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Cultura urbana: como viver num gigantesco e insustentável organismo? artigo de Rualdo Menegat

Aterro Sanitário de Granmacho, RJ, em foto de arquivo ABr
Aterro Sanitário de Granmacho, RJ, em foto de arquivo ABr

A cidade é o maior e mais complexo artefato criado pela humanidade. As três maiores conurbações já concentram mais de cem milhões de pessoas cada uma, como aquela que se situa no eixo Boston-Washington, incluindo Nova York, nos Estados Unidos. Ou, no Japão, aquela que se aglomera no eixo Tóquio-Osaka e, na Europa, a que reúne Berlim-Amsterdã-Paris. O historiador Arnold Toynbee denominou essas grandes aglomerações de “megalópoles”. Já o pesquisador Constantinos Doxiadis chamou a grande cidade-múndi que vai se alastrando como uma rede contínua sobre a superfície continental do planeta de “ecumenópole”.

Embora o desenvolvimento tecnológico e científico atual e os avanços empreendidos pela Ecologia Urbana, devemos reconhecer, por mais paradoxal que possa parecer, que não há um saber da complexidade urbana cultural, social, territorial e ambiental que esteja acessível aos cidadãos e gestores para melhorarem suas vidas nas cidades. Um exemplo disso é a maneira como são vistas as questões da água e dos resíduos sólidos.

Diariamente as cidades consomem milhões de toneladas de todos os tipos de materiais: sólidos, líquidos e gasosos. Todos eles são extraídos da natureza, e mesmo elementos químicos sintéticos, como o radioativo tecnécio, utilizado em hospitais, são produzidos a partir de minerais. Uma vez manufaturados, os produtos são colocados ao dispor do cidadão como num passe de mágica em que não há nem um ponto de partida nem de chegada na natureza. Nas prateleiras de um supermercado, incontáveis bens de consumo estão ali, esperando o consumidor. Se este não vier, os produtos serão simplesmente descartados, num impressionante sistema de consumismo e desperdício.

Por isso, diariamente as cidades também produzem milhões de toneladas de todos os tipos de rejeitos sólidos, líquidos e gasosos. Alguns, mais inertes, como a caliça da demolição de prédios. Outros, muito tóxicos e perigosos, como o lixo atômico, hidrocarbonetos, mercuriais, entre tantos mais.

A voracidade urbana

As cidades, em sua voracidade de consumo e desperdício, produzem quatro modos gerais de impacto nos ecossistemas onde estão encravadas. O primeiro é a forma pela qual elas ocupam o território, vedando o solo e modificando profundamente a rede de rios e o ciclo hidrológico. O segundo é a extração predatória dos insumos de que precisam para sua sustentação, trazendo para seu domínio uma quantidade muito maior de elementos do que a sua capacidade de consumi-los, semelhantes a um “Voracino”, monstro mitológico inventado, sempre querendo mais coisas do que aquelas suficientes para sua sobrevivência.

O terceiro modo deriva do fato de que a cidade, por ter um metabolismo tão ineficiente, precisa de grandes áreas para descartar seus rejeitos. No Brasil, os resíduos sólidos – paradoxalmente chamados de lixo (do latim lixius, “água ou objeto sujo”) – são dispostos na maior parte dos casos de forma inadequada, a céu aberto sobre o solo, inundando áreas naturais periféricas à urbe. Os resíduos líquidos ou efluentes, que são descartados na água de rios e lagos, poluem os mananciais que abastecem os humanos. Os resíduos gasosos ou emissões, lançados no ar, formam bacias atmosféricas contaminadas sobre as cidades, degradando o ar que os cidadãos respiram.

Por fim, grande parte desses materiais descartados contamina o meio onde são jogados,

isto é, por serem reativos, modificam a composição e a dinâmica dos ecossistemas, produzindo efeitos seqüenciais, como a chuva ácida, e a contaminação dos solos, das águas superficiais e subterrâneas. Tais efeitos, longe de serem apenas locais, atingem hoje vastas áreas e volumes da litosfera, da hidrosfera, da biosfera e da atmosfera – as grandes esferas planetárias –, produzindo fenômenos cujos efeitos mais profundos são ainda pouco conhecidos pela ciência, como o aquecimento global e a perda da biodiversidade. A humanidade tecno-urbanizada está alçada a agente geológico, isto é, a ser capaz de alterar os sistemas numa escala planetária e de longa duração temporal.

O metabolismo do organismo urbano, por ser notadamente deficitário, assemelha-se ao de um parasita, possuindo um fluxo linear. Ele extrai seus suprimentos da natureza e, em troca, devolve resíduos, efluentes e emissões, inertes e contaminados, em grandes proporções. Trata-se de um metabolismo linear cida, pois se realiza a expensas do extermínio de outras formas de vida.

Ciclo da água urbana

Com a água também se verifica o mesmo fluxo metabólico biocida. Precisamos de uma quantidade enorme de água para abastecer os cidadãos e suas atividades. Como os mananciais estão cada vez mais impróprios para o consumo humano, a água precisa passar por processos de tratamento cada vez mais severos. Mas a maior quantidade de água que precisamos para sustentar os aglomerados urbanos não é aquela necessária para a vida biológica dos cidadãos – cujo organismo é constituído de 75% dessa substância – nem para o abastecimento das atividades urbanas. É aquela necessária para descartar os efluentes domésticos e das atividades comerciais, industriais e de serviços.

