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A crise capitalista e a esquerda

“O mundo está complicado”, afirma Eric Hobsbawm. O historiador, já quase centenário, testemunha de muitas crises, entre elas a de 1930, e uma guerra mundial, sintetiza a complexidade da maior crise que o capitalismo moderno já assistiu: “Sabemos que uma era terminou, mas não sabemos o que virá”. Segundo o autor da História do Século XX, a crise financeira é “o equivalente ao colapso da URSS e o final de uma era”. A crise, diz ele, colocou em xeque os próprios fundamentos do capitalismo.

O problema, segundo Hobsbawm, é que a esquerda se encontra fragilizada, desorientada, e não sabe o que propor. “Eu passei minha vida adulta inteira lutando para pôr o capitalismo de joelhos. Agora que ele tropeça… nós não estamos preparados”, afirma Vijay Prashad, resumindo a perplexidade da esquerda com uma situação que sempre desejou e com a qual não sabe lidar.

“O capitalismo não funciona”, gritavam os manifestantes em Londres por ocasião da realização do G20. A questão é: o que colocar em seu lugar? Até mesmo o Financial Times, estuário do liberalismo, afirmou que “a fé na ideologia do livre mercado que dominou o pensamento ocidental por uma geração foi destruída. Mas o que pode e deve tomar seu lugar?”.

Vivemos um grande paradoxo, afirma o sociólogo James Petras: “Aprofunda-se o questionamento dos fracassos do capitalismo e dos destruidores do meio ambiente, ao mesmo tempo em que não há o surgimento de uma esquerda alternativa claramente articulada”. Robert Pollin, por sua vez, pergunta: “dado o colapso do neoliberalismo, a esquerda não deveria agora avançar em vista de um socialismo com carga total”? O problema, diz ele, “é que neste estágio da história, nós não sabemos com o quê uma economia socialista pareceria, nem sabemos como nos mover da atual desintegração do neoliberalismo para algo aproximadamente socialista”.

O debate teórico na esquerda de como aproveitar-se dessa fresta histórica de suspensão do hegemon capitalista, como destaca Chico de Oliveira, tem sido pobre. Diante da maior crise histórica do capitalismo, assiste-se a uma esquerda aparvalhada. A sua máxima ousadia resume-se o quanto muito à revisitação das ideias keynesianas, algo aceito até mesmo pela direita, inclusive como correção de rumos do capitalismo. A esquerda se encontra aprisionada no redil do debate sobre o grau de regulação a ser exercido sobre o mercado. Mais Estado pede a esquerda, é o máximo que se atreve a exigir.

“Atrelada a esse pensamento – keynesianismo – que emergiu para mitigar os efeitos adversos dos ciclos econômicos, isso é tudo o que grande parte da esquerda é capaz de propor”, afirma Michael Hardt, autor ao lado de Antonio Negri dos livros Império e Multidão.

Uma das explicações para o vazio teórico da esquerda é o seu encantamento com a democracia liberal. A esquerda de certa forma rendeu-se ao pensamento único propalado pelo capitalismo global, cuja ascensão apresentou-se como um destino contra o qual não se podia lutar – a tese de que deveríamos nos adaptar a ele ou perderíamos o passo da história e seríamos esmagados. A única coisa que se podia fazer era tornar o capitalismo global o mais humano possível. “A esquerda passou a fazer coisas que até mesmo a direita não foi capaz”, afirma Slavoj Zizek.

A penúria da esquerda diante da crise, talvez encontre uma explicação na aguda intuição de Zizek, a de que o próprio neoliberalismo foi legitimado por determinada esquerda. Segundo ele, “no Reino Unido, a revolução thatcheriana foi, no seu tempo, caótica e impulsiva, marcada por contingências imprevisíveis, porém, foi Tony Blair quem conseguiu institucionalizá-la ou, nas palavras de Hegel, transformar (o que num primeiro momento parecia) uma contingência, um acidente histórico, numa necessidade. Thatcher não era thatcherista, era simplesmente ela mesma. Foi Blair quem realmente deu forma ao thatcherismo”, afirma.

