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Artigo

O rosto jovem da violência, por José Graziano da Silva

[Valor Econômico] Três das quatro maiores taxas de homicídio de jovens do mundo estão na América Latina: Colômbia, Venezuela e Brasil protagonizam este pódium sombrio. Há causas evidentes que ajudam a entender o cenário de brutalidade aparentemente descontrolada que, aos poucos, se esparrama das periferias metropolitanas e já se interioriza pelas cidades pequenas e médias.

No Brasil, o Dieese mostra que 45% do total de desempregados têm entre 16 e 24 anos. A OIT informa que entre 15% e 20% dos 70 milhões de jovens latino-americanos também estão desempregados. Um terço perambula entre “bicos & biscates”, numa trajetória de trabalho informal que não cria laços, não habilita para uma cidadania plena.

As estatísticas referentes à escolaridade não são menos preocupantes. De um modo geral elas indicam uma dificuldade crescente dos jovens de conciliar a luta pela sobrevivência com o estudo. Em São Paulo, a principal metrópole latino-americana, 70% dos jovens que têm alguma ocupação só trabalham. E menos de 30% conseguem conciliar o estudo e o emprego.

Pior: cerca de oito milhões de moças e moços brasileiros não estão em lugar nenhum. Não estão na escola, nem no trabalho. A contrapartida desse lugar nenhum é outro buraco negro: 90% dos adolescentes brasileiros internados por terem cometido algum crime não completaram a oitava série. A informação é da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) do governo federal, na pesquisa “Política de Atendimento a Adolescentes em Conflito com a Lei”.

Os jovens habitantes desse “lugar nenhum” formam hoje um exército de vidas descartáveis, posto à disposição do tráfico e do crime organizado.

Há quem acredite que a solução passa apenas por doses adicionais de porrete e grade. No entanto, o mesmo levantamento da SEDH mostra que o número de adolescentes presos no Brasil cresceu 363% nos últimos dez anos. No Nordeste a taxa passou de 500%. Prendeu-se mais, mas a criminalidade entre os jovens não regrediu. Parece uma forte evidência de que a simples redução da maioridade penal pode ser pouco mais que uma resposta fácil, e falsa, a uma equação de variáveis bem mais complexas.

Uma observação um pouco mais rigorosa do assunto nos obriga a examinar, em primeiro lugar, a variável renda. De acordo com o IBGE, dois em cada três dos jovens brasileiros vivem em famílias com renda per capita inferior a um salário mínimo. Dentre eles, mais de 4 milhões de moços e moças pertencem a famílias com renda per capita de até ¼ do salário mínimo, uma linha de pobreza extrema.

Vamos nos aproximando assim de um perfil que oferece maior nitidez à usina produtora de violência e criminalidade. A juventude brasileira hoje é predominantemente urbana: 84% dela vive nas cidades e 31% em regiões metropolitanas. Em São Paulo, por exemplo, dois em cada três dos jovens com idade entre 15 e 19 moram nas periferias. São filhas e filhos de uma urbanização que fez a população favelada brasileira crescer seis vezes mais que a das áreas formais, entre 1980 e 2000.

Jovens habitantes desse “lugar nenhum” formam hoje um exército de vidas descartáveis, posto à disposição do tráfico

O saldo mais visível desse desequilíbrio é que 41% das moradias do país são “precárias”. Hoje isso significa 20 milhões de tetos onde se acotovelam 70 milhões de pessoas.

“Precário” , neste caso, quer dizer muitas coisas. Todas elas insuportáveis para um jovem bombardeado por uma cultura de consumo compulsivo, que lhe sonega os meios de satisfazê-lo. Saneamento, arruamento, luz, escolas, praças, lazer, segurança, emprego, alimentação digna e saudável, ônibus e até sossego para dormir, ou estudar, não existe nesses lugares “precários”.

A procura da origem desse processo nos levaria ao êxodo rural intenso observado no Brasil entre meados dos anos 50 e fim da década de 80. Essa dinâmica adquiriu vida própria e, sobretudo, a partir dos anos 90, seus personagens já não são mais brasileiros egressos do campo, mas desempregados ou mal empregados expulsos pelo aluguel para um barraco nas favelas.

Essa trágica peregrinação obrigada foi realizada por levas sucessivas de sem-sem nos últimos 25 anos. Famílias sem emprego, sem teto e sem rede de proteção social formaram uma imensa coluna marchando rumo a periferias tão desprovidas de dignidade quanto eles.

Reverter o locus onde germina esse desalento e revolta é o grande desafio embutido na disposição do governo Lula de investir R$ 120 bilhões em infra-estrutura social e urbana (saneamento, habitação popular, Luz Para Todos e recursos hídricos), nos próximos quatro anos de vigência do PAC. É o objetivo estrutural, também, de programas e ações educacionais, como o Fundeb, Prouni, o ProJovem e, agora, também o PDE. A cogitada extensão do Bolsa Família a adolescentes de 15 a 17 anos é parte do esforço para reduzir a evasão escolar recorde nessa faixa etária.

Mas é preciso também pensar no passo seguinte que garanta a sequência dessa ressocialização. Por exemplo, oferecer a esses jovens ocupações associadas aos serviços de assistência social, educação e saúde, bem como à manutenção de suas próprias residências e comunidades.

O governo federal já dispõe de poderosos instrumentos para isso e pode dar maior apoio ao microcrédito, combinado com maiores estímulos à Lei do Aprendiz e à readequação do Programa Primeiro Emprego, equivocadamente lançado na conjuntura recessiva de 2003, quando interessava ao setor privado demitir e não contratar. Além disso poderia criar um programa especial para os herdeiros de pequenos agricultores comprarem as partes ideais restantes, evitando assim uma minifundização indevida e, também um programa inspirado no antigo Projeto Rondon para estimular a interiorização de jovens profissionais de ensino técnico e superior.

O crescimento cada vez mais encorajador da economia brasileira mostra que tudo isso é possível. E que a hora é agora, sob pena de comprometer mais uma geração de brasileiros pela omissão do poder público federal e local de pavimentar o caminho do futuro para nossa juventude atual.

José Graziano da Silva é representante regional da FAO para América Latina e o Caribe.

(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pelo Valor Econômico – 23/04/2007