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O Cerrado à sombra da Amazônia na COP30: um bioma vital muitas vezes esquecido

 

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Cerrado. Foto: TvBrasil/EBV

Reinaldo Dias
Articulista do EcoDebate, é Doutor em Ciências Sociais -Unicamp
Pesquisador associado do CPDI do IBRACHINA/IBRAWORK
Parque Tecnológico da Unicamp – Campinas – Brasil
http://lattes.cnpq.br/5937396816014363
reinaldias@gmail.com

O mundo enfrenta uma crise ambiental sem precedentes. Secas prolongadas, enchentes severas e eventos extremos cada vez mais frequentes revelam o esgotamento de um modelo de desenvolvimento que ignora os limites ecológicos do planeta.

No Brasil, essa crise encontra uma expressão emblemática no Cerrado, um bioma de relevância continental, essencial para a regulação das chuvas, o abastecimento dos aquíferos e a estabilidade climática da América do Sul.

Nas últimas quatro décadas, o Cerrado perdeu quase um terço de sua vegetação nativa, resultado do avanço acelerado da agropecuária e da expansão desordenada de monoculturas. Essa transformação não apenas ameaça a biodiversidade, mas também compromete o modo de vida de comunidades tradicionais e a segurança hídrica de amplas regiões do país. A continuidade desse processo coloca em risco a capacidade do Brasil de cumprir seus compromissos ambientais e climáticos.

Às vésperas da COP30, torna-se indispensável recolocar o Cerrado no centro da agenda ambiental brasileira e internacional.

Este artigo analisa as principais ameaças que incidem sobre o bioma, os interesses econômicos e sociais em disputa e as perspectivas que se abrem para sua conservação. Mais do que denunciar um quadro de degradação, o texto propõe que o Cerrado seja reconhecido como um pilar estratégico na construção de políticas públicas que unam justiça social, proteção ambiental e mitigação da crise climática.

INTRODUÇÃO

O Cerrado, reconhecido como o segundo maior bioma do Brasil e um dos mais ricos em biodiversidade do planeta, ocupa cerca de 24% do território nacional e é considerado um hotspot mundial de diversidade biológica. Além de abrigar inúmeras espécies endêmicas, o bioma desempenha um papel estratégico para o equilíbrio climático e a segurança hídrica, sendo berço de grandes bacias hidrográficas que abastecem diferentes regiões do país e da América do Sul (de Medeiros et al 2024). No entanto, sua importância contrasta com a invisibilidade política que frequentemente o acompanha, tanto nas agendas nacionais quanto nas internacionais, o que tem contribuído para sua crescente vulnerabilidade.

Nas últimas décadas, o Cerrado tem sofrido intensas transformações resultantes da expansão da fronteira agrícola, em especial no MATOPIBA — região que compreende os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia —, onde o avanço da soja, da pecuária e de outros cultivos se concentra de forma acelerada (Bataier, 2025). Essa dinâmica coloca em risco não apenas a biodiversidade, mas também a sobrevivência de povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares que dependem diretamente do bioma para sua subsistência.

A relevância do Cerrado transcende as fronteiras nacionais. Sua conservação está intrinsecamente ligada à mitigação das mudanças climáticas e à manutenção de serviços ecossistêmicos essenciais, como a regulação hídrica e a estabilidade do regime de chuvas (AGB,2024; Moreno, 2025). A devastação contínua do bioma compromete a capacidade do Brasil de cumprir suas metas ambientais e climáticas, ampliando os desafios para a governança global. Nesse contexto, a COP30, que será realizada em Belém, representa uma ótima oportunidade para reposicionar o Cerrado no centro das discussões ambientais internacionais, ao lado da Amazônia e de outros ecossistemas estratégicos.