O mesmo aconteceu, com matizes diferenciados, nos EUA. Foi Clinton – um democrata com ares de esquerda – quem legitimou a ‘Era Reagan’, ou seja, o ‘Consenso de Washington’ e os valores neoliberais. O mesmo aconteceu com Miterrand na França, com Massimo D’Alema na Itália, para ficar em poucos países. O Norte do hemisfério foi engolido pelo ‘pensamento único’. Mas quem o legitimou, sobretudo, foi aqueles que se diziam de esquerda. O mesmo de certa forma aconteceu no Brasil. Quem abriu as portas para a entrada do neoliberalismo no país foi primeiro Collor e depois Fernando Henrique Cardoso, mas quem o habilitou como política de Estado foi Lula com o seu programa ‘Pós-Consenso de Washington’.

A confusão é tamanha que se assiste ao primeiro ministro Sarkozy e a primeira ministra Merkel falando publicamente em reformar o sistema financeiro, dotando-o de controles e obrigando-o à transparência. Uma ironia. Bandeiras de esquerda sendo brandidas por liberais.

Na análise de Robert Kurz, o vexame da esquerda – expressão utilizada por ele – diante da crise não chega a ser uma surpresa. Segundo o pensador alemão, “a crise existencial da esquerda de hoje consiste justamente no fato de ela não ter conseguido transformar o marxismo e reformular a crítica da economia política dentro dos padrões do século XXI”.

O economista italiano Mario Deaglio fala em desastre ideológico da esquerda. Segundo ele, “a esquerda teve medo de aplicar a análise marxiana – talvez modificando-a – à situação atual; demonstrou uma inferioridade tanto teórica como política com relação ao mercado, do qual aceitou a hegemonia; não soube construir quase nada com base nos valores das democracias sociais europeias dos anos 50 e 60. Por isso, se encontra hoje numa situação de desastre ideológico”.

Robert Kurz e Mario Deaglio estão entre os entrevistados pela revista IHU On-Line da semana passada que tem como tema de capa ‘A crise capitalista e a esquerda’. A revista dedica-se a investigar o caráter e a natureza da crise e, mais do que isso, debater as propostas da esquerda frente à crise internacional. Entre os entrevistados, além de Kurz e Deaglio, estão os nomes de David Harvey, Paul Singer, Eric Toussaint, Michael Hardt, Reinaldo Gonçalves, James Petras e Ricardo Abramovay.

Uma atenta leitura da revista é sintomática das dificuldades teóricas em que se encontra a esquerda. A revista manifesta uma crise do ponto de vista das esquerdas e não há acordo nem sobre a “morte” do neoliberalismo – a vertente política da exacerbação do liberalismo, e tampouco em como superar o capitalismo.

O geógrafo marxista britânico David Harvey, afirma que “o neoliberalismo não acabou”. Segundo ele, “formas secretas dele ainda estão profundamente arraigadas em instituições e estruturas financeiras, e, se o neoliberalismo tem a ver com a consolidação do poder de classe, é bem possível que vejamos uma consolidação ulterior disso até chegarmos a ficar sem as legitimações ideológicas da ciência econômica do livre mercado”.

Por sua vez, o filósofo político Michael Hardt, destaca que “não é o fim do capitalismo, mas diria que o neoliberalismo está morto”. Segundo ele, “dizer que o neoliberalismo está morto não quer dizer que não possa ainda ter poderosos e horríveis efeitos (…) Mas o neoliberalismo está morto no sentido de que não tem futuro. Vai perambular por alguns poucos anos mais, talvez trazendo destruição, mas o neoliberalismo é agora um zumbi. É ainda uma reação instintiva de vários em posições de poder que ainda não têm nenhuma outra idéia”.

O sociólogo americano James Petras, acredita que o liberalismo está morto: “Todo escritor capitalista afirma isso. Agora a questão é: quais são as alternativas para o liberalismo? E aqui dois teóricos de projeção estão em confronto, Keynes e Marx. Voltamos à seguinte posição: não é uma questão de intervenção do Estado em si, mas de intervenção do Estado em favor de qual projeto econômico?”.

Outro debate, esse mais de fundo, acerca de como superar o capitalismo, revela ainda mais discrepância. Harvey afirma ser a favor de se estabilizar o capitalismo através de medidas keynesianas que se transformem em possibilidades marxistas: “Sou favorável a isso porque um colapso ulterior do capitalismo sem nenhuma alternativa pronta para tomar seu lugar causará miséria e sofrimento incalculável para a massa da população, incluindo as pessoas que estão no setor informal, enquanto que a classe capitalista escapará relativamente incólume”.

