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Artigo

O AR5 (5° Relatório de Avaliação do IPCC) e o Tiro pela Culatra dos Negadores, por Alexandre Costa

 

[O que você faria se soubesse o que eu sei?] Muitos conhecem o famigerado fuzil AR-15, arma semi-automática extremamente difundida, inclusive entre grupos paramilitares e facções criminosas. Bem menos conhecido é um dos antecessores dele, o AR-5, um rifle adotado pela Força Aérea dos EUA na década de 1950, mostrado ao lado.
Armas: AR15 (acima), AR5 (abaixo)

 

Mas não é de rifles, fuzis e similares de que vou falar aqui, evidentemente. Prometi que voltaria ao assunto e aqui está… O tema que abordarei é outro AR5, o 5° Relatório de Avaliação do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas) e o gigantesco tiro que os negadores da mudança climática deram no próprio pé quando tentaram capitalizar alguma coisa com o “vazamento” da 2ª revisão desse Relatório e divulgação de um ou outro trecho do material, como se de alguma forma as evidências em torno das mudanças climáticas e do papel antrópico possam vir a aparecer enfraquecidas neste relatório, em relação ao seu antecessor (o AR4, disponível no site do IPCC).

 

Primeiro é importante esclarecer que o AR5 havia entrado em uma fase de revisão aberta, algo que não aconteceu quando da elaboração dos relatórios anteriores, tendo sido o próprio Governo Brasileiro (assim como os demais membros das Nações Unidas) chamado a contribuir e os integrantes do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas tendo tido acesso ao mesmo. Seguindo solicitação do IPCC e em respeito à ética do processo, por não se tratar de um documento em sua forma final, obviamente nenhum de nós saiu por aí a alardear as conclusões apresentadas nessa versão do relatório. Mas era realmente surpreendente que todos os que tenham tido acesso, em todos os países, seguissem inteiramente à risca o procedimento. É uma questão que precisa ser elaborada melhor: a de combinar transparência no processo de elaboração desse tipo de documento, sem comprometer a necessidade de excelência científica (ele é elaborado sempre por alguns dos maiores especialistas em cada aspecto da questão climática, do paleoclima às nuvens; dos impactos regionais às projeções futuras de eventos extremos, etc.).

 

Em seguida, vamos ao que realmente interessa. O que, afinal de contas, diz o pré-AR5, no que tange às suas conclusões e como ele se compara com o AR4? Esclareço, de antemão, que, na linguagem do IPCC, tudo é considerado em termos de probabilidade, de tal modo que “virtualmente certo” se refere a algo com mais de 99% chance de estar ocorrendo ou de vir a ocorrer, “extremamente provável” equivale a mais de 95% de probabilidade, “muito provável” a mais de 90%, “provável” a mais de 66%, “mais provável do que não” a mais de 50% e “tão provável quanto não” entre 33 e 66% de chances. As atribuições opostas também seguem essa lógica: “improvável” (menos de 33%), “muito improvável” (menos de 10%), “extremamente improvável” (menos de 5% de chances) e “excepcionalmente improvável” (menos de 1%).

 

O AR4 afirmava que “é extremamente provável que as atividades humanas tenham exercido uma influência total de aquecimento desde 1750″. A seguir, vejamos o que o AR5 nos traz (trechos do Sumário para os Formuladores de Políticas e do Sumário Técnico).

 

Sobre os avanços a partir do AR4:

“As evidências dos efeitos da influência humana no sistema climático continuaram a se acumular e a se fortalecer desde o AR4. A consistência das mudanças observadas e modeladas no conjunto do sistema climático, incluindo temperaturas regionais, o ciclo hidrológico, o balanço de energia global, a criosfera e os oceanos (incluindo os aspectos de sua acidificação) aponta para uma mudança climática global primordialmente devida ao aumento antrópico das concentrações de gases de efeito estufa.

“O AR4 concluiu que o aquecimento do sistema climático era inequívoco. Novas observações, séries de dados mais longas e mais informação paleoclimática fornecem mais apoios a esta conclusão. A confiança é maior de que muitas mudanças, que são observadas consistentemente no conjunto das componentes do sistema climático, são significativas, incomuns ou sem precedentes na escala de tempo de décadas a muitas centenas a milhares de anos”.

Sobre as mudanças de temperatura do ar próximo à superfície, da troposfera e dos oceanos:

“A média global das temperaturas próximo à superfície cresceu desde o início do século XX. Este aquecimento é virtualmente certo e tem sido particularmente marcante desde a década de 1970″

“Baseado em múltiplas análises independentes de medidas de radiossondas e sensores de satélites, é virtualmente certo que, globalmente, a troposfera tenha aquecido desde meados do século XX”.

“É virtualmente certo que a média global da temperatura da superfície do mar tenha crescido desde o início do século XX”.

“É virtualmente certo que o oceano superior tenha se aquecido desde 1971, quando observações cobrindo a maior parte do oceano superior global se tornaram disponíveis”.

Sobre a elevação do nível do mar, acidificação dos oceanos e mudanças na criosfera:

“Observações mais completas e melhoradas fortalecem a evidência de que os mantos de gelo estão perdendo massa, geleiras estão encolhendo globalmente, a cobertura de gelo marinho está se reduzindo no Ártico e a cobertura de neve e o permafrost está degelando no Hemisfério Norte. Gelo está sendo perdido por muitas das componentes da criosfera, apesar de haver diferenças regionais significativas nas taxas de redução.

