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Os movimentos sociais e o segundo turno. Possibilidades e limites. Entrevista com Ivo Poletto

Marina Silva foi a grande surpresa desse pleito, analisa Ivo Poletto na entrevista que concedeu, por telefone, à IHU On-Line. Em sua opinião, a expressiva votação que recebeu foi a responsável por levar a eleição ao segundo turno. Agora, a expectativa é de que haja um diálogo entre o PV e o PT, e que a iniciativa parta da candidatura Dilma. Caso esse diálogo não venha a acontecer em função de uma “radicalização ideológica e infantil” e Marina seja “empurrada” para o lado mais conservador, ao lado de Serra, aí a perspectiva fica bastante confusa. “Será que o PT vai ter a humildade e a abertura política de se reunir com a Marina Silva e as outras pessoas que trabalham com ela e ouvir o que elas têm a dizer em relação ao próprio programa de governo da Dilma e em relação ao futuro, para o próximo mandato?”, questiona Poletto.

Ao contrário dos outros candidatos “empoderados” por sua maior possibilidade de vitória, Marina era portadora de uma mensagem nova, e não se apresentou como “uma candidata de tipo tradicional, que coloca o poder como meta, mas como uma candidata portadora de uma perspectiva diferente para a sociedade e economia brasileiras”. E isso certamente cativou parte expressiva dos eleitores. Para além da falsa imagem de frágil e insegura, Marina trouxe ao debate político “temas importantes e numa perspectiva que todos devemos assumir juntos”. Desse primeiro turno, Poletto acentua a falta de um diálogo e debates mais profundos. Caso Dilma vença, a perspectiva é de uma conjuntura política diferente, que talvez ofereça “maior autonomia aos direitos sociais e, talvez, uma maior capacidade propositiva de mobilização da sociedade em favor de mudanças mais profundas”.

Ivo Poletto é assessor de pastorais e movimentos sociais. Trabalhou durante os dois primeiros anos do governo Lula como assessor do Programa Fome Zero e foi o primeiro secretário-executivo da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Autor, entre outros, do livro Brasil, oportunidades perdidas – Meus dois anos no governo Lula (Rio de Janeiro: Garamond, 2005), é cientista social e educador popular.

[Leia a entrevista na íntegra]
IHU On-Line – Dilma e Serra disputam a presidência em segundo turno. O resultado o surpreendeu?

Ivo Poletto – De certa maneira, surpreendeu porque houve quase um massacre de informação da mídia dando credibilidade total aos centros de opinião pública. Na verdade, a grande surpresa é a votação de Marina Silva. Esse fato, evidentemente, levou a decisão para o segundo turno. Nesse sentido, posso dizer que, particularmente, foi uma surpresa positiva, porque é importante o segundo turno a fim de criar possibilidades de aprofundar um debate político sobre o Brasil. Quem sabe o programa do próximo presidente da República venha a ser definido a partir de um diálogo maior, de um debate, um discernimento sobre a realidade nacional?

IHU On-Line – Para os movimentos sociais, o que esse resultado pode significar?

Ivo Poletto – Temos algumas interrogações em relação ao futuro imediato das eleições. Será que o PT vai ter a humildade e a abertura política de se reunir com a Marina Silva e as outras pessoas que trabalham com ela e ouvir o que elas têm a dizer em relação ao próprio programa de governo da Dilma e em relação ao futuro, para o próximo mandato? Se não fizerem isso, será que depois irão acusar a Marina e os outros agentes sociais de que “passaram para o lado” do Serra, quase que confirmando as previsões já estabelecidas por eles de que, necessariamente, Marina iria para uma direção mais conservadora? Nesse sentido, penso que quem deve dar o primeiro sinal de resposta e interpretação correta desse momento eleitoral é o próprio PT e toda a liderança que conduz a campanha de Dilma. É preciso dialogar e descobrir o que significa o fato de que, mesmo tendo toda a aprovação do presidente e de quase toda a população, Dilma não foi eleita no primeiro turno. Penso, pessoalmente, que se o PT fizer isso, então poderemos ter uma melhor perspectiva política no próximo mandato e também teremos mais possibilidade de participação dos movimentos sociais e das temáticas que estão sendo levantadas por eles para os próximos quatro anos.