Segundo ele, “atualmente, há pessoas que procuram reformar o capitalismo de modo a obter maior igualdade e sustentabilidade ambiental versus aquelas que defendem um caminho mais revolucionário que procuraria derrubar diretamente o capitalismo. Entre estas últimas, há uma cisma profunda entre as pessoas que consideram vital tomar o poder estatal e revolucioná-lo a caminho do socialismo e aquelas que procuram construir sistemas sociais e político-econômicos fora do capitalismo, do Estado capitalista e de suas instituições dominantes”.

De forma análoga pensa o economista Paul Singer, para quem “uma parte da esquerda sustenta que o keynesianismo apresenta um repertório de políticas anticíclicas que se mostrou eficaz contra a recessão dos anos 1930 e continua sendo eficaz atualmente. Outra parte da esquerda atribui a crise a uma falha sistêmica do modo de produção; a crise seria de superprodução causada pela concentração da renda resultante das políticas neoliberais. A insuficiência da demanda popular por bens e serviços de consumo levaria à queda da taxa de lucro e, consequentemente, à depressão da economia real. Portanto, a crise só poderia ser superada se houvesse redistribuição da renda, o que seria impossível sem a abolição do capitalismo”.

Singer não concorda com o vazio teórico da esquerda. Segundo ele, “não é verdade que haja um vazio teórico na esquerda e nem que ela não tenha propostas. A esquerda “keynesiana” propõe a restauração do crédito mediante a nacionalização dos bancos quebrados, além do aumento vigoroso da inversão pública e de políticas redistributivas da renda, que recuperem o mercado interno. A esquerda herdeira de certa ortodoxia marxista tem como proposta lógica a revolução proletária como única saída”.

O economista sugere o ecosocialismo como alternativa assentada na economia solidária: “O que se exige é a substituição do capitalismo por uma sociedade sem classes, em que todos terão reais possibilidades de participar de todo tipo de atividades, não enquanto assalariados, mas como gestores autônomos de empreendimentos unipessoais, familiares, associativos ou comunais, de diferentes tamanhos e diversas formas de organização, mas sempre preservando seu caráter socialista, ao não admitir qualquer distinção de poderes entre os que pensam e os que executam, entre os que mandam e os que obedecem, entre os que aportam mais recursos intelectuais ou materiais e os que aportam menos. A prova de que uma sociedade ecossocialista é possível no mundo de hoje é que ela já está sendo construída por uma miríade de empreendimentos solidários, nos numerosos interstícios que o capitalismo se mostra já há muito tempo incapaz de preencher”.

As posições de Harvey e Singer advogam um forte papel do Estado na superação da crise e até mesmo de enfrentamento ao capitalismo. Harvey defende que “o Estado tem um papel crucial a desempenhar no lançamento de um programa de estabilização para o capitalismo, mas, por definição, esse programa de estabilização tem de empoderar os trabalhadores, de modo que, quanto mais empoderados estiverem, tanto mais o Estado se tornará um instrumento em suas mãos que pode ser usado para delinear a transição para o socialismo”. Petras também vê no Estado um horizonte: “Voltamos à seguinte posição: não é uma questão de intervenção do Estado em si, mas de intervenção do Estado em favor de qual projeto econômico”?

Hardt contesta essa alternativa. O politólogo americano afirma: “Agora, quando o neoliberalismo é tão repentinamente desacreditado, isso é tudo o que grande parte da esquerda é capaz de propor: em vez de mercados livres, controle estatal; em vez de fazer tudo propriedade privada, fazê-lo propriedade pública”. Para ele, essa ideia é tímida e é “tudo o que grande parte da esquerda é capaz de propor”.

