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Notícia

Belo Monte e o Dever de Consulta Prévia do Estado Brasileiro aos Povos Indígenas

O que é o dever de Consulta Prévia?
O dever de consulta prévia é a obrigação do Estado (tanto do Poder Executivo, como do Poder Legislativo) de perguntar, adequada e respeitosamente, aos povos indígenas sua opinião sobre decisões capazes de afetar suas vidas. O objetivo da consulta é chegar a um acordo com os povos indígenas afetados sobre as condições para a tomada de decisão pelo Estado, ou de obter seu consentimento sobre determinada decisão.

O que deve ser prévio?
Os povos indígenas afetados devem receber informações sobre a decisão (leis, decretos, empreendimentos ou outros atos do Poder Executivo ou Legislativo) antes da realização da Consulta. A Consulta deve ser feita antes de ser tomada a decisão que afeta os povos indígenas.

Quem faz a consulta e quem é consultado?
A entidade que consulta é aquela que tem o poder de decidir, bem seja o IBAMA, a FUNAI, o Congresso Nacional, etc. E os consultados são evidentemente aqueles afetados pela decisão objeto da consulta, ou seja, os povos indígenas atingidos pelos empreendimentos ou atividades que o Estado pretenda executar e que afetem suas vidas. Assim, por exemplo, sobre a autorização do Congresso Nacional para autorizar uma obra como Belo Monte somente o Congresso Nacional pode consultar as comunidades afetadas, ou sobre as licenças ambientais para a implementação da obra somente o IBAMA pode consultar os povos indígenas atingidos, e assim por diante.

Quem pode representar os povos indígenas afetados?
Os povos indígenas afetados por empreendimentos ou atividades do Estado deverão ser consultados sobre os mesmos antes da decisão final. O art.19 da Declaração da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas (DNUDPI) e o art.6º da Convenção 169 da OIT (C-169 da OIT) estabelecem que a consulta aos povos indígenas deve ser feita “através de suas instituições representativas”. Cada povo indígena pode determinar livremente, de acordo com seus usos, costumes e formas de organização social qual a instituição representativa para cada consulta sobre decisões que lhes afetem.
No caso de Belo Monte os povos indígenas afetados deverão decidir internamente e comunicar ao Estado quem são seus legítimos representantes para execução da consulta.

A Consulta Prévia e a chamada Oitiva aos índios são a mesma coisa?
A oitiva às comunidades indígenas a que faz referência o parágrafo 3o do artigo 231 da CF é claramente um tipo de consulta prévia. A oitiva se refere à obrigação do Congresso Nacional de consultar sobre uma decisão que evidentemente afeta povos indígenas, como o é o aproveitamento do potencial hidrelétrico de rios em terras indígenas.
Dita obrigação, de origem constitucional, está complementada e reforçada pelo artigo 6o da C-169 da OIT ratificada e incorporada na legislação brasileira no ano de 2003 e pelos artigos 19 e 32 da DNUDPI aprovada pelo Brasil no ano 2007.

Como a Oitiva do Congresso Nacional pode atender à obrigação de Consulta Prévia?
A obrigação do Congresso Nacional de ouvir os povos indígenas afetados deve ser cumprida antes de adotada a mencionada decisão, no caso, o decreto que autoriza e exploração dos recursos hídricos. Congresso Nacional não pode delegar sua competência a nenhum órgão do Poder Executivo, como o IBAMA ou a FUNAI, porque estes não proferem a decisão final no ato legislativo sob consulta. Adicionalmente, o Congresso Nacional deve em conjunto com os povos indígenas afetados realizar processos de consulta que sejam efetivos, ou seja, definindo com os povos indígenas a metodologia e o local adequado, garantindo, a informação prévia, plena e lingüisticamente ajustada aos povos consultados, realizando a consulta em momento pertinente, etc.

Com a oitiva do Congresso Nacional se conclui o cumprimento da obrigação de consulta do Estado brasileiro?
De nenhuma maneira. A adequada execução da oitiva pelo Congresso Nacional esgotaria a obrigação deste de consultar sua sobre a decisão política com relação à autorização necessária para explorar o potencial hidrelétrico em terras indígenas, mas em nada se confunde com a obrigação de consulta que também tem o Poder Executivo sobre as demais decisões referentes ao empreendimento.

Segundo a lei, os povos indígenas devem ser consultados também sobre as decisões administrativas que os afetem. Assim, para implementar um empreendimento hidrelétrico que afete povos indígenas, independentemente de estar localizado dentro ou fora de terras indígenas, o Poder Executivo deverá consultar os povos atingidos. Nesses casos, e dependendo do tipo de decisão que se trate, o Poder Executivo pode estar representado pelo IBAMA, pela FUNAI ou pela própria Presidência da República, entre outros.