Trabalho no Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Social, que articula uma série de entidades e pastorais. Nós sentimos que, no governo atual, e também na perspectiva do governo Dilma, essa dimensão de sustentabilidade, responsabilidade humana, mundial e planetária em relação às mudanças que devem ser feitas no tipo de economia que implementamos no Brasil, não está presente na perspectiva do projeto governamental apresentado pelo PT. Assim, nós queremos pressionar como cidadãos e sociedade civil organizada para que haja mudança. Nessa direção, o momento é muito interessante politicamente, pois possibilita, quem sabe, o diálogo. Mas se, por acaso, Dilma e os grupos que trabalham com ela se negarem a esse diálogo, assumirão a responsabilidade, seja do resultado da eleição (que não sabemos qual vai ser), seja também quanto à sua própria responsabilidade política em relação ao Brasil, ao mundo e ao planeta Terra.

IHU On-Line – Como o senhor interpreta o crescimento de Marina Silva na reta final? Quais foram os fatores determinantes para o seu surpreendente desempenho?

Ivo Poletto – Há duas coisas fundamentais a se dizer. A primeira delas é que Marina se apresentou como alguém que, de fato, era portadora de uma mensagem. Ela não se apresentou como uma candidata de tipo tradicional, que coloca o poder como meta, mas como uma candidata portadora de uma perspectiva diferente para a sociedade e economia brasileiras. Parece que isso despertou a curiosidade de uma parte significativa da população. Em segundo lugar, ela conseguiu comunicar, em sua aparente insegurança e fragilidade, temas importantes e numa perspectiva que todos devemos assumir juntos. Marina se apresentou menos arrogante do que os outros candidatos, principalmente os que tinham chances de serem eleitos, e penso que ela conseguiu ter uma relação de mais simpatia da parte do eleitorado.

A internet nas eleições

Por outro lado, há um fator que é novo e que ainda não sabemos avaliar, mas que provavelmente interferiu nos resultados desse primeiro turno. Trata-se do trabalho realizado com as novas ferramentas de comunicação, como a internet. Marina, em sua primeira fala após o resultado oficial das apurações, anunciou que quer um diálogo entre o partido, os movimentos sociais que aderiram à campanha e, em particular, nomeou o movimento Marina Silva. Esse movimento funciona pela internet, e ainda não sabemos quanto esse trabalho interferiu nessas eleições. Lembro dois aspectos. O primeiro deles é o trabalho desses jovens que assumiram a campanha da Marina. Por outro lado, há um questionamento para os setores mais retrógrados da sociedade brasileira, que, motivados por razões ideológicas ou religiosas, também usaram a internet de uma forma infame contra a candidatura da Dilma. De minha parte, posso ter críticas contra Dilma, mas de maneira nenhuma concordo com o uso indevido da internet tal como foi feito contra sua candidatura, com acusações absurdas e difamatórias.

IHU On-Line – Marina Silva superou as expectativas fornecidas pelas pesquisas. Os votos para ela vão para quem, em sua opinião?

Ivo Poletto – Essa é a grande incógnita do momento. Se ela, ou o grupo todo que trabalha com ela, decidir por uma candidatura ou por outra, certamente não haverá adesão de 100% dos eleitores que votaram no PV. Acredito que isso é positivo, pois os cidadãos guardam autonomia na relação com os candidatos e suas propostas. Contudo, acredito que uma maior parte seguirá a sugestão que Marina der, no sentido de que ela irá justificar essa como a melhor opção. Minha expectativa pessoal é de que haja um diálogo entre as forças do PT e o PV. É preciso que desse diálogo resulte uma reelaboração do plano de governo, da capacidade de revisão e não apenas ficar repetindo “nós estamos bem, vamos para frente, vamos nos tornar um país de primeiro mundo, a pobreza está acabando”. É evidente que há sinais positivos na política exercida nos últimos oito anos, mas esses sinais não permitem esse tipo de festa eleitoreira, como está sendo feito. Se houve uma mudança a partir do diálogo, teremos uma perspectiva mais positiva e a maioria dos votos pode migrar para o lado da Dilma. Isso, em minha visão, é o encaminhamento mais interessante para o Brasil. Mas se, infelizmente, na falta de diálogo ou numa radicalização ideológica e infantil a Marina for empurrada para o lado mais conservador, aí eu realmente não posso dizer qual é a perspectiva que se delineia. Lastimo porque, muito provavelmente, no discurso e, sobretudo, na propaganda da TV, é bem provável que os setores representados pelo Serra falem palavras bonitas, digam que são favoráveis a uma economia sustentável. Quando chegarem ao governo, farão tudo ao contrário. Como cidadão, torço para que haja um diálogo pelo lado da centro-esquerda, e que resulte num caminho e numa política nacionais mais favoráveis ao Brasil, à humanidade e ao planeta Terra.

