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Influenza A (H1N1): O medo é mais contagioso que o vírus

Estudantes usam máscaras cirúrgicas na Cidade do México. Foto da AP, no  El País.
Estudantes usam máscaras cirúrgicas na Cidade do México. Foto da AP, no El País.

Depois do terrorismo e da crise econômica, um problema de saúde espalha o temor na sociedade. O alerta se justifica; o alarme não. A inquietação da população pode ser manipulada politicamente

O medo é livre, mas também contagioso. E se há algo mais veloz que um vírus em fase de expansão é a propagação do pânico, como acaba de demonstrar o recente alerta de pandemia pelo vírus da gripe H1N1. Aspectos como a demanda de Tamiflu nas farmácias por parte da população sadia, o sacrifício maciço de porcos, o veto da Rússia aos suínos espanhóis ou o ponto de xenofobia com que se contemplam os mexicanos em alguns locais dos EUA – fatos que não correspondem a razões objetivas – não são danos colaterais da doença, mas variantes diversas do medo como fenômeno de massas, essa epidemia de alarme social que corre paralelamente à real. Porque enquanto a incidência do vírus parece momentaneamente controlada, na internet – verdadeira incubadora de alarmes – e na rua não diminui o medo da pandemia. Mas a quê ele obedece? Há algum mecanismo social que semeie e difunda o temor? Matéria de M. Antonia Sánchez-Vallejo, no El País.

Em uma década marcada pelo terrorismo internacional, primeiro, e pela aguda crise econômica depois, só faltava outra crise de saúde. A reação da população diante da gripe produzida pelo vírus H1N1 oscila entre a apreensão e o terror, entre a preocupação lógica e a hipocondria mais desenfreada. Antes haviam provocado reação parecida a encefalopatia espongiforme bovina (ou “doença da vaca louca”), a síndrome aguda respiratória aguda grave (Sars na sigla em inglês) ou a gripe aviária, para não citar a ameaça bioterrorista do antraz em 2001 ou os atentados de 11 de Setembro e 11 de Março. Fenômenos que não podemos controlar, contingências – fatos que podem ocorrer ou não, como o contágio de um vírus – ou acontecimentos com padrão de repetição disparam o alarme. Mas quando a situação parece estar sob controle, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) e os sistemas de saúde dos países afetados, de onde surge o medo?

“Do contágio da incerteza”, indica o sociólogo Jesús Gutiérrez Brito. “É como um jogo de espelhos. E a especulação em cadeia que ocorre nas pessoas é uma reação quase instintiva, como em uma discoteca quando alguém grita ‘fogo’ e todos fogem, mesmo que não tenham visto chamas nem fumaça. Mais que a gripe em si, a preocupação do vizinho me causa preocupação e assim sucessivamente. Isso é mais angustiante e mobiliza mais que a própria doença. É preciso vê-lo também em termos de espetáculo: dar uma bofetada em alguém na rua não é um espetáculo; contemplá-lo, sim”.

Esse professor de técnicas de pesquisa social na Universidade Nacional de Educação à Distância (Uned) considera que estão ocorrendo “duas epidemias em paralelo, como uma metástase social do espetáculo”. Os novos meios de comunicação informais (fóruns, bate-papos, etc.) aparecem no alvo de alguns analistas quando se trata de buscar uma origem ou um amplificador para esse contágio de apreensão. Não são os únicos meios de comunicação postos sob a lupa. Também estão muitos dos tradicionais. “Os meios de comunicação saturam, aborrecem ou divertem, e isso vale tanto para a pandemia como para a crise financeira global ou qualquer outro assunto. Também sufocam uma informação; no início a informação sobre a epidemia era muito mais terrível que agora, hoje está amansando”, diz Gutiérrez Brito.

A sociedade do espetáculo que o sociólogo descreve também é uma cibersociedade que peneira suas expectativas e suas dúvidas pela rede, por isso o alerta de pandemia de H1N1 não poderia escapar ao crivo da internet. Blogs, redes sociais e mídias on-line veicularam as expectativas da população, com tudo de bom e de ruim que tal possibilidade oferece.

Jesús Flores, professor da Faculdade de Ciências da Informação da Universidade Complutense de Madri e membro do Observatório de Jornalismo na Internet, constata que, ao contrário do que aconteceu com algumas catástrofes naturais – como o furacão Katrina em 2005 -, nas quais a rede foi uma ferramenta muito útil de localização e apoio, na epidemia da chamada gripe suína “a informação que prolifera na internet tem um efeito bem mais adverso”. “Desde o primeiro dia recebi informação procedente de colegas mexicanos indicando que alguns fóruns exageravam, não se adequavam à realidade.”

