EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Artigo

De onde vem o meu salário? artigo de Maurício Gomide Martins

crise ambiental
Imagem: IHU

[EcoDebate] Suponhamos, numa demonstração teórica, que sou uma secretária executiva. Pelo trabalho de 8 horas que executo – digitação, relatórios, traduções, atendimento a diretores, telefonemas – recebo o ordenado de 2.000,00 mensais. Até aí, tudo bem; estou inserida na estrutura social atual, baseada em atividades econômicas, o que é considerado normal pela cultura vigente. Por não influenciar no raciocínio que pretendemos seguir, deixemos para lá diversas considerações que se poderiam tirar dessa situação sob os aspectos políticos, sociais, econômicos. Vamos analisá-la em foco diferente, para aonde nos conduz a curiosidade.

De onde vêm os 2.000 reais? Dirão alguns que a origem é a Casa da Moeda, órgão governamental encarregado de imprimir as cédulas do país. Não. Não nos referimos ao seu aspecto material, mas à sua representatividade. O dinheiro nada mais é que um material figurativo de bens Que bens são esses? Todos os produzidos pelo país: panela, relógio, motor, batata, feijão, etc. Uns são produtos extraídos da terra (mineradoras) e transformados em bens acabados, outros são produtos primários, básicos, dados de graça diretamente pela terra para sustentação da vida. De qualquer forma, é o planeta que nos doa – voluntariamente ou sob tortura – todas essas riquezas.

No raciocínio que se segue, não podemos equiparar os 2.000 reais a 50 quilos de óxido de alumínio ou 200 gramas de ouro. Simplesmente porque, na essência, esses bens não são comestíveis; não são básicos para o ato de viver. Por isso, para melhor entendimento do verdadeiro valor do ordenado da secretária, devemos representá-lo por algo real, fundamental, essencial, vital, comestível e que tenha avaliação universal.

Por escolha, vamos dizer que a secretária recebe por mês 40 sacos de feijão. E, na realidade, ela recebe seu ordenado em feijão, pois essa leguminosa passa a ser moeda. Nessa mesma equivalência, todos nós recebemos nosso salário em feijão. Só que não temos consciência disso; nem a secretária.

No correr do mês, inconscientemente, ela faz um escambo. Troca parte do feijão por frações de arroz, molho, carne, trigo, óleo, etc. E, no final, sobra muito feijão. O que ela costuma fazer? Troca essa sobra por sapato, baton, brinco, gasolina, diversão, conforto, e demais produtos transformados, representativos da atual civilização. Serviço de terceiros também. Mas considere-se que tal item nada mais é do que trabalho de terceiros, tais como manicura, condução, empregada doméstica, cujas energias são produzidas e renovadas pelo feijão. O patrão dessa secretária está lhe pagando com essa leguminosa, a qual ele também recebe.

Quando se compra a prazo, promete-se pagar com feijão que ainda vai ser produzido. É o muito usado e prejudicial saque sobre o futuro, também conhecido por crédito. Compra-se um sapato fiado, baseado na confiança de que o feijão será plantado e colhido, desviando assim para nosso proveito de hoje os recursos essenciais pertencentes às gerações vindouras. Consumir hoje o que pertence ao futuro é um ato ignóbil de covardia e desequilíbrio insano da sincronia natural do tempo.

Em resumo: todos recebem feijão e o trocam por mercadorias que lhes são necessárias e ainda sobra muito feijão. Essa sobra toda – excesso – é trocada por bens não essenciais e prejudiciais ao planeta, porque se transformarão em lixo, tais como produtos industrializados em geral, componentes de moda, supérfluos variados, etc. Por quê? Simplesmente porque o consumidor é impelido pelo sistema no qual está mergulhado a satisfazer, compulsivamente, essas “necessidades”, criadas pela mídia em suas diversas facetas.

E o crescendo de tais necessidades chegou a um patamar tremendamente absurdo. Há mulheres que compram tanto sapato, bolsa, cremes e outros produtos da espécie que não têm tempo para usá-los nem onde guardá-los. Há homens que possuem vários telefones celulares, gravatas, tênis, coleções de carrinhos e outras quinquilharias, orgulhando-se disso e as exibindo aos amigos, num simples comportamento narcisístico. De tempos em tempos, tais possessivos jogam no lixo uma boa quantidade desses objetos para conseguirem lugar onde pôr novas aquisições. Grande parte da população tem esse vício da cocaína, digo, do consumismo, e não tem a exata percepção de seus maléficos atos. A sobra acima de que falamos, corresponde a uma dilapidação dos recursos planetários, pois são feijões sagrados sugados da terra, exaurindo-a e deixando-a cada vez mais anêmica, de uma forma criminosa e desnecessária.

