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Artigo

(marolinhas ou marolonas) Alguns lembretes na hora do tufão, artigo de Washington Novaes

[O Estado de S.Paulo] Com a crise financeira global, parece haver ficado para as calendas, aqui, o projeto de reforma tributária que tramita pelo Congresso. É pena. Adia-se mais uma vez a discussão sobre a famigerada “guerra fiscal”, que vai levando para a cucuia as finanças de boa parte dos Estados brasileiros, que insistem na tese de que a concessão de incentivos fiscais é decisiva para a atração de empresas para seus territórios (supostamente em troca da geração de empregos), quando, na verdade, esse argumento, hoje, tem pouco peso, já que todos os Estados oferecem as mesmas vantagens e o que decide mesmo são fatores locacionais, custo de transportes, por aí.

Mas há um ângulo que precisa ser visto com muito mais cuidado. Porque a suposta contrapartida por parte de empresas beneficiadas pela isenção de impostos estaduais e municipais – a criação de empregos – se está esvaindo em muitos lugares, com as demissões de empregados provocadas pela crise. Um exemplo, entre muitos: na concessão de incentivos ao polo farmacêutico de Goiás as isenções chegaram a ser, há alguns anos, em certas empresas, de até R$ 1 milhão por emprego que supostamente seria gerado (no Banco do Povo, mantido pelo governo goiano, um empréstimo – e não doação – de R$ 600 gera um posto de trabalho); agora, o polo farmacêutico já demitiu 1.700 empregados. Sob a alegação de que o custo dos insumos importados subiu muito e não há como competir com fármacos importados da Índia e China.

Outro exemplo poderia ser o do Polo Industrial de Manaus, onde (Agência Estado, 14/1) ocorreram 34% mais demissões em 2008 que em 2007. Se a esse número se juntar o de empregados sem registro formalizado, o número superaria 10 mil, segundo a notícia, em 400 empresas que receberam incentivos e faturaram no ano passado 20% mais que em 2007. No País todo, as empresas incentivadas receberam até aqui benefícios no valor de centenas de bilhões de reais.

Enquanto isso, há quem não goste – como o secretário federal de Assuntos Estratégicos – da ampliação do Bolsa-Família para mais 1,3 milhão de pessoas, com a passagem de seu teto para R$ 137 mensais (ainda abaixo da linha da pobreza, que seria de uns R$ 150 mensais) e a um custo anual de R$ 550 milhões (totalizando na bolsa R$ 11,5 bilhões anuais, ante mais de R$ 150 bilhões em juros pagos pelo governo federal no mesmo período). Segundo o secretário, os muito pobres têm a “cultura da pobreza”; quem deveria ser incentivado são os “batalhadores”, que ampliariam o mercado de consumo. Talvez ele devesse ouvir o IBGE, para quem 40% da queda na desigualdade de renda a partir de 2001 se deve aos programas do tipo do Bolsa-Família e aos que o antecederam e inspiraram. Poderia também tentar conhecer a estratégia das maiores multinacionais, que começaram pelo Sudeste Asiático – e agora implantam aqui (Estado, 21/1) – seus programas de aproximação com os mercados de baixa renda, avançando inclusive com o serviço de vendas porta a porta.

Como ninguém sabe ainda a extensão e duração da crise, embora organismos internacionais digam que ela pode ser menor aqui (graças exatamente ao mercado interno, que inclui os muito pobres), políticas que focalizem até as classes intermediária serão decisivas, já que, segundo a Fundação Getúlio Vargas (11/2), a chamada classe C passou entre 2003 e 2008 a representar 53,7% do total (era 42,99%). Se se somarem as classes D (13,18%) e E (17,68%), vai-se chegar a quase 85% do total. Se se agravar o desemprego nesses estratos, vai-se acentuar muito uma questão: lembra José de Souza Martins (Estado, 9/2) que “o desemprego urbano e industrial é em boa parte disfarce do desemprego rural”; e a Bolsa-Família é “apenas um remendo que atenua a situação para 11 milhões de famílias”. Para ele, “é a família que, ao socializar as perdas no desemprego de um de seus membros, subsidia as empresas beneficiárias da redução dos custos do trabalho e mascara o que o desemprego efetivamente é”.

Então, há pontos cruciais. E o primeiro deles é não permitir um retorno da inflação, pois foi a estabilidade monetária que interrompeu o processo de perda violenta de renda dos menos favorecidos, desde 1994. Segundo – e em parte pelo mesmo motivo -, não permitir a desestruturação da agricultura familiar, que ainda responde por cerca de 20% dos postos de trabalho no País e supre em torno de 70% do consumo nacional de alimentos (uma crise aí certamente significaria também aumento de preços, inflação e menor produção). A iniciativa de ampliar o financiamento à construção de habitações populares também vai na direção correta, dada a sua influência na geração de postos de trabalho.

Mas há alguns flancos a serem trabalhados com muito empenho. Segundo o IBGE (1º/2), o desemprego entre pessoas com mais de 11 anos de estudo passou de 39,3% em 2003 para 52,9% no ano passado. Pretos e pardos significam 52,4% dos desempregados em 2008. Provavelmente isso influencia a estatística citada por Miriam Leitão (27/12) segundo a qual um em três negros entre 16 e 24 anos “está sob algum tipo de supervisão da Justiça Criminal”. É um dos ângulos do grave problema que atinge mais de 50% dos jovens entre 15 e 24 anos e leva parte deles a atividades ilícitas.

Nesta hora, a lição fundamental é a do professor Ignacy Sachs, já citada neste espaço: o problema crucial do Brasil é formalizar o número enorme de pequenas e microempresas, porque são elas as maiores geradoras de postos de trabalho no País. E hoje quase 60% da mão de obra está na informalidade, sujeita a chuvas e trovoadas (o emprego formal beneficia apenas 44,1 milhões de pessoas, segundo o IBGE).

Passou da hora de centrar discussões em marolinhas ou marolonas. Trata-se de dar prioridade a setores e formatos capazes de atenuar a crise para os setores que, não fossem os mais necessitados, ainda são os capazes de nos dar mais condições de superar o vendaval.

Washington Novaes é jornalista E-mail: wlrnovaes@uol.com.br

* Artigo originalmente publicado no O Estado de S.Paulo, 20/02/2009.

[EcoDebate, 20/02/2009]

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