A agricultura orgânica e o manejo ecológico
Afonso Peche Filho*
Como distinguir agricultura orgânica certificada do verdadeiro manejo agroecológico: guia prático para produtores, técnicos e consumidores conscientes transformarem a produção sustentável brasileira.
Resumo
A agricultura orgânica é frequentemente associada à preservação ambiental e à produção sustentável. No entanto, nem toda prática orgânica é, de fato, ecológica.
O manejo ecológico do solo, conforme proposto por Ana Maria Primavesi, vai além da simples substituição de insumos químicos por orgânicos: trata-se de restaurar e manter a vida, a estrutura e a funcionalidade do solo, integrando-o como um organismo vivo ao ecossistema agrícola.
Este artigo tem como objetivo discutir as diferenças entre a agricultura orgânica por substituição de insumos e a agricultura orgânica conduzida segundo princípios ecológicos, destacando os riscos de desvios e os caminhos para alinhar a produção orgânica à lógica da agroecologia.
Palavras-chave: produção orgânica, agricultura ecológica, agroecologia, solo vivo, biodiversidade.
INTRODUÇÃO.
A agricultura orgânica ganhou visibilidade mundial como alternativa à agricultura convencional, reduzindo o uso de agrotóxicos e insumos químicos de síntese. Entretanto, práticas orgânicas isoladas não garantem, por si só, a conservação do solo e a sustentabilidade a longo prazo.
Ana Maria Primavesi, pioneira da agroecologia no Brasil, ressalta que o verdadeiro manejo ecológico não se limita a trocar produtos químicos por orgânicos. Ele exige compreender o solo como um organismo vivo e manejar o agroecossistema em harmonia com seus processos naturais.
Neste contexto, compreender as diferenças entre a agricultura orgânica por substituição de insumos e a agricultura orgânica de base ecológica é essencial para orientar agricultores, técnicos e formuladores de políticas públicas.
QUANDO A AGRICULTURA ORGÂNICA NÃO SEGUE O MANEJO ECOLÓGICO.
A agricultura orgânica se afasta do manejo ecológico quando mantém práticas herdadas da agricultura convencional, apenas substituindo insumos químicos por orgânicos. Essa abordagem, conhecida como agricultura orgânica por substituição, apresenta fragilidades como:
1 – Cultivo em solos mortos ou biologicamente empobrecidos, mesmo com adição de composto e esterco.
2 – Arações profundas que destroem a estrutura e expõem camadas inativas do solo.
3 – Operações agrícolas em desnível que comprometem a ecohidrologia.
4 – Enterro inadequado de matéria orgânica, favorecendo decomposição anaeróbia e produção de gases tóxicos (sulfídrico e metano), prejudiciais às raízes.
5 – Plantio mal orientado, com raízes voltadas para cima ou desenvolvimento lateral, limitando o aprofundamento.
6 – Necessidade constante de irrigação por falhas na estrutura do solo, ausência de cobertura ou quebra-ventos.
7 – Visão do solo apenas como suporte físico, ignorando sua função como organismo vivo.
QUANDO A AGRICULTURA ORGÂNICA SEGUE O MANEJO ECOLÓGICO.
A agricultura orgânica está alinhada ao manejo ecológico quando adota os princípios agroecológicos que visam a regeneração e manutenção do solo vivo:
1 – Manutenção da vida e agregação do solo – preservar organismos benéficos, porosidade e estrutura.
2 – Operações agrícolas em nível que favorecem as funções ecohidrológicas.
3 – Cobertura permanente – uso de palhada, cobertura viva ou mato mole para proteger contra erosão, insolação e evaporação.
4 – Biodiversidade funcional – rotação ampla de culturas, policultivos, adubação verde diversificada e integração lavoura-pasto.
5 – Raízes profundas e saudáveis – manejo adequado no plantio, poda de mudas e correção de nutrientes essenciais como boro.
6 – Adaptação ao ambiente local – manejo considerando solo, clima e vegetação, minimizando alterações artificiais.
7 – Reciclagem biológica de nutrientes – alimentar a vida do solo para que os microrganismos disponibilizem nutrientes às plantas.
8 – Autonomia do agricultor – estimular observação, interpretação e experimentação, substituindo receitas técnicas pela compreensão das causas.