Dessa digressão sobre a origem de nosso salário, deduzimos que ele é, de modo geral, excessivo demais, pois parte pequena atenderá nossas legítimas e básicas necessidades e a sobra terá destino inglório, prejudicial, criminoso, cuja etapa final é o lixo. É por isso que a humanidade já alcançou 25% além dos recursos máximos proporcionados pela dinâmica de reposição natural do sistema ambiental.

Todos os demais seres vivos da Terra vivem apenas com a parte essencial desse feijão e estabelecem um equilíbrio ambiental sadio e admirável. Por que só o homem é agente de uma desarrumação ambiental suicida? Muitos dirão: o homem não é um animal selvagem; ele tem inteligência e não pode viver só com o substancial. Dizemos: na essência e antes de ser inteligente, ele é animal tanto quanto os outros. A única diferença é a posse da inteligência que o torna egoísta, exclusivista e altamente prejudicial aos recursos gerais de subsistência, agindo de forma paradoxal.

Entendemos que o instinto é superior à inteligência humana. Porque ele é lógico, justo, equilibrado, universal e advém de uma Inteligência superior à nossa. Com o abandono de quase todos os instintos e a adoção da capacidade intelectual, o homem tornou-se um animal mentalmente doente. E aí, pela incoerência de seus atos na degradação ambiental, está a prova. A inteligência humana nos foi dada para uso correto e não para ser desviada para a adoração de bens exclusivamente materiais e maléficos a toda a organização natural.

Sabemos que o discurso acima é teórico, filosófico e idealista, mas constitui uma forma diferente de demonstrar o grande e grave malefício do consumismo.

Nosso salário vem da “carne” de nossa mãe Terra. A continuar assim, breve estaremos roendo seus ossos, num processo irreversível.

Maurício Gomide Martins, 82 anos, ambientalista e articulista do EcoDebate, residente em Belo Horizonte(MG), depois de aposentado como auditor do Banco do Brasil, já escreveu três livros. Um de crônicas chamado “Crônicas Ezkizitaz”, onde perfila questões diversas sob uma óptica filosófica. O outro, intitulado “Nas Pegadas da Vida”, é um ensaio que constrói uma conjectura sobre a identidade da Vida. E o último, chamado “Agora ou Nunca Mais”, sob o gênero “romance de tese”, onde aborda a questão ambiental sob uma visão extremamente real e indica o único caminho a seguir para a salvação da humanidade.

EcoDebate, 12/05/2010

Inclusão na lista de distribuição do Boletim Diário do Portal EcoDebate
Caso queira ser incluído(a) na lista de distribuição de nosso boletim diário, basta utilizar o formulário abaixo. O seu e-mail será incluído e você receberá uma mensagem solicitando que confirme a inscrição.

O EcoDebate não pratica SPAM e a exigência de confirmação do e-mail de origem visa evitar que seu e-mail seja incluído indevidamente por terceiros.

Participe do grupo Boletim diário EcoDebate
E-mail:
Visitar este grupo

5 thoughts on “De onde vem o meu salário? artigo de Maurício Gomide Martins

  • Osvaldo Ferreira Valente

    Muito bem, sr.Maurício. Aí está bem colocado o papel do consumismo na degradação ambiental. Já tenho batido na mesma tecla em artigos publicados, mas sem a efiência deste seu.Tenho insistido muito que são os urbanos e não os ruralistas os grandes vilões ambientais. Batem palma, na frente do televisor, quando o ambientalismo joga toda a culpa no desmatamento, bate palmas para as punições e sai dali para comprar o terceiro ou quarto carro para que cada membro da família possa usufruir de um conforto que é um dos que mais degrada e polui.A vaidade, alimentada pelo consumismo, é a grande vilã ambiental. Mas as ONGs preferem rotular outros possíveie vilões. Conheço muito “ativista” fissurado em consumismo. O Greenpeace poderia mudar de rumo e combater o consumo de energia (petróleo, por exemplo). Seria mais eficiente ambientalmente do que brigar contra Belo Monte. Mas talvez, assim, teria que voltar às suas origens. A Amazônia dá mais visibilidade e rende mais. O seu artigo é ótimo. Vá em frente – Osvaldo Valente

Fechado para comentários.