A ESCALADA DO DESMATAMENTO E SUAS MÚLTIPLAS FACES

O Cerrado é hoje o bioma mais pressionado pelo desmatamento. Nas últimas quatro décadas, perdeu 40,5 milhões de hectares de vegetação nativa, equivalentes a 28% de sua cobertura original. Hoje, 51,2% do bioma mantém vegetação nativa e 47,9% já está sob uso humano. Atualmente, o Cerrado apresenta 24,1% de seu território ocupado por pastagens e 49% da produção de soja nacional. Essa expansão ocorreu de forma concentrada no Matopiba que respondeu por 39% da perda líquida desde 1985 e concentrou 73% da supressão da última década, quando a agricultura cresceu 533% e um quarto dos municípios passou a ter menos de 20% de cobertura nativa (Custódio, 2025). Essa transformação em larga escala decorre, sobretudo, da expansão da agropecuária voltada para commodities, em especial a pecuária bovina, que continuam a avançar de forma significativa sobre áreas de vegetação natural.

A região do MATOPIBA tem se consolidado como epicentro desse processo. Ali se concentram alguns dos maiores índices de supressão de vegetação nativa, muitas vezes amparados por autorizações legais de desmatamento, o que expõe uma das contradições mais graves da política ambiental brasileira: o chamado “desmatamento legal”. Mesmo quando realizado com autorização, esse tipo de supressão compromete ecossistemas frágeis, coloca em risco a biodiversidade e compromete serviços ecossistêmicos vitais (CPI, 2024). A flexibilização da regulação ambiental e a fragilidade da governança territorial agravam o quadro, tornando difícil conter a perda acelerada de habitats.

Outro aspecto preocupante é que o desmatamento não se limita a áreas privadas de expansão agrícola. Monitoramentos recentes mostram que ele também avança em territórios protegidos, como unidades de conservação e terras indígenas, revelando falhas de fiscalização e de efetividade na implementação das políticas de conservação (Leno, 2025; MAPBIOMAS, 2024). Essa realidade aponta para um cenário em que, mesmo com alguns avanços pontuais, como a queda de 33% no desmatamento em 2024, a área total devastada continua signficativa e insuficientemente enfrentada pelas medidas oficiais (Guaraldo, 2025; BRASIL, 2023).

BIODIVERSIDADE EM RISCO E PERDA DE SERVIÇOS ECOSSISTÊMICOS

O Cerrado é considerado um dos hotspots mundiais de biodiversidade, abrigando milhares de espécies de plantas, animais e microrganismos, muitas delas endêmicas e ainda pouco conhecidas pela ciência. No entanto, a rápida transformação do bioma tem levado à extinção de espécies antes mesmo de serem formalmente descritas, evidenciando a gravidade do processo de erosão genética e ecológica (Leno, 2025; ISPN, 2025). Essa perda compromete não apenas a diversidade biológica, mas também a integridade de processos ecológicos fundamentais.

A formação savânica foi a mais impactada, com redução de 26,1 milhões de hectares em quarenta anos. A pressão sobre a água também é expressiva, com retração de superfícies naturais e aumento de espelhos d’água artificiais. Em 2024, 60,4% da água mapeada no bioma tinha origem antrópica, como hidrelétricas, reservatórios e aquicultura e a maior parte das bacias registrou perdas de superfície de água natural (-27,8%), o que compromete a recarga e a estabilidade hídrica regional. (Custódio, 2025)

A perda de cobertura vegetal também tem ampliado a fragmentação dos ecossistemas e a vulnerabilidade a eventos climáticos extremos. Especialistas alertam que a degradação do Cerrado interfere na recarga de aquíferos, altera o fluxo de chuvas e aumenta o risco de secas prolongadas, com impactos diretos sobre a agricultura e o abastecimento de água no país (Sinimbú, 2025).

Estudos recentes da Universidade Federal de Goiás revelam que a perda de biodiversidade no Cerrado é ainda mais grave, do que se imaginava, pois muitas espécies estão desaparecendo antes mesmo de serem conhecidas pela ciência (Silveira et al, 2025). Esse processo de extinção silenciosa compromete o patrimônio genético e ecológico do bioma, eliminando formas de vida que poderiam desempenhar funções essenciais para o equilíbrio ambiental. A destruição de habitats reduz as possibilidades de novas descobertas científicas e enfraquece a capacidade do Cerrado de sustentar processos evolutivos e ecológicos em longo prazo.