Qual lei determina a consulta prévia obrigatória pela Administração?
A consulta prévia pela administração é explicitamente obrigatória pelo artigo 6o da C-169 da OIT, e reforçada pelos artigos 19 e 32 da DNUDPI. A obrigatoriedade do direito de consulta está em harmonia com o respeito às formas de organização social indígena e com o reconhecimento dos direitos territoriais indígenas para a sobrevivência e manutenção dos modos de vida indígenas, tal como disposto na Constituição Federal de 1988.

E nos processos de licenciamento ambiental, qual é a diferença entre Audiências Públicas e Consultas Prévias?
As Audiências Públicas e as Consulta Prévias são duas coisas de natureza totalmente diferente. As Audiências Públicas são espaços de informação sobre o processo de licenciamento ambiental para a população em geral cujo objetivo é “expor aos interessados o conteúdo do produto em análise e do seu referido RIMA, dirimindo dúvidas e recolhendo dos presentes as críticas e sugestões a respeito”1. As Consultas Prévias estão dirigidas especificamente aos povos indígenas, com o objetivo de deliberar sobre a oportunidade, as condições e as conseqüências da decisão de implementar ou não um empreendimento ou atividade que os afetem.

As Consulta Prévias devem ser verdadeiras oportunidades de participação dos povos indígenas afetados no processo de tomada de decisão como o objetivo “de se chegar a um acordo ou consentimento com as medidas propostas”2. Ou seja, a Consulta Prévia é um processo de decisão e não uma simples reunião de informação como as Audiências Públicas.

O anterior não exclui a possibilidade dos povos indígenas interessados participarem das Audiências Públicas, ou da realização de Audiências Públicas específicas para os povos indígenas atingidos pelo empreendimento até como parte do processo de informação que incorpora o processo de Consulta Prévia.

Então, quem deve realizar as Consultas Prévias?
As consultas são do Estado com os povos indígenas e sempre devem ser realizadas por quem decide. A consulta prévia jamais poderá ser delegada a uma empresa privada, já que se trata de consulta sobre o conteúdo de interesse público de uma decisão administrativa ou legislativa que unicamente o Estado pode discutir.

Assim, consulta sobre a licença prévia do empreendimento, que é definida pelo IBAMA, somente pode ser consultada pelo próprio IBAMA, não pode a FUNAI ou outra entidade do Estado falar pelo IBAMA e tampouco pode uma empresa realizar tal consulta visto que evidentemente tem interesses comerciais no empreendimento e está impedida de discutir as questões de interesse publico que devem ser colocadas no processo de consulta.

Onde devem ser feitas as Consultas Prévias?
O processo de consulta deve ser construído de boa-fé com os povos indígenas, respeitando suas particularidades e necessidades, inclusive para definir o local da realização das consultas. As consultas devem ocorrer preferencialmente na terra indígena já que é necessário garantir as condições mais adequadas para a participação ampla da população envolvida nas decisões consultadas.

Quando devem ser realizadas as Consultas Prévias?
A consulta deve ser prévia a toda decisão. Não existe consulta posterior a adoção de uma decisão. Nesses casos a consulta perde sentido. Para que perguntar uma decisão que já foi adotada?

Como devem ser realizadas as Consultas Prévias?
O processo de consulta deve ser estabelecido com os povos indígenas e garantir a liberdade de formação de opinião dos povos indígenas e deve estar livre de ameaças de qualquer tipo.

De acordo com a lei, deve ser garantida a circulação e compreensão de informação independente e confiável que ajude aos povos indígenas a avaliar a afetação da obra ou empreendimento em discussão. Dito subsídio deve ser garantido pelo próprio Estado e não pelos empreendedores privados com interesses na aprovação do projeto já que as questões a serem discutidas são de interesse público e não comercial.

Como a FUNAI pode colaborar nos processos de consulta?
Os locais, procedimentos e interlocutores do processo de consulta devem ser o primeiro acordo entre os povos afetados e as entidades públicas obrigadas a consultar suas decisões.

Assim, a FUNAI, como órgão indigenista do Estado brasileiro, pode cumprir um importante papel de facilitador e mediador na construção de um adequado plano de consulta, que inclua o planejamento de atividades, cronograma e orçamento do processo, mas não pode substituir os povos indígenas na interlocução direita com as entidades do Estado obrigadas a consultar.

No caso de Belo Monte é importante começar por construir, por parte dos povos indígenas, uma proposta específica de procedimentos, representantes, tempo e orçamento que implicaria fazer uma verdadeira consulta prévia com todos os povos envolvidos na decisão. Esse é um passo importante na definição dos critérios e parâmetros para aplicação deste direito que pode ser de iniciativa indígena. A construção desta proposta pode ser acompanhada pela FUNAI se os povos afetados assim o desejam.

E se as consultas prévias não são feitas como deveria que é possível fazer?
Como a obrigação de consulta esta consignada em uma lei federal é possível demandar seu cumprimento através de uma ação civil pública contra as entidades que deveriam cumprir com a mencionada obrigação.