Quem também sugere que se trata uma pobreza a esquerda ficar presa ao binário mais Estado, menos Estado, é o economista Reinaldo Gonçalves. Segundo ele, o salvacionismo apresentado pela fórmula ‘keynesianismo + regulacionismo’ é insuficiente para acalmar os ânimos do mercado e reestruturar a economia. Na ótica da esquerda, alerta, “a saída está na ‘purificação’ do grande capital com recursos públicos financiados pela taxação dos ganhos do capital financeiro nos últimos anos, bem como a redistribuição de riquezas e na apropriação dos meios de produção estratégicos pelo Estado”. A alternativa, dispara, é “a reestruturação do aparelho produtivo e a reconfiguração do poder econômico a favor da classe trabalhadora”. Nessa busca pela “purificação”, Gonçalves lembra que “recursos públicos não podem ser usados para salvar o grande capital sem condicionalidades que favoreçam o trabalhador”.

O economista vai ainda mais longe e afirma que “é má-fé imaginar que a distinção entre esquerda e direita se restringe ao ideário econômico via a armadilha binária ‘estado versus mercado. “Defender um Estado que é capturado por grupos dirigentes corruptos não é ser de esquerda. Ser de esquerda implica compromisso com distribuição de riqueza (maior igualdade possível na distribuição de riqueza, renda e conhecimento), controle social do estado (combater a apropriação do estado por grupos dirigentes e grupos econômicos) e uso social do excedente econômico (planejamento e propriedade pública dos principais meios de produção)”, diz ele.

Para Reinaldo Gonçalves, “definitivamente o salvacionismo representado pela fórmula ‘keynesianismo + regulacionismo’ não resolve o problema”. O economista defende que “a saída não é o salvacionismo com a socialização dos prejuízos, mas, sim, a reestruturação do aparelho produtivo e a reconfiguração do poder econômico a favor da classe trabalhadora”.

As críticas mais contundentes à esquerda e a sua incapacidade de qualquer proposta de superação ao capitalismo vem de Robert Kurz.. Segundo ele, “a esquerda pós-moderna se depara com os destroços das suas ilusões e é confrontada com a dura realidade de uma crise monumental, a qual desde o começo ela não quis admitir e para a qual ela, por isso, não está preparada . Incapaz de captar a dialética sujeito-objeto do fetichismo moderno, a esquerda caiu num objetivismo tosco ou num subjetivismo igualmente tosco”.

O pensador alemão, autor do livro O colapso da modernização, afirma que “a esperança pelo renascimento da política é a maior de todas as bolhas: “Os danos provocados pela limitação política dos prejuízos serão inclusive maiores que a crise atual. O Estado somente ainda consegue regulamentar a morte definitiva do seu capitalismo. Neste aspecto, a esquerda também está desorientada enquanto não conseguir questionar os próprios fundamentos do sistema. Se a esquerda quiser aproveitar o bonde da administração estatista da crise para iniciar suas reformas sociais, ela acabará descarrilando junto com ele”, vaticina. “Ela bem que merece esse destino”.

Kurz fala em vexame da esquerda, “na medida em que descartou, em sua maior parte, a crítica da economia política. O economismo dos tradicionais marxistas de partido só foi criticado para eliminar de vez a objetividade negativa das categorias capitalistas de trabalho abstrato e valorização do valor. A dinâmica de crise inerente ao capitalismo passou totalmente despercebida, tendo sido traduzida para possibilidades ilimitadas”.

Kurz é demolidor: “Tal como as elites neoliberais, a esquerda pós-moderna acreditava no crescimento tocado a finanças e se transformou na expressão ideológica do capital fictício” e volta suas baterias contra alternativas que considera inócuas: “Desviam a atenção os placebos particularistas tipo ‘economia solidária’, que geralmente consistem numa mixórdia de economia de subsistência, ‘reformas monetárias’ ilusórias e abstrata ideologia comunitária. Querem fazer da urucubaca uma bênção. É muito coerente que essas propostas também fiquem namorando com soluções para a crise financeira e se aliem à nostalgia keynesiana. Não existe mais solução para a crise financeira; deve-se atacar o próprio critério de ‘financiabilidade, se é que se pretenda levar a sério um novo modo de reprodução que vá além do mercado e do Estado”.

Como se pode perceber pelos extratos acima acompanha a crise do capitalismo, uma crise da esquerda. Há, porém outro tema para o qual a esquerda tem dado pouca importância e que está imbricado à crise econômica: a crise climática. “Mais do que discutir quais são as propostas da direita ou esquerda, a crise trouxe a necessidade de repensar a relação entre sociedade e natureza”, afirma o economista Ricardo Abramovay, um dos entrevistados pela revista IHU On-Line dedicada à analise da crise. Para muitos, a matriz de uma nova esquerda se encontraria no movimento ecológico, o único capaz de contestar com radicalidade o modo de produção e de consumo da sociedade capitalista. Retornaremos a esse tema mais a frente.