O impacto do desmatamento também se revela na situação de espécies emblemáticas, como o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus). Considerado símbolo do Cerrado, esse canídeo tem perdido extensas áreas de habitat, o que o obriga a buscar refúgio em regiões onde não encontra condições adequadas para viver. A devastação do bioma tem transformado o lobo-guará em uma espécie de “refugiado ambiental”, revelando de forma dramática como a destruição de ecossistemas empurra a fauna para situações de vulnerabilidade extrema e aumenta os riscos de conflitos com atividades humanas (Azevedo, 2025).

Entre os serviços ecossistêmicos ameaçados, destaca-se o papel do Cerrado como “caixa d’água do Brasil”. O bioma abriga aquíferos e nascentes que alimentam oito das doze grandes bacias hidrográficas do país, funcionando como regulador dos ciclos hídricos em escala continental (AGB, 2024; Albuquerque et al, 2024). O avanço do desmatamento altera a infiltração de água no solo, reduz a disponibilidade hídrica e compromete a estabilidade do regime de chuvas, o que afeta tanto a agricultura quanto o abastecimento urbano. Esse desequilíbrio hídrico amplia a vulnerabilidade de populações humanas diante de secas prolongadas e eventos extremos, cada vez mais intensificados pelas mudanças climáticas (Moreno, 2025).

Outro elemento central é a relação entre a destruição do Cerrado e o agravamento do aquecimento global. A supressão da vegetação nativa libera grandes quantidades de carbono armazenado no solo e na biomassa, contribuindo para as emissões nacionais de gases de efeito estufa. Ao mesmo tempo, a degradação das áreas naturais reduz a capacidade do bioma de atuar como sumidouro de carbono, diminuindo seu potencial de mitigação climática (Mendes & Batista,2024; Cortinhas, 2025). Essa combinação de perda de biodiversidade, comprometimento hídrico e emissões de carbono coloca o Cerrado no centro das discussões sobre a crise socioambiental contemporânea.

COMUNIDADES TRADICIONAIS E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS

A devastação do Cerrado não afeta apenas a biodiversidade, mas também impacta diretamente os modos de vida de povos indígenas, comunidades quilombolas e agricultores familiares que dependem do bioma para sua subsistência. Essas populações enfrentam violações sistemáticas de direitos humanos, que vão desde a perda de acesso a recursos naturais até a violência física contra lideranças locais.

A pressão territorial se intensifica pelo avanço de grandes empreendimentos de monocultura e de infraestrutura, que frequentemente ignoram consultas às populações locais e desconsideram a importância cultural e ambiental de seus territórios. Tais processos acentuam desigualdades históricas e colocam comunidades em situação de vulnerabilidade socioeconômica, ao mesmo tempo em que destroem práticas tradicionais de uso sustentável da terra, essenciais para a conservação do bioma (BRASIL, 2023; Pati & Yamamoto, 2025)).

Exemplos concretos demonstram a gravidade desses conflitos. No oeste da Bahia, uma missão do Conselho Nacional de Direitos Humanos identificou graves violações resultantes da expansão do agronegócio, incluindo ameaças, intimidações e a expulsão de famílias de seus territórios tradicionais (AATR, 2024). Já no Maranhão, organizações da sociedade civil denunciaram a destruição socioambiental causada pelo avanço da soja sobre comunidades camponesas, que têm perdido terras e meios de subsistência frente ao poder econômico de grandes grupos (Bezerra, 2024). Esses casos ilustram como a expansão da fronteira agrícola não apenas degrada o ambiente, mas também aprofunda desigualdades sociais e viola direitos básicos.