No caso de Belo Monte já foram apresentadas algumas ações judiciais relativas ao descumprimento do dever de consulta do Congresso Nacional, que deveria ter ocorrido antes de autorizar o aproveitamento hidrelétrico do rio Xingu. Porém, depois de várias decisões judiciais contraditórias, o STF, o mais alto tribunal de justiça no país, interpretou que os índios poderiam ser consultados depois de adotada a decisão de autorizar o empreendimento.

Qual o problema da consulta ser depois da decisão do Congresso?
A mencionada decisão do Poder judiciário brasileiro é totalmente contrária ao sentido do direito de consulta prévia estabelecido em lei. Isso porque, mesmo que ocorresse hoje, a consulta sobre a decisão de autorizar o empreendimento não teria eficácia se fosse realizada depois dessa autorização do Congresso, a menos que fosse instaurado um mecanismo de consulta capaz de inclusive revisar a decisão tomada. O objetivo da consulta é influenciar as decisões que afetam os povos indígenas e no caso de Belo Monte, não houve tal oportunidade.

O que é possível fazer então?
No caso da falta de consulta aos povos indígenas sobre a autorização de Belo Monte, é possível procurar instancias internacionais para reclamar. A negação do direito de consulta, que esta sendo mal interpretado pelos tribunais nacionais, dá causa a uma ação internacional porque constitui uma violação de um direito internacional que acarreta outras violações de direitos humanos relacionadas ao direito dos povos indígenas sobre suas terras e recursos naturais.

Adicionalmente, é possível entrar com ações no judiciário brasileiro caso as entidades do Poder Executivo não consultem os povos indígenas sobre suas decisões que os afetem. No caso de Belo Monte o IBAMA, a ANEEL e a ANA não têm consultado os povos indígenas afetados, mesmo conscientes dos impactos que estes vão sofrer depois de ter sido terminado e publicado o EIA-RIMA e assim sujeitam-se a tais tipos de ações.

Quais as instancias internacionais para reclamar pela violação do direito de consulta e como podem ser ativadas?
O Brasil é parte da Organização dos Estados Americanos (OEA) e deve respeitar a carta de direitos dessa organização bem como a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. O Brasil também assinou, no âmbito da OEA, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos.

Qualquer violação de direitos fundamentais pode ser denunciada no Sistema Interamericano dos Direitos Humanos do qual fazem parte a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). A violação do direito de consulta sobre um empreendimento que ameaça a terra, os recursos e vida dos povos indígenas constitui uma violação de direitos humanos que pode ser denunciada nas instancias mencionadas.

O que é a CIDH e o que são as medidas cautelares?
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é um órgão do Sistema Interamericano dos Direitos Humanos e recebe denuncias de violações e pedidos de medidas cautelares. A Comissão analisa os casos, solicita informações aos Estados e reúne em audiências os peticionários e o Estado. A Comissão pode adotar medidas cautelares, mediar soluções amistosas, fazer recomendações ao Estado e encaminhar o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Qualquer pessoa pode fazer uma denuncia de violação de direitos humanos à CIDH desde que já tenham se esgotado os recursos internos para a solução do conflito. Mas é preciso informar à Comissão sobre o dano irreparável e a urgência do pedido de medidas cautelares por conta da violação.

No caso de Belo Monte, estão presentes todos os requisitos para um pedido de medidas cautelares e abertura de um caso na Comissão. Os recursos domésticos se esgotaram com a manifestação do STF que aceita que a consulta seja feita apos a decisão. Alem disso violação do direito de consulta ainda torna iminente a violação do direito à terra, à cultura e à vida dos povos indígenas que serão diretamente afetados pelo empreendimento porque o inicio das obras já tem sido anunciado. Portanto, Belo Monte pode ser objeto de pedido de medidas cautelares junto à Comissão.

Existem casos semelhantes?
Em junho de 2009 a CIDH analisou um pedido semelhante ao caso Belo Monte e por meio de medidas cautelares mandou suspender as obras e demais atividades relacionadas com a autorização de construção de uma hidrelétrica no Panamá que afetaria a comunidade indígena Ngöbe. Em setembro de 2009 o caso foi admitido na Comissão. Sobre esse mesmo caso no Panamá, o Relator Especial da ONU sobre direitos indígenas recomendou ao Estado que adote um procedimento de consulta adequado com a comunidade afetada. O Relator recomendou que o Estado adotasse um diálogo com os representantes indígenas com o objetivo de se chegar a um consenso a cerca das condições para que o projeto seguisse adiante de maneira a respeitar o direito de consulta e consentimento. Recomendações similares foram feitas pelo mesmo relator para o Brasil após sua visita em 2008.

1 Artigo 1o da Resolução no 9º de 1987 do CONAMA.
2 Artigo 6º C -169 da OIT aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 143 de 20 de junho de 2002 e promulgada pelo Presidente da República, por intermédio do Decreto nº 5.051 de abril de 2004.

Documento do ISA – Instituto Socioambiental enviado por Rogério Almeida para o EcoDebate, 17/10/2009

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