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Artigo

A propriedade agrícola agroecológica

 

a propriedade agroecológica é um espaço social e econômico. Ela preserva a centralidade da família agricultora, a qualidade do trabalho, a autonomia decisória e a capacidade de transmitir conhecimentos entre gerações

A transição agroecológica implica alterar arranjos produtivos, práticas de manejo, fluxos de energia e nutrientes, relações de trabalho e formas de inserção no mercado

Artigo de Afonso Peche Filho*

A propriedade agrícola agroecológica pode ser compreendida como uma unidade ecológica de manejo inserida em um território municipal, na qual solo, água, biodiversidade, trabalho humano e cultura local são organizados de forma integrada para produzir alimentos e serviços ambientais.

Não se trata apenas de substituir insumos químicos por insumos “orgânicos”, mas de redesenhar relações: entre áreas de produção e áreas de proteção, entre campo e cidade, entre decisões privadas e responsabilidades coletivas. Nessa perspectiva, a transição agroecológica deixa de ser uma decisão isolada do agricultor e passa a ser também uma política pública de fomento ao desenvolvimento ambiental do território.

Em uma propriedade agroecológica madura, o solo raramente está exposto. A cobertura vegetal permanente, a ciclagem de resíduos orgânicos, a diversificação de espécies e o manejo cuidadoso da água criam um ambiente em que a fertilidade deixa de depender de correções pontuais e passa a ser função da própria biologia do agroecossistema.

Áreas de produção, de proteção, de circulação, de construções e de recarga hídrica são pensadas como partes de um organismo territorial, e não como compartimentos desconectados. Essa lógica difere radicalmente do modelo convencional, centrado na maximização de produtividade de curto prazo em parcelas específicas, frequentemente à custa da erosão, da contaminação da água e da simplificação biológica da paisagem.

Ao mesmo tempo, a propriedade agroecológica é um espaço social e econômico. Ela preserva a centralidade da família agricultora, a qualidade do trabalho, a autonomia decisória e a capacidade de transmitir conhecimentos entre gerações. A diversificação produtiva, em cultivos, criações, processamento artesanal e serviços como turismo de base comunitária, reduz a vulnerabilidade a crises de mercado e climáticas. Nesse sentido, a qualidade ecológica do manejo é também estratégia de desenvolvimento local, pois sustenta renda, reduz dependência de insumos externos e fortalece redes de cooperação entre agricultores, consumidores e poder público.

Entretanto, quase nenhuma propriedade nasce “agroecológica”. O que existe é um processo de transição, muitas vezes longo, cheio de idas e vindas, marcado por experimentos, erros, ajustes e aprendizados. A transição agroecológica implica alterar arranjos produtivos, práticas de manejo, fluxos de energia e nutrientes, relações de trabalho e formas de inserção no mercado. Esse movimento exige tempo: tempo ecológico para que o solo se recupere, para que as espécies se estabeleçam, para que a biota do solo retome sua complexidade; e tempo social para que o agricultor se aproprie das novas lógicas, reorganize sua economia e se sinta seguro para depender menos de pacotes prontos.

É justamente aqui que a transição deixa de ser um gesto privado e passa a ser campo privilegiado de política pública municipal. Quando um município reconhece a importância de propriedades agrícolas agroecológicas para a conservação da água, para a redução de riscos de desastres, para a proteção da biodiversidade e para a segurança alimentar da população, ele passa a ter razões claras para estruturar instrumentos de fomento. A lógica muda: a propriedade agroecológica não é apenas “alguém produzindo diferente”, mas uma peça estratégica na infraestrutura ecológica do território.

Uma política municipal de incentivo à transição agroecológica pode atuar em diversas frentes articuladas. A primeira é a assistência técnica e extensão rural orientada por princípios agroecológicos. Não se trata de levar “receitas verdes” para substituir “receitas químicas”, mas de construir, junto com as famílias, diagnósticos ecológicos das propriedades, mapas de áreas frágeis, planos de manejo do solo e da água, roteiros de diversificação produtiva e estratégias de comercialização territorializada. A propriedade torna-se um “campo-escola”, onde se experimenta o manejo de cobertura do solo, o uso de bioinsumos, a implantação de sistemas agroflorestais, o manejo de bacias de contenção e terraços vivos, entre outras práticas.