IHU On-Line – Ao que o senhor atribui a queda de Dilma na reta final das eleições? A polêmica em torno do aborto está entre os fatores que explicam o seu descenso?

Ivo Poletto – Tenho minhas dúvidas quanto a esse aspecto, já que essa questão não se tornou tão pública assim. O trabalho feito por grupos ligados de uma forma fundamentalista e cega em relação a essa questão do aborto, e a forma como trabalharam na internet, é um aspecto que precisa ser estudado para entender como afetou a imagem e confiabilidade de Dilma. No meu ponto de vista, acho que o mais emblemático foi a falta de um diálogo mais profundo no debate político. Foi uma maneira muito pobre de se trabalhar um tempo político ou um período governamental. Vamos pura e simplesmente continuar a fazer o que estava sendo feito até agora? Não dá, porque a realidade está mudada e existem apelos mundiais, uma consciência crescente no mundo e no Brasil no sentido de que precisamos mudar, sobretudo, essa centralização absurda da política só na economia, deixando as outras dimensões de lado, não vendo relação entre a economia e os direitos sociais e, particularmente, dos direitos à terra. Essa falta de perspectiva cansou e deve ter sido o que influenciou as pessoas a não darem o voto para Dilma.

IHU On-Line – O movimento social brasileiro vem perdendo sua capacidade contestatória? De onde vem esse quietismo do movimento social?

Ivo Poletto – Há estudos interessantes sobre o que se chama lulismo, diferenciando-o do que seria o petismo. Nesse sentido, é preciso destacar duas coisas. A primeira delas é a relação muito mais ampla do Lula com os setores mais pobres da população, ultrapassando as áreas de influência e de comunicação do PT pelo lado dos mais pobres. Por outro lado, é preciso analisar o crescimento de confiança ou relação de interesse entre os mais ricos em relação às orientações do governo Lula. Nesse aspecto, o lulismo conseguiu juntar em torno de uma mesma pessoa os mais ricos (que nunca ganharam tanto quanto estão ganhando nesses últimos anos, e que por isso mesmo ficaram inseguros em votar no Serra, pois temiam uma volta à situação do tempo de FHC, em que eles perderam relativamente) e os mais pobres, a partir de mudanças que de fato aconteceram em suas vidas. No meio do caminho, Lula consegue manter todo um ambiente de aparente receptividade e diálogo com os movimentos e as iniciativas da sociedade civil organizada. Para isso, basta ver a quantidade de conferências que foram realizadas em âmbito nacional sobre os mais diferentes temas. Só que o governo faz aquilo que ele quer. O governo mantém seus programas, mas também passa alguns recursos para setores sociais, para que estes possam fazer suas iniciativas. Ao mesmo tempo, cobra um certo silêncio e compromisso com o próprio governo. Nesse sentido houve, e certamente continua havendo, uma relativa desmobilização da capacidade autônoma de atuação dos movimentos sociais.

Retomada de articulações

Nos últimos anos, tenho percebido que há uma certa retomada de articulações de movimentos sociais em formas novas, de rede, procurando ter um posicionamento crítico em relação às políticas e também tendo a capacidade propositiva no sentido legislativo e de mudanças. Isso aconteceu com a grande mobilização em torno do “Ficha Limpa” e do movimento que foi criado para resistir às reformas liberalizantes de reforma da previdência e tributária, que foram impedidas justamente pela ação da sociedade civil e, agora, esses movimentos estão com uma agenda muito mais pró-ativa para os próximos anos. Sei que o Movimento de Defesa pelos Direitos Sociais, junto com um movimento mais amplo, reagiu à questão da previdência e da reforma tributária. Eles estão propondo um texto para entrar no Legislativo e, quem sabe, virar uma proposta popular de lei, antecipando-se ao que certamente virá, que são novas propostas de reforma liberalizante, seja na linha da previdência ou da tributação. Aí, os direitos dos mais pobres vão pro “beleléu”, porque os conservadores, os liberais, querem sempre que se desonerem as empresas, os setores mais ricos, em nome da geração de mais empregos, progresso e renda. Isso tudo é falso! Sabemos que isso não corresponde à realidade, mas o governo termina silenciado por isso e, inclusive, aderindo. Nesse sentido, a sociedade civil está se colocando na perspectiva de adquirir uma maior autonomia na relação com a ação governamental. Caso se confirme a eleição de Dilma, ficam muitas perguntas no ar. Será que a capacidade de interferência do governo federal nos movimentos sociais será igual ao tempo de Lula? Será que Dilma irá carregar consigo todo o charme pessoal e capacidade simbólica que Lula tem? Achamos que não. Pensamos que teremos uma conjuntura política diferente e isso irá permitir, quem sabe, uma maior autonomia aos direitos sociais e talvez uma maior capacidade propositiva de mobilização da sociedade em favor de mudanças mais profundas.