Esse cenário de injustiça socioambiental tem levado à resistência organizada dessas comunidades, muitas vezes apoiadas por organizações da sociedade civil e redes de solidariedade. Cartas públicas, denúncias e missões de órgãos nacionais e internacionais têm exposto a gravidade das violações, chamando atenção para a necessidade de políticas públicas que conciliem conservação ambiental com proteção dos direitos humanos (Bezerra, 2024; Bataier, 2025; Oliveira, 2025). No entanto, a assimetria de poder entre grandes agentes econômicos e populações locais ainda dificulta a construção de soluções efetivas e justas para o futuro do Cerrado.

Além das comunidades tradicionais, as terras indígenas desempenham papel essencial na proteção da vegetação nativa e no controle do desmatamento. Estudos demonstram que esses territórios funcionam como barreiras eficazes contra a degradação ambiental e mantêm parcelas significativas de cobertura vegetal original no Cerrado. Essa evidência reforça a importância de políticas que reconheçam e fortaleçam a gestão indígena e comunitária do território como estratégia de conservação e de enfrentamento das mudanças climáticas, aliando proteção ambiental e justiça social. Dados recentes mostram que os territórios indígenas preservam em média 97% de sua cobertura nativa no Cerrado, desempenho semelhante ao de unidades de conservação e áreas militares, enquanto áreas urbanas mantêm apenas 7% e imóveis rurais 45%. O contraste evidencia o papel estratégico desses territórios para conter a perda de vegetação e proteger serviços ecossistêmicos. (Custódio, 2025; Soares, 2025)

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESAFIOS DA GOVERNANÇA

O enfrentamento do desmatamento no Cerrado tem sido alvo de iniciativas governamentais desde o início dos anos 2000, com destaque para o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Cerrado (PPCerrado). Atualmente em sua quarta fase, o plano busca integrar ações de monitoramento, ordenamento territorial, fomento a atividades produtivas sustentáveis e fortalecimento da fiscalização (BRASIL, 2023). Apesar de representar um avanço em termos institucionais, sua implementação enfrenta obstáculos relacionados à escassez de recursos, à fragmentação das políticas ambientais e à pressão constante do setor agropecuário (Mendes & Batista, 2024).

Nos últimos anos, indicadores apontaram uma queda relativa nas taxas de desmatamento — em 2024, houve redução de aproximadamente 33% em comparação ao ano anterior. No entanto, especialistas alertam que esses números, embora positivos, não são suficientes para reverter a tendência histórica de perda acumulada do bioma, que continua alarmante em termos de área total devastada (Guaraldo, 2025). Esse paradoxo revela um dos grandes dilemas da governança ambiental: avanços pontuais em determinados períodos não são capazes de alterar de forma estrutural a lógica de expansão agropecuária baseada na conversão de vegetação nativa.

Outro desafio reside na regulação do chamado “desmatamento legal”, especialmente no MATOPIBA, onde autorizações oficiais de supressão de vegetação têm permitido a destruição em larga escala. Essa prática, amparada por brechas na legislação, enfraquece os resultados de políticas de conservação e mina a credibilidade do Brasil em compromissos internacionais. Além disso, a sobreposição de competências entre diferentes esferas de governo e a ausência de uma governança integrada agravam a dificuldade de monitorar e conter a degradação (CPI, 2024).

Apesar de sinais de melhora, os alertas de desmatamento entre agosto de 2024 e julho de 2025 caíram 20,8% e ainda assim totalizaram 5.555 km², o que indica persistência de pressões elevadas sobre o bioma e a necessidade de reforço nas ações de governança. (Sinimbú, 2025)

SOCIEDADE CIVIL, CIÊNCIA E ARTICULAÇÕES INTERNACIONAIS

A sociedade civil tem desempenhado um papel fundamental na defesa do Cerrado. Diversas organizações e redes, como a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e a Rede Cerrado, atuam na denúncia de violações socioambientais, na mobilização de comunidades e na formulação de propostas de conservação e uso sustentável (Bezerra, 2024; Oliveira, 2025). Essas iniciativas têm sido importantes para dar visibilidade a um bioma historicamente marginalizado nas políticas públicas e nos debates internacionais.