Uma segunda frente diz respeito aos instrumentos econômicos e regulatórios. O município pode articular incentivos fiscais, programas de compras públicas da agricultura familiar, editais de apoio a infraestruturas ecológicas (como pátios de compostagem, viveiros de mudas, pequenas barraginhas, terraços e cercamentos de APPs), bem como orientar o Plano Diretor e a legislação de uso e ocupação do solo para proteger áreas estratégicas de recarga hídrica e produção de alimentos. Nesse contexto, a propriedade agroecológica é vista como parceira do município na produção de serviços ecossistêmicos; ao reconhecer isso, a política pública precisa também assumir parte dos custos de transição, que não podem recair exclusivamente sobre o agricultor.

Uma terceira frente é a governança territorial. A transição agroecológica em escala de município não se constrói apenas com leis e programas, mas com espaços de diálogo entre agricultores, técnicos, gestores, conselhos municipais e organizações da sociedade civil. Planos Municipais de Meio Ambiente, de Agricultura, de Saneamento e de Desenvolvimento Rural podem incorporar metas explícitas de ampliação de áreas sob manejo agroecológico, corredores ecológicos articulando propriedades, recuperação de nascentes em parceria com produtores, entre outras ações. Cada propriedade agroecológica passa, então, a ser vista como “nó” de uma teia maior de regeneração ecológica do território.

Do ponto de vista ambiental, a ampliação do número de propriedades em transição agroecológica tende a produzir efeitos acumulativos sobre a paisagem: redução da erosão e do assoreamento de cursos d’água, maior infiltração de água de chuva, aumento da conectividade entre fragmentos de vegetação nativa, enriquecimento da biota do solo, diminuição da contaminação por agrotóxicos e melhoria da qualidade ambiental de áreas rurais e periurbanas. Esses resultados, por sua vez, têm reflexos diretos na cidade: menor risco de inundações e deslizamentos, menor custo de tratamento de água, oferta de alimentos mais saudáveis e fortalecimento da identidade local ligada ao campo.

Por outro lado, a transição agroecológica também explicita desafios. Muitos agricultores carregam dívidas, contratos de fornecimento de insumos, compromissos com culturas de alto risco ambiental e econômico. A assistência técnica convencional costuma estar organizada para apoiar modelos padronizados, e não processos singulares de redesenho de sistemas complexos. Além disso, a burocracia de programas públicos pode ser incompatível com o ritmo de adaptação que a transição exige. Reconhecer esses obstáculos é parte do processo: uma política municipal consistente precisa ser gradual, realista e dialogada, oferecendo apoio técnico, financeiro e institucional em etapas.

Em síntese, a propriedade agrícola agroecológica representa, ao mesmo tempo, um horizonte e um instrumento de política pública. Horizonte, porque materializa, no espaço concreto da paisagem rural, a possibilidade de produzir cuidando da água, do solo, da biodiversidade e das pessoas. Instrumento, porque cada propriedade em transição contribui, de forma mensurável, para objetivos mais amplos de desenvolvimento ambiental do território municipal. Ao apoiar e induzir esse processo, o município deixa de tratar a agricultura apenas como setor econômico e passa a reconhecê-la como infraestrutura ecológica estratégica para o futuro.

Assumir a transição agroecológica como política pública é, em última instância, assumir que o desenvolvimento ambiental do território não se fará apenas por obras, normas e planos, mas pelo rearranjo profundo das relações entre sociedade e natureza no cotidiano das propriedades agrícolas. É nesse cotidiano, na decisão de cobrir o solo, de proteger a nascente, de diversificar o pomar, de testar um novo consórcio, de registrar o manejo, de dialogar com o vizinho, que a propriedade agroecológica se torna um núcleo de transformação. E é conectando muitos desses núcleos, com apoio consistente do poder público, que os municípios podem reconstruir, de forma viva e participativa, a base ecológica do seu próprio desenvolvimento.

* Pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas – IAC.

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Citação
EcoDebate, . (2025). A propriedade agrícola agroecológica. EcoDebate. https://www.ecodebate.com.br/2025/12/08/a-propriedade-agricola-agroecologica/ (Acessado em dezembro 8, 2025 at 14:37)

 
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
 

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