Sai o G8, entra o G20: Regulacionismo para salvar o capitalismo

Enquanto a esquerda mostra-se incapaz de apresentar um programa anticapitalista, a direita apressa-se em salvar o capitalismo. O encontro do G20 marca uma reação dos Estados nações na busca de uma solução para administrar os rombos da crise econômica. No lugar do G8 tem-se agora o G20. Muda o tamanho, mas não necessariamente os objetivos. “O objetivo das reformas não seria outro que o de voltar à situação anterior à crise”, afirma Atílio Boron. O sociólogo indaga: “a pergunta fundamental: reformar para que, com que objetivo?”

O encontro terminou com um anúncio bombástico: “A era do segredo bancário acabou”, mas na realidade pouco irá se alterar na ordem econômica internacional pós-crise.

O sociólogo Boaventura de Sousa Santos traça um paralelo entre o encontro de Londres e Bretton Woods que reformou à época o sistema financeiro. Segundo ele, “a reunião de Bretton Woods, em 1944, durou mais de 20 dias e deu origem à arquitetura financeira dos últimos cinquenta anos. Já a reunião do G20 em Londres durou apenas um dia. O que se decidiu em Londres foi garantir ao capital financeiro continuar a agir como tem agido nos últimos trinta anos. Ou seja, acumular lucros fabulosos nas épocas de prosperidade e contar, nas épocas de crise, com a generosidade dos contribuintes, desempregados, pensionistas roubados, famílias sem casa, garantida pelo Estado do Seu Bem Estar”.

A agenda do G20 resumiu-se a propostas de reformar o FMI e o Banco Mundial que caducaram com o tamanho da crise. Por outro lado, as energias maiores do debate centraram-se em como socorrer as economias combalidas. A questão ambiental sequer entrou na agenda.

Ainda pior, a imprensa dá conta de que G20 cogitou mudar regra trabalhista, fato esse que teria sido impedindo pelo presidente Lula e sua colega argentina, Cristina Kirchner.

Uma das decisões foi a de injetar mais recursos no Fundo Monetário Internacional (FMI) com a justificativa de que existem economias nacionais que necessitam urgentemente de recursos para enfrentar a crise. Acerca dessa decisão, Luiz Carlos Bresser Pereira comenta: “Os países ricos, ao fornecerem recursos via FMI para os pobres pagarem suas dívidas, protegem seus próprios bancos”. Segundo ele, “para os países ricos não há dúvida de que fortalecer o capital do FMI é necessário. Dessa forma, aparentarão estarem protegendo os pobres, mas, na verdade, ao lhes fornecer recursos para pagarem suas dívidas, estarão protegendo seus próprios bancos – aqueles bancos arrogantes e seus economistas ainda mais arrogantes que, até há pouco, ensinavam ao mundo os princípios da racionalidade econômica”.

Um acontecimento inusitado foi a posição brasileira em relação a proposta de anabolizar o FMI. O Brasil foi favorável e o presidente Lula afirmou que “pegar dinheiro o Brasil não precisa porque tem reservas suficientes”. Segundo Lula, “o Brasil não vai agir como se fosse um país pequeno, sem importância. Se quiser ser grande, o Brasil hoje tem cacife para colocar dinheiro emprestado para ajudar países pobres”, disse o presidente.

Para muitos o G20 não passou de um grande show. Na análise do economista Walden Bello, em entrevista especial ao sítio do IHU, “as grandes potências econômicas, ou G20, estão fazendo um grande show dessas reuniões para se familiarizarem com a crise econômica global. E é isso que acontece com a reunião em Londres. É tudo show, e o que o show mascara é uma profunda preocupação e medo entre as elites globais de que elas realmente não saibam para onde vai a economia mundial e o que será necessário para estabilizá-la”. Para ele, “o G20 é um organismo informal dos países poderosos com pouca legitimidade. Sem legitimidade, suas prescrições ecoarão no vazio”.