QUADRO COMPARATIVO: Agricultura Orgânica por Substituição × Agricultura Orgânica com Manejo Ecológico
ASPECTO |
Agricultura Orgânica por Substituição |
Agricultura Orgânica com Manejo Ecológico |
Visão do solo |
Solo visto como suporte físico; foco na reposição de nutrientes via composto/esterco. |
Solo entendido como organismo vivo, integrando aspectos físicos, químicos e biológicos. |
Matéria orgânica |
Aplicada em grandes quantidades, mas muitas vezes mal manejada (enterrada, gerando gases tóxicos). |
Fornecida e manejada para alimentar microrganismos e favorecer reciclagem natural de nutrientes. |
Operações agrícolas |
Realizadas em desnível. |
Realizadas perfeitamente em nível. |
Preparo do solo |
Mobilizações profundas que destroem estrutura e expõem camadas inativas. |
Mínima mobilização superficial; preservação de estrutura e agregação. |
Cobertura do solo |
Muitas vezes ausente ou insignificantes; solo exposto à chuva, sol e vento. |
Cobertura permanente (palhada, cobertura viva, manejo ecológico do mato). |
Sistema radicular |
Raízes mal orientadas ou rasas; baixo volume de exploração. |
Raízes profundas e bem desenvolvidas, sem impedimentos físicos ou químicos. |
Biodiversidade |
Pouca diversidade de espécies; monocultivos predominando. |
Alta diversidade: rotação ampla, policultivos, adubos verdes, integração lavoura-pasto. |
Manejo da água |
Necessidade frequente de irrigação devido à compactação e baixa infiltração. |
Conservação da umidade pelo manejo de cobertura e quebra-ventos; uso racional da água. |
Autonomia do agricultor |
Dependência de receitas e insumos externos, mesmo que orgânicos. |
Produção de bioinsumos. Observação, experimentação e adaptação local; decisões com base na compreensão ecológica |
Integração com o ambiente |
Produção isolada, pouco conectada à paisagem e à fauna/flora locais. |
Produção integrada ao ecossistema, respeitando clima, solo e biodiversidade local. |
Fonte: Primavesi 2008 – adaptado.
INTEGRAÇÃO CONCEITUAL: ORGÂNICO E ECOLÓGICO
O manejo ecológico é, essencialmente, o caminho para transformar qualquer sistema de produção orgânica em um agroecossistema funcional e sustentável. Enquanto o selo “orgânico” pode ser obtido apenas por atender a critérios de não utilização de insumos sintéticos, o manejo ecológico exige uma coerência funcional: manter o solo vivo, protegido e equilibrado, em interação com a paisagem e a biodiversidade.
Portanto:
– ORGÂNICO ≠ ECOLÓGICO.
– ORGÂNICO + MANEJO ECOLÓGICO = AGROECOLOGIA PLENA.
MINHA AGRICULTURA ORGÂNICA É ECOLÓGICA?
Responda SIM ou NÃO para cada item. Quanto mais respostas “SIM”, mais próximo seu sistema está do manejo ecológico de Primavesi.
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O solo está sempre coberto com palhada, vegetação viva ou mato mole?
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Realizo operações em nível, evito mobilizações profundas, preservando a estrutura e a agregação do solo?
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Uso adubação verde e rotação de, no mínimo, cinco culturas?
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Mantenho policultivos e/ou integração lavoura-pasto para diversificar espécies?
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As raízes das plantas se desenvolvem profundas e sem impedimentos?
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Corrijo micronutrientes essenciais, como boro, de forma equilibrada?
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Manejo a matéria orgânica para alimentar os microrganismos, não enterrando de forma anaeróbia?
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Conservo a umidade do solo com cobertura e quebra-ventos, reduzindo a necessidade de irrigação?
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Adapto o manejo às condições locais de solo, clima e vegetação?
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Tomo decisões com base na observação e experimentação próprias, e não apenas em receitas externas?
Interpretação:
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8 a 10 SIM → Sistema orgânico fortemente alinhado ao manejo ecológico.
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5 a 7 SIM → Sistema em transição; ajustes importantes podem aumentar o desempenho ecológico.
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0 a 4 SIM → Sistema orgânico distante do manejo ecológico; risco de perda de produtividade e sustentabilidade.
CONCLUSÕES
– A agricultura orgânica é um avanço significativo frente ao modelo convencional, mas não deve se limitar à substituição de insumos.
– Para cumprir plenamente seu papel ambiental, social e produtivo, precisa incorporar o manejo ecológico do solo, como ensinado por Ana Maria Primavesi.
– Ao integrar princípios ecológicos, a agricultura orgânica fortalece a saúde do solo, amplia a biodiversidade e promove autonomia ao agricultor, tornando-se, de fato, uma aliada da regeneração dos ecossistemas agrícolas e da segurança alimentar de forma duradoura.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
– PRIMAVESI, A. Manejo ecológico do solo. 18 ed. São Paulo: Nobel, 2006. 541p.
– PRIMAVESI, A.M.; Agroecologia e manejo do solo. AS-PTA. Agriculturas – v. 5 – no 3. Rio de Janeiro. 2008. 07 – 10 – 44p.
– COSTA, M.B.B.; Dra. Ana Maria Primavesi: a professora de todos nós. AS-PTA. Agriculturas – v. 5 – no 3. Rio de Janeiro. 2008. 39 – 40 – 44p.
– BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Instrução Normativa nº 46, de 6 de outubro de 2011. Dispõe sobre os sistemas orgânicos de produção animal e vegetal. Disponível em: file:///C:/Users/User/Desktop/BRASIL%20ORGANICO/instrucao-normativa-no-46-de-06-de-outubro-de-2011.pdf . Acesso: 15 /08/2025.
* Pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas – IAC
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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