Uma cidade como Porto Alegre, com cerca de um milhão e quatrocentos mil habitantes, precisa, em média, de 600 milhões de litros de água por dia para seu abastecimento, mas para diluir os efluentes gerados, de modo a produzir um baixo impacto no ecossistema, precisa de uma quantidade assombrosa de água: cerca de seis bilhões de litros. Isso porque os efluentes domésticos e industriais são descartados, na maior parte dos casos, sem qualquer tratamento nos corpos d’água próximos à cidade, tendendo a se dispersar na forma de densas plumas muito tóxicas.

Embora pensemos habitar um planeta com 75% de sua superfície coberta pela água, o resultado não poderia ser mais impactante. De toda a água existente na Terra, 97,5% são salgados. Dos 2,5% de água doce, 77% encontram-

se congelados nas geleiras das montanhas e das regiões polares; 21% estão armazenados no subsolo, e apenas 2%, ou seja, 0,0149% do total da água do planeta, situam-se na superfície continental. Esses 2%, por sua vez, não estão diretamente disponíveis para o consumo, necessitando de obras para sua captação, como represas, e possuem distribuição heterogênea sobre o planeta. Se, além disso, considerarmos a contaminação crescente dessa água, veremos que são raríssimos os mananciais existentes ainda em estado natural. Nossos filhos e netos não saberão mais qual é o gosto das águas superficiais. A geração de nossos avós ainda podia distinguir, pelo gosto da água natural, o lugar de onde ela provinha.

Mudança cultural e hábitos

Os cidadãos precisam refletir sobre seus hábitos para viverem na ecumenópole de mais de três bilhões de humanos. Nosso problema central é desenvolver uma cultura e uma ciência que dêem conta dessa nova escala-múndi dos centros urbanos. A primeira questão é de natureza global: romper o ciclo linear biocida e estabelecer um fluxo circular biogênico, promotor da vida. Isto é, ao invés de devolver contaminantes à natureza, poderíamos

devolver nutrientes. Isso passa por questões não apenas de redução do consumo de bens materiais e da água, mas também pelo estabelecimento de políticas práticas para que as cidades reciclem e metabolizem em sua própria jurisdição todos os seus rejeitos.

Em um país como o Brasil, onde a fome é um problema histórico, é impensável que, em uma cidade do tamanho de Porto Alegre, se coloquem fora 250 toneladas de restos de comida por dia. Como reaproveitar os resíduos orgânicos que as cidades produzem? Uma receita simples, retirada de antigos costumes que remontam à vida rural desde o Neolítico: manadas de suínos podem ser alimentadas com resíduos orgânicos sanitariamente tratados. As tecnologias para tanto já existem e também são muito simples, porém, para aplicá-las, precisamos, antes de tudo, mudar nossa visão de cidade: um território homogêneo que não admite atividades rurais.

A exemplo dos centros de reciclagem de resíduos secos, que geram renda para milhares de pessoas, as cidades podem ter centros de reciclagem de resíduos orgânicos. Os condomínios poderiam fazer compostagem com esse material e utilizá-lo para adubar os jardins, evitando o uso de terra preta extraída do solo das florestas. Também se poderia coletar a água da chuva em cisternas nos condomínios e casas, utilizando-a para diversos fins. Com esses pequenos exemplos, que belas aulas de ciclos urbanos biogênicos não se poderia dar às crianças sem sair de casa?

A nova cultura urbana nascerá forçosamente da necessidade. De um lado, o crescimento da população, que nos próximos 30 anos chegará à casa de 8 a 10 bilhões de pessoas, aumentando demandas. De outro lado, as conseqüências do aquecimento global e dos problemas ambientais, que poderão afetar severamente as cidades, a exemplo das recentes inundações e catástrofes produzidas por furacões. Melhor seria se as cidades pudessem desde já estabelecer estratégias de um fluxo metabólico circular, sustentável e solidário, preparando-se para esse futuro por uma opção cultural de seus cidadãos.

Rualdo Menegat é geólogo, Doutor em Ecologia de Paisagem, Professor do Instituto de Geociências da UFRGS, Coordenador do Atlas Ambiental de Porto Alegre, consultor científico da National Geographic Brasil, Editor da revista Episteme, do Grupo Interdisciplinar em Filosofia e História das Ciências do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da UFRGS. rualdo.menegat@ufrgs.br

Artigo publicado no Caderno de Literatura nº 14 pag 14-16 (dez 2006) editado pela AJURIS – Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul www.ajuris.org.br e enviado por Edinilson Takara.

[EcoDebate, 02/12/2008]

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One thought on “Cultura urbana: como viver num gigantesco e insustentável organismo? artigo de Rualdo Menegat

  • juvêncio Antônio Magalhães Xavier

    Gostei dos seus argumentos, eu também penso assim, imagine você que mora no rio grande do sul, se fosse o norte, voçês estão comendo o pão que o diabo amassou, em Santa Catarina, quem é o culpado, o desmatamento,nossa irresponsabilidade, a ganânçia, onde voçês moram tinham tantas matas verdes e vírgens, cheias de pássaros, onças, quatís, muntus, zabelês,codornas, beija-flôs, papagaios, periquitos maracanãs, que ninguem houve mais falar e dentros outros bichos,minha infancia foi nesse universo, imagine eu, Eng. de Alimentos formado pela Universidade Federal de Viçosa, nascido nas Barrancas do São Francisco, que já nadei naquelas águas e hoje me desespero, gostaria de estar no su time
    o velho

    vejo,LIXIUX

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