A produção científica também tem oferecido contribuições relevantes, indicando caminhos para a conservação. Pesquisas mostram, por exemplo, o potencial das áreas privadas de conservação, que poderiam preservar até 25% dos habitats naturais do Cerrado se adequadamente regulamentadas e incentivadas. Programas de uso sustentável, desenvolvidos por instituições de pesquisa e organizações ambientais, reforçam a viabilidade de modelos produtivos que conciliem economia e conservação. Essas evidências demonstram que existem alternativas ao modelo hegemônico de expansão agropecuária, mas que dependem de apoio político e financeiro para serem ampliadas (Schmidt, 2023). Essa constatação amplia o horizonte das políticas de conservação, demonstrando que a proteção do bioma não depende apenas de áreas públicas, mas também de um engajamento mais amplo de proprietários rurais, universidades e instituições financeiras em iniciativas sustentáveis e de restauração ecológica.

Entre as iniciativas mais promissoras voltadas à recuperação do bioma, destaca-se o Programa Reverte Cerrado, coordenado pela The Nature Conservancy (TNC) em parceria com instituições públicas e privadas (TNC,2024). O programa promove a restauração de áreas degradadas, incentiva boas práticas agropecuárias e busca conciliar produção e conservação. Seus resultados apontam que é possível reduzir emissões de carbono, recuperar biodiversidade e aumentar a produtividade agrícola por meio de práticas integradas de manejo sustentável.

Outra iniciativa de destaque é o Instituto Cerrados, organização da sociedade civil criada em 2011 que se tornou referência na proteção e valorização do bioma. Com uma atuação que integra ciência, tecnologia e participação social, a instituição vem contribuindo para a criação de áreas protegidas e lidera a formação de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs) no país. Também desenvolve projetos de identificação e mapeamento de comunidades tradicionais, cujos dados subsidiam políticas públicas conduzidas por órgãos federais. Paralelamente, realiza ações de prevenção a incêndios e monitoramento do desmatamento, utilizando sensoriamento remoto e brigadas locais. Ao articular conhecimento técnico e saberes tradicionais, o Instituto fortalece a resiliência do Cerrado e reforça sua importância para o equilíbrio ecológico e climático do Brasil (IC, 2025).

Além do âmbito nacional, há crescente articulação em arenas internacionais. Povos indígenas e comunidades tradicionais do Cerrado têm buscado inserir o bioma em regulamentações globais, como as normas da União Europeia que tratam da importação de commodities associadas ao desmatamento (Pati & Yamamoto, 2025). Essa internacionalização da luta pelo Cerrado amplia as pressões sobre o Estado brasileiro, mas também evidencia a necessidade de maior protagonismo do bioma nas discussões multilaterais sobre clima e biodiversidade.

CERRADO E COP30: OPORTUNIDADE OU INVISIBILIDADE?

A realização da COP30 em Belém, no coração da Amazônia, tem gerado grande expectativa em torno da projeção internacional do Brasil como ator estratégico nas negociações climáticas. Entretanto, há o risco de que essa centralidade da Amazônia reforce a histórica invisibilidade do Cerrado, apesar de sua relevância equivalente para o equilíbrio ambiental e climático (Cortinhas, 2025). Essa assimetria preocupa organizações e comunidades locais, que defendem que o bioma precisa ter papel protagonista nos debates internacionais.

Nos últimos meses, povos indígenas, comunidades tradicionais e organizações da sociedade civil têm se mobilizado para inserir as demandas do Cerrado na pauta da COP30. Entre as reivindicações, destacam-se a inclusão do bioma nos compromissos de redução do desmatamento, o reconhecimento de seus serviços ecossistêmicos e a defesa de políticas de financiamento voltadas para práticas produtivas sustentáveis no território (Oliveira, 2025; Pati & Yamamoto, 2025). Essa mobilização amplia a dimensão política do Cerrado, transformando-o em símbolo da luta por justiça ambiental e climática.