IHU On-Line – Podemos dizer que houve um recolhimento das organizações de base da Igreja nessas eleições como as pastorais sociais e as CEBs?

Ivo Poletto – Acredito que elas não manifestaram publicamente a sua opção. Por que fizeram isso? Porque, evidentemente, a maioria tem uma posição mais clara no que diz respeito ao “não”, ou seja, sabem o que não querem: a eleição de Serra e tudo aquilo que ele representa. Mas, ao mesmo tempo, não querem pura e simplesmente a continuidade do que tem sido o governo Lula, tanto na relação com os movimentos sociais, quanto em relação às chamadas prioridades da economia, com o PAC. Há muita gente nos movimentos sociais que questiona todo o encantamento em relação ao pré-sal, a loucura de querer continuar gerar energia elétrica fazendo grandes barragens na Amazônia, à transposição teimosa do São Francisco. Os movimentos e pastorais sociais têm a ver, inclusive, com o crescimento de Marina para que houvesse um segundo turno e aí, quem sabe, criar uma possibilidade de um diálogo político mais profundo em relação às opções que devemos fazer nesse período.

IHU On-Line – A diferença maior entre os candidatos ficará por conta da relação com o movimento social?

Ivo Poletto – Agora não dá mais para ficar repetindo as mesmas coisas. Se a economia tem que crescer, se é preciso gerar empregos a partir de um aumento da capacidade dos ricos de investir, se é preciso manter o Brasil aberto aos dólares externos, então qual é a diferença entre Serra e Dilma? Para um segundo turno, o grande desafio para a Dilma é dizer qual é a diferença do seu projeto e programa governamental para os próximos anos em relação ao que faria, eventualmente, o presidente Serra. As diferenças não estão tão evidentes assim. Claro, há diferenças no campo social, mas não custa muito aos conservadores assumirem isso. É bom lembrar que, boa parte da legislação brasileira é fruto da mobilização da sociedade civil, mas também de uma esperta concessão de direitos feita pelos setores conservadores, inclusive pela oligarquia do Brasil. Nesse sentido não é impossível que esses setores conservadores assumam também a sua perspectiva social, mas aberta. Por isso, repito, o apoio de Marina para o segundo turno irá depender de quem se coloca em diálogo com quem. A possibilidade do PT e dos responsáveis pela candidatura Dilma chamarem para dialogar o PV de Marina significaria abertura para os movimentos sociais, ou, pelo menos, grande parte deles. Não se trata somente de ecologistas, mas de pessoas que consideram a questão do aquecimento global e das mudanças climáticas uma prioridade transversal em todas as suas ações. Assim, nós, das pastorais sociais, percebemos que devemos nos abrir para isso. É bom lembrar o tema da próxima Campanha da Fraternidade, da Igreja Católica, que é A vida no planeta, cujo lema é A Criação geme em dores de parto. Isso quer dizer que, se qualquer um dos dois candidatos eleitos continuar com uma economia agressiva em nome de um progresso que nunca se socializa e só se concentra nas mãos de poucos, vai haver debate da parte da sociedade, e as igrejas irão questionar. Está criada a possibilidade para que alguns setores dialoguem. Não acredito que esse seja o caso da candidatura Serra. O que eles podem fazer é comprar e assumir o discurso de tal coisa, mas depois isso será diferente. Da parte da Dilma, o desafio é ainda maior.

(Ecodebate, 08/10/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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