural para satisfação das necessidades da população.

No texto, comparamos o expressivo potencial volumétrico existente nos estados que seriam beneficiados pela transposição (estimado em cerca de 37 bilhões de m³) ao volume pretendido pelo projeto, de cerca de 400 milhões de m³/ano, chegando à conclusão de que esse volume representa, apenas, cerca de 1% do referido potencial. Ainda no texto, comparamos os 400 milhões de m³/ano ao potencial volumétrico, de cerca de 11,48 bilhões de m³, da rede dos principais açudes do Nordeste setentrional que será abastecida pelo projeto de transposição, chegando à conclusão de que esse volume corresponde a cerca de 3,5% desse potencial. O texto mostrou ainda que o projeto evidencia um custo/benefício desprezível, se considerado o número reduzido de pessoas a ser beneficiado, além de ser um projeto desnecessário, por desconsiderar a existência de volumes d´água localmente expressivos para o atendimento das necessidades de toda população. O que seria mais viável tratando técnica e economicamente a questão: estabelecer uma política coerente de uso das águas que já existem, ou transpor as águas do rio São Francisco de cerca de 500 km do local do consumo? Na nossa ótica, a primeira alternativa é mais sensata.

Em meio a nossos estudos, mantivemos contato com Roberto Malvezzi, o Gogó (Coordenador Nacional da Comissão Pastoral da Terra – CPT), que se mostrou interessado em obter informações sobre o regime de enchimento da represa de Sobradinho (responsável pela regularização da vazão média do Velho Chico), com vistas a subsidiá-lo em debate de que iria participar com o ex-ministro da Integração, Ciro Gomes, sobre as questões do projeto de transposição.

Diante das informações que lhe foram prestadas, Gogó procedeu a uma observação por demais pertinente sobre os volumes do rio São Francisco que já estão sendo repassados ao Nordeste setentrional. Referimo-nos àqueles volumes turbinados pelas usinas geradoras no complexo da Chesf e transferidos aos seus usuários em forma de energia elétrica. Segundo suas ponderações, a Chesf é usuária de uma vazão outorgada, no São Francisco, da ordem de 1.500 m³/s, suficiente para gerar e atender grande parte da demanda de energia elétrica nordestina. Cerca de 1/3 dos 1.500 m³/s, ou 500 m³/s, são utilizados na geração e no atendimento da demanda energética da sua região setentrional. Esses 500 m³/s, segundo Gogó, equivalem, respeitando o contingente populacional da região semi-árida, ao fornecimento médio de 750 m³/pessoa/ano, volume nada inexpressivo, se comparado ao discurso de que a região está desabastecida e, portanto, necessitada das águas do rio São Francisco para a promoção do seu desenvolvimento. Com esses números, Gogó mostrou que, apesar de o rio estar dando sinais de debilidade hídrica para o atendimento aos diversos usos ao qual é submetido, já estão sendo transferidos, para o atendimento das necessidades da população que habita a parte setentrional do Nordeste, volumes significativos, embora traduzidos em geração de eletricidade. Gogó ressalta, por outro lado, que o único raciocínio das autoridades encarregadas do projeto se materializa no aproveitamento das águas do rio São Francisco que, segundo elas, estão se “perdendo” para o mar. Seria a hora de se fazer uma análise correta da realidade e tomar as medidas necessárias de acordo com o bom senso, incluindo aí o uso das águas que já existem na região. Porém, essa atitude é difícil de ser compreendida e concretizada pela elite dirigente do país, que vê a lâmpada e o interruptor, mas não consegue estabelecer a conexão entres ambos.

Na nossa ótica, a visão de “perda” de água para o mar é por demais simplista e revela total desconhecimento quando do tratamento da coisa pública, principalmente quando o palco das discussões é o ambiente natural nordestino. As águas dos rios não se “perdem”, pura e simplesmente, para o mar. Elas têm a função específica de possibilitar a existência da vida nos seus estuários, e de promover a manutenção do equilíbrio ecológico tão necessário ao meio ambiente.

Recife, 28 de junho de 2006.
João Suassuna – Engº Agrônomo e Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco

publicado no EcoDebate.com.br – 29/06/2006