Uma enxurrada de informação delirante, que se substancia em conteúdos colocados em plataformas fáceis de criar e ainda mais fácil acessar, implica por força – ou pela pressa – não separar o joio do trigo. Assim, junto de “informação verificada e veraz”, diz Flores, multiplicam-se na rede também “simples falatórios ou tergiversações” de informação fidedigna, quando não embustes que veem na epidemia uma conspiração devida a interesses nada obscuros (das companhias farmacêuticas, dos governos para eclipsar o problema da crise, etc.). As teorias da conspiração soltam fagulhas na rede. “Existem 80 milhões ou 100 milhões de usuários de redes sociais. A imensa maioria deve ter recebido nestas duas semanas alguns links de informação relativa à chamada gripe suína. Mas o impacto desse caudal de informação só poderemos avaliar quando se diluir o estado de emergência. Enquanto isso, é a credibilidade da mídia, sobretudo das digitais, que está em jogo”, adverte Flores.

O comportamento de um indivíduo submetido a certas doses de estresse pode acabar contagiando o vizinho, como advertiu o sociólogo Gutiérrez Brito. E isso, entre outros motivos, porque “as emoções negativas são mais impactantes que as positivas”, diz o psicoterapeuta e psicólogo social Luis Muiño, autor do livro “Perder o Medo do Medo”. “Por razões adaptativas, uma pessoa precisa saber o que vai mal, por isso o medo é a emoção mais verossímil. As emoções positivas têm menos impacto, porque são mais difusas, mais mornas. É o que se chama de lei de assimetria hedônica. O negativo o leva ao alerta.”

O papel da informação na geração do alarme também tem muito a ver, segundo Muiño. “A emoção vende; os dados não. E o medo vende mais que a tranquilidade. Tão difícil quanto desmentir um rumor é infundir confiança em uma situação de pânico; de fato, essas histórias não se resolvem, se dissolvem. Dentro de dois meses ninguém lembrará disso, como hoje ninguém lembra da ameaça do antraz.” Também há uma manipulação política do mecanismo do medo, como bem poderia ser o caso de decisões precipitadas como a suspensão de voos para o México ou o veto a produtos suínos espanhóis na Rússia.

“A existência das armas de destruição em massa no Iraque foi o último exemplo a respeito”, lembra Muiño. Mas o medo, por sua vez, também funciona como um mecanismo de manipulação, “na política e inclusive no casal; é algo que existe desde sempre”.

A cidadania revive atavismos e se considera cercada por uma peste de ressonâncias medievais. Além disso, a apreensão chove no molhado; com ou sem gripe o medo é o sentimento humano mais difundido, segundo um estudo do Centro Italiano de Pesquisas Sociológicas (Censis). Essa pesquisa, realizada nas dez maiores cidades do mundo, revela que entre 80% e 90% dos habitantes das mesmas sentem medo; que este é intenso em 40% ou 50% das pessoas e chega a condicionar o comportamento habitual de 10%. Um em cada quatro cidadãos urbanos considera sua sensação vital como “de incerteza”; o medo atinge mais as mulheres, os menos favorecidos, os mais velhos e os menos instruídos, segundo esse relatório. Mas todas essas variáveis justificam a epidemia de medo que brotou depois do vírus H1N1?

“O medo é livre, mas neste caso convém distinguir a lógica preocupação do alarme, que é algo muito diferente do alerta. As autoridades de saúde ativaram o alerta e deram resposta à ameaça, mas o alarme não se justifica”, afirma Andreu Segura, diretor da área de saúde pública do Instituto de Estudos da Saúde catalão e professor associado da Universidade Pompeu Fabra de Barcelona.

O alerta, portanto, é positivo; o alarme é injustificado e improcedente, porque a reação a essa crise apanhou as autoridades de saúde e políticas com os deveres feitos. “O modelo de atuação adotado se baseia no que foi utilizado contra o vírus do tipo H5N1 [o da gripe aviária], assim que já havia muito trabalho feito e isso foi muito útil. Tanto a OMS como os países afetados já tinham tomado medidas”, afirma Segura, que valoriza especialmente o papel dos meios de comunicação tradicionais: “Os meios de comunicação espanhóis deram notoriedade à crise, mas com comedimento nos comentários, espaço para opiniões heterodoxas e menos depoimentos regionais do que nas crises anteriores, como a da gripe avícola”.