“É virtualmente certo que a média global do nível do mar tenha subido a uma taxa média entre 1,4 e 2,0  mm/ano durante o século XX e entre 2,7 e 3,7 mm/ano desde 1993″.

“Há uma confiança muito elevada de que o sequestro oceânico de CO2 antrópico resultou numa acidificação gradual da água do mar, evidenciada por um pH decrescente nas águas superficiais a uma taxa entre 0,015 e 0,024 por década desde o início dos anos 1980”.

Sobre o balanço energético global:

“A Terra tem estado em desequilíbrio radiativo, com mais energia vindo do sol do que saindo no topo da atmosfera desde, pelo menos, cerca de 1970. É virtualmente certo que a Terra tem acumulado uma energia substancial de 1971 a 2010, uma diferença estimada de 273 [194 a 353] ZJ (1 ZJ = 1.000.000.000.000.000.000.000 Joules)”.

E, para, encerrar, sobre a atribuição do papel humano:

“É virtualmente certo que o aquecimento desde 1950 não pode ser explicado apenas pela variabilidade interna”.

“Mais da metade do carbono total emitido pelas atividades humanas foi sequestrado pelos oceanos e pelos continentes desde 1750. O restante causou um aumento na concentração de CO2 atmosférico de mais de 40% desde 1750 e por cerca de 10% desde 1990.”

“Há evidência consistente a partir de observações de um aumento de energia do Sistema Terrestre devido a um desequilíbrio no balanço de energia. É virtualmente certo que ele é causado pelas atividades humanas, principalmente pelo aumento das concentrações de CO2. Há uma confiança muito alta em que a forçante natural contribui somente com uma pequena fração desse desequilíbrio”.

“É extremamente provável que as atividades humanas tenham causado mais da metade do aumento observado na temperatura média global na superfície desde a década de 1950. Há uma alta confiança de que elas tenham causado mudanças de grande escala nos oceanos, na criosfera e no nível do mar na segunda metade do século XX. Alguns eventos extremos tem mudado como resultado da influência antrópica.”

Balas usadas no velho rifle AR5, fabricado
pela Armalite e adotado pela USAF na
década de 1950. Hoje em dia, negadores
das mudanças climáticas têm atirado nos
próprios pés com um AR5 muito mais
poderoso…

 

Havia evidentemente, por parte dos negadores, ao terem acesso ao texto do AR5 ainda em preparação, a intenção de criar outro factóide como o episódio da violação da correspondência eletrônica dos cientistas da Universidade de East Anglia, na Inglaterra, e seus colaboradores (chamado por eles de “Climategate”). Mas um misto provável de desonestidade extrema, pressa e, provavelmente, de limitação intelectual, fez com que o tiro de AR5 saísse totalmente pela culatra, ou melhor, que fosse dado nos próprios pés dos negadores.

A tentativa foi a de dizer que o rascunho do AR5 reconhecia que o papel do Sol seria maior do que o que se acreditava antes e que, como suposto corolário, o aquecimento global não seria antrópico (ou pelo menos não principalmente antrópico). Obviamente quem ler mais do que 0,1% do texto ou pinçar meia dúzia de frases, mesmo que aleatoriamente, não tem como chegar racionalmente a nenhuma conclusão parecida. Como bem disse Steve Sherwood, meu ex-chefe em Yale e hoje diretor do Centro de Pesquisas em Mudanças Climáticas da Universidade de New South Whales, é impressionante como foram capazes de pinçar um ou outro trecho do capítulo que ele escreveu (sobre nuvens e aerossóis) para distorcer por inteiro o sentido geral do texto. O AR5 traz uma discussão sobre o papel indireto exercido pelo Sol (não através apenas da irradiância total, mas via raios cósmicos galácticos. Mas os negadores “esqueceram” que a conclusão a esse respeito é a de que o efeito é muito provavelmente para lá de irrisório. O texto do AR5 afirma:

“Raios cósmicos aumentam a nucleação de aerossóis e a produção de núcleos de condensação de nuvens na troposfera livre, mas o efeito é muito fraco para ter qualquer influência climática durante um ciclo solar ou ao longo do último século (alta confiança). Mudanças na atividade solar afetam o fluxo dos raios cósmicos galácticos incidentes sobre a atmosfera da Terra, o que fez levantar a hipótese de afetarem o clima através de mudanças na nebulosidade. No entanto, nenhuma associação robusta entre raios cósmicos e nebulosidade tem sido identificada. No caso de tal associação existir, é muito improvável que se dê por meio da nucleação de novas partículas de aerossóis induzida por raios cósmicos.”

O que fica claro é que os resultados do relatório, na forma final do texto, quando divulgados no ano que vem ou, no máximo, em 2014, certamente trarão impactos muito importantes e oxalá possamos avançar no convencimento da opinião pública, dos formuladores de políticas e dos tomadores de decisão sobre a necessidade de se ouvir a voz do clima. Quanto aos negacionistas, pelo visto um AR5 é uma arma pesada demais para eles encararem de frente.

 

Alexandre Costa, Fortaleza, Ceará, Brazil, é Ph.D. em Ciências Atmosféricas, Professor Titular da Universidade Estadual do Ceará.

Artigo indicado pelo Autor e originalmente publicado em seu blogue pessoal [O que você faria se soubesse o que eu sei?] e republicado pelo EcoDebate, 20/12/2012

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