Rubens Ricupero denominou o encontro como a Cúpula de egos. Segundo Vinicius Torres Freire, o que viu no G20 foram “erros, mentiras e omissões”. Segundo ele, “a reunião do G20 poderia ter sido um fracasso, mas não foi um sucesso. As mentiras foram várias, algumas vergonhosas, e houve omissões sem vergonha”. Comenta que “não há pacote de US$ 1,1 trilhão. Não houve, talvez nem pudesse haver por lá, ideia prática a respeito do que fazer da podridão bancária. Não houve acordo nem sobre como deverá ser discutido o problema de bancos que criam crises e quebram de modo transnacional, mas são mal e mal fiscalizadas e socorridas por governos nacionais, como hoje”.

O jornalista destaca ainda que “prometeram punir paraísos fiscais que não abrirem as contas de bancos e clientes picaretas (‘A era do segredo bancário acabou’). Vão acabar com a Suíça? Disseram ainda que vão regular as agências que dão notas para a qualidade de crédito (como S&P, Moody’s e Fitch), cúmplices da mentira de que o papelório ora podre era quase à prova de calote. Não adianta nada, se não houver punição para essas agências”, conclui.

Talvez, a mudança mais significativa, de caráter política do G20, é a indicação de que a geopolítica está mudando. De acordo com Fernando Duarte, a maior dica de mudanças no mapa-múndi geopolítico tenha sido dada pelo notório documento do Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido, vazado recentemente para a mídia britânica. Nele, os outros 19 países que compõem o G20 foram, às vésperas da cúpula dos chefes de Estado em Londres, classificados em duas divisões de importância para os planos britânicos, incluindo uma campanha de relações públicas: enquanto nações de ligações históricas, como as excolônias Austrália e Canadá, foram colocadas no segundo escalão — ao lado de México, Turquia e Argentina —, Brasil, China e Índia apareceram ao lado de Estados Unidos, Japão, França e Alemanha.

Na própria cúpula, o cumprimento entusiasmado do presidente dos EUA, Barack Obama, a Luiz Inácio Lula da Silva (“Esse é o cara!”) foi um sinal de uma nova ordem mundial, em que o poder econômico já não é monopolizado pelos países mais industrializados do mundo, tampouco por Washington. E tem ainda a foto em que o presidente Lula saiu ao lado da rainha da Inglaterra, sinal de prestígio de Lula e do Brasil no cenário internacional.

Corrobora essa análise do fim do unilateralismo, a afirmação de Obama de que “o mundo não deve contar mais com o excesso de consumo nos EUA”, ou seja, os EUA deixariam de ser a locomotiva do mundo. Para o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, a afirmação do presidente americano “é um divisor de águas”.

O economista Marcio Pochmann do Ipea vai na mesma linha: “Com a fragmentação da economia global, a dinâmica geográfica deve adotar novo patamar, com estruturas de hegemonias regionalizadas”, diz ele. “Noutras palavras – explica o economista – a transição do mundo unipolar desde o fim da Guerra Fria para a multipolaridade evidenciada por sinais crescentes da decadência dos EUA. No mesmo sentido, ressalta-se que o desenvolvimento econômico deve ser reconfigurado tendo em vista a quebra dos vínculos entre as finanças nacionais e globais”.

Essa tese de uma nova geopolítica mundial do fim do unilateralismo, decursiva da crise, é contestada por José Luis Fiori em entrevista especial ao sítio do IHU. Segundo ele, trata-se de um mito a propalada ideia do fim do poder americano. Para Fiori, “as guerras e a crise econômica mundial que estão em pleno curso não são um sintoma do fim do poder americano”. Pelo contrário, “fazem parte de uma transformação de longo prazo, que está aumentando a pressão competitiva dentro do sistema mundial, e está provocando uma nova corrida imperialista entre as grandes potências, com a participação decisiva dos EUA, da China e da própria Rússia, que retorna ao sistema depois de uma década de derrota, crise e reestruturação”. Ele ainda acrescenta que a longa “adolescência assistida” da América do Sul acabou. E que “o mais provável é que esta mudança provoque, no médio prazo, uma competição cada vez mais intensa entre o Brasil e os Estados Unidos, pela supremacia na América do Sul”.

(Ecodebate, 13/04/2009) publicado pelo IHU On-line, 09/04/2009 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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