Os afetados pelo vírus H1N1 estão distribuídos em 25 países, principalmente México e EUA. A julgar por essa contagem, estaríamos portanto diante de uma crise bem delimitada e de relativa intensidade… em comparação, por exemplo, com os 12 milhões de afetados – 1,5 milhão de novos casos por ano – de leishmaniose, uma das chamadas doenças esquecidas ou não-atendidas que assolam o Terceiro Mundo, como a dengue, o mal de Chagas, o cólera ou a mortífera malária. A desproporção em atendimento e recursos confrontam ambas as realidades, mas os especialistas em saúde consultados salientam a conveniência de não opor nem enfrentar casos totalmente incomparáveis. “Justifico a situação de alerta no caso do vírus H1N1 porque é aguda, mas pediria que se faça também esse esforço no caso das doenças esquecidas, que afetam populações esquecidas. Deveria ser como quando se tem um filho com diarreia e outro com febre: para atender um não se deve descuidar do outro”, salienta Pilar Aparicio, especialista em doenças tropicais do Instituto de Saúde Carlos III de Madri. “Uma criança afetada pela forma visceral de leishmaniose na Etiópia também pode morrer em consequência da enfermidade, mas a resposta que necessitamos para a leishmaniose não é uma medida urgente [como as do vírus H1N1], e sim mais pesquisa e mais ferramentas de controle. A isto se dedicam muito poucas verbas e seria preciso destinar mais”, conclui Aparicio.

Seu colega na OMS Jorge Alvar distingue entre as doenças emergentes – como a atual epidemia -, “que criam alarme social”, e as doenças não-atendidas, como as citadas. “É correto tomar medidas para seu controle, e isso não implica que se desviem fundos que corresponderiam às doenças esquecidas. Não vejo isto como um problema, a crise financeira global é muito mais preocupante. A Espanha é o maior doador do departamento de doenças tropicais não-atendidas da OMS, e esse compromisso não vai decair”, afirma Alvar. “Como indivíduo, não gostaria de contrair uma doença emergente, mas considero oportunas e necessárias as medidas adotadas para enfrentá-la. A gripe avícola provocou poucos casos, mas se não tivéssemos adotado medidas na época hoje não poderíamos encarar com êxito o vírus da gripe H1N1. As doenças emergentes criam uma indubitável inquietação social, é evidente”, diz. Entre outros motivos, porque ocorrem aqui ao lado, no mundo desenvolvido ou em países emergentes; isto é, em nosso mundo.

Enquanto os especialistas avaliam os vírus – os que se dedicam a doenças emergentes são “velocistas”; os que pesquisam doenças esquecidas, “corredores de fundo”, brinca Jorge Alvar -, a encenação da crise poderia ser outro fator coadjuvante do medo. Máscaras, macacões, óculos, roupas brancas, luvas, figuras que parecem tiradas de uma guerra biológica – esta é também uma guerra contra um vírus -, infundem um temor irracional na população.

Apesar de sua aparência futurista, nesta doença planetária que é a gripe de origem suína ressoam ecos distantes de uma praga bíblica, a peste negra medieval; da epidemia que enfrenta o doutor Rieux em “A Peste”, a novela de Albert Camus. Como parteira dessa apreensão pode aparecer também a ciência, que segundo a pesquisa de Censis provoca medo em 13% dos cidadãos “por temor de suas consequências”, enquanto 41% a consideram “um mal necessário”. Para não falar na tecnologia, que assusta 54,3% dos cidadãos, segundo a pesquisa da Censis. No entanto, “a tecnologia é potencialmente boa”, lembra o professor Jesús Flores.

Tão boa que alguns, e não só os fabricantes de máscaras, esfregam as mãos diante do negócio. Os detectores de doentes da nova gripe – sensores que supostamente localizam ao redor do interessado pessoas infectadas, para evitá-las – são vendidos na internet em quantidades escandalosas. E um aplicativo de informática chamado rastreador de gripe detecta casos confirmados ou prováveis, o que, no segundo caso, aumenta a angústia. Porque, como lembra o psicólogo Luis Muiño, “o pior é ter medo do medo”.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

* Matéria [El miedo es más contagioso que el virus] do El País, no UOL Notícias.

[EcoDebate, 14/05/2009]

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