O reconhecimento do Cerrado como peça-chave da agenda climática global também depende do esforço do Estado brasileiro em integrar o bioma às suas estratégias de governança ambiental. Relatórios recentes já indicam a importância de valorizar o Cerrado em negociações multilaterais, não apenas como fornecedor de commodities agrícolas, mas como patrimônio ambiental que conecta biodiversidade, água, clima e modos de vida (Moreno, 2025; Cortinhas, 2025). Se a COP30 representar um marco para essa mudança de perspectiva, poderá contribuir para romper o ciclo de invisibilidade histórica do Cerrado e consolidar sua centralidade nas estratégias globais de enfrentamento à crise ambiental.

Apesar desses esforços, o Cerrado ainda enfrenta o risco de permanecer em segundo plano nas negociações. Esse contrassenso é evidente: trata-se do bioma mais desmatado do Brasil, perdendo em apenas quatro décadas uma área duas vezes maior que o Estado do Paraná (Custódio, 2025), e ao mesmo tempo é o que menos recebe atenção em termos de financiamento e compromissos internacionais (Bataier, 2025). O fato de povos e comunidades tradicionais estarem se organizando para levar suas demandas diretamente à COP30 (Oliveira, 2025) mostra que a disputa por visibilidade será um dos pontos cruciais da conferência. Nesse sentido, reconhecer o Cerrado como bioma estratégico em escala continental, responsável pela regulação de chuvas, pela recarga de aquíferos e pelo abastecimento das principais bacias hidrográficas da América do Sul, é condição indispensável para que a COP30 represente um marco de justiça climática e socioambiental. Mais do que corrigir a histórica invisibilidade do bioma, trata-se de afirmar sua centralidade para o equilíbrio climático global e para a sobrevivência de populações humanas e não humanas que dependem diretamente de seus serviços ecossistêmicos.

CONCLUSÃO

A análise evidencia que o Cerrado ocupa uma posição paradoxal: é, ao mesmo tempo, um bioma vital para a manutenção da biodiversidade, da água e do clima em escala continental, e também o mais pressionado pela expansão agropecuária e pelas falhas na governança ambiental. A devastação acelerada, que já resultou na perda de dezenas de milhões de hectares, coloca em risco tanto espécies únicas quanto comunidades que dependem de seus recursos para sobreviver.

Os esforços de políticas públicas, embora relevantes em alguns momentos, têm se mostrado insuficientes diante da magnitude da destruição. As contradições em torno do “desmatamento legal” e as fragilidades institucionais revelam que avanços pontuais não são capazes de alterar estruturalmente a lógica de exploração predatória que ameaça o bioma. Ao mesmo tempo, a resistência das comunidades tradicionais, o trabalho da sociedade civil e as contribuições da ciência demonstram que existem alternativas de conservação e uso sustentável que precisam ser fortalecidas.

Nesse contexto, a COP30 surge como grande oportunidade para romper a histórica invisibilidade do Cerrado. O desafio não é apenas inserir o bioma na agenda internacional, mas reposicioná-lo como elemento central das estratégias globais de enfrentamento da crise ambiental. Reconhecer o Cerrado como patrimônio estratégico – pela biodiversidade que abriga, pela água que distribui e pelo papel que desempenha na regulação climática – é passo essencial para construir um futuro de justiça socioambiental. Sem isso, qualquer avanço obtido em Belém será parcial e insuficiente diante da urgência imposta pela devastação em curso.

REFERÊNCIAS

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Citação
EcoDebate, . (2025). O Cerrado à sombra da Amazônia na COP30: um bioma vital muitas vezes esquecido. EcoDebate. https://www.ecodebate.com.br/2025/10/15/o-cerrado-a-sombra-da-amazonia-na-cop30-um-bioma-vital-muitas-vezes-esquecido/ (Acessado em outubro 15, 2025 at 10:18)

in EcoDebate, ISSN